Militantes e artistas contam suas experiências de resistência à repressão durante o regime militar.
Ao longo de 20 anos, a ditadura militar que se instalou no Brasil foi capaz de mostrar desde a sua face mais cruel, visível em assassinatos e torturas, até a mais insidiosa e nem por isso menos prejudicial, como a censura. Esse leque de maldades foi desnudado na tarde desta segunda-feira (31/3/14), no painel "Múltiplos olhares da resistência", sequência do Ciclo de Debates Resistir Sempre, Ditadura Nunca Mais – 50 Anos do Golpe de 64, realizado no Plenário da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG).
Por meio do depoimento emocionado de vários convidados, o público presente teve contato com um panorama dos vários instrumentos de repressão, alguns ainda pouco conhecidos, como a expulsão de 50 milhões de agricultores do campo, conforme lembrou o deputado Rogério Correia (PT), que coordenou os trabalhos. O ciclo de debates acontece atendendo a requerimento assinado pelos deputados Rogério Correia, André Quintão, Durval Ângelo e Paulo Lamac, todos do PT, e ainda Celinho do Sinttrocel (PCdoB). A deputada Luzia Ferreira (PPS) também acompanhou os depoimentos no Plenário.
“Em nome da chamada Revolução Verde, milhões foram expulsos para as cidades em favor da instalação do agronegócio. Essa falácia do desenvolvimento não deu chance, em um regime de exceção, para que a sociedade pudesse discutir qual o melhor modelo de desenvolvimento para o País. O Brasil seria bem diferente hoje, com menos concentração de renda, se pudéssemos, já naquela época, ter implantado programas que estimulassem a agricultura familiar”, afirmou o deputado Rogério Correia.
Relatos históricos - O ex-vereador Betinho Duarte, que auxiliou o deputado Rogério Correa na condução dos trabalhos, definiu como “histórica” a mesa de convidados formada para o ciclo de debates. “Nunca foram reunidos tantos lutadores, tantos sobreviventes da ditadura militar. Nós, mortos e sobreviventes, derrubamos a ditadura, que tinha como política de Estado o extermínio de todos os democratas, não apenas dos esquerdistas”, afirmou, emocionado.
Betinho Duarte lembrou ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) anistiou os torturadores e merece ser, ainda hoje, responsabilizado por isso, já que em lugar nenhum do mundo isso é juridicamente permitido. “Os torturadores têm que ser julgados, condenados e ir para a cadeia. Nós, sobreviventes, estamos aqui para garantir que isso aconteça. Sofremos muito, mas continuamos de pé. E assim vamos continuar para que o Brasil continue sendo um país justo, democrático e pacífico”, completou.
Completando a fala de Betinho, o presidente da Associação dos Perseguidos Políticos do Brasil, Vicente Gonçalves, disse que as pessoas hoje não sabem o que foi o sofrimento imposto aos opositores do regime à época. “A ditadura massacrou as pessoas. Perdemos muitos amigos, jovens idealistas, porque queríamos apenas avançar na luta contra a exploração, pela reforma agrária, por mais direitos”, afirmou. Para ele, esses fatos têm que ser conhecidos pelas novas gerações para que elas repudiem qualquer ditadura ou outro regime que acabe com a liberdade. “Temos que plantar no espírito dos jovens: 'Liberdade, liberdade, ditadura nunca mais!', concluiu.
Sindicatos amordaçados e repressão até no campo
“Sei que tudo aconteceu há 50 anos, mas para mim parece que foi ontem. O estrago causado pela ditadura militar está aí até hoje na sociedade brasileira, sobretudo para os trabalhadores e o movimento sindical”, afirmou o então presidente, em 1964, do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem (Sindimet), Ênio Seabra.
Ele traçou um panorama histórico dos antecedentes do golpe desde os anos 1950, quando começou sua militância sindical na Cidade Industrial, passando pelas duas greves organizadas em 1968. “Sempre diziam que nós, sindicalistas, estávamos armados, dispostos a entregar o País aos comunistas, mas só queríamos que os trabalhadores conquistassem aquilo que mereciam. E a famosa greve de outubro de 1968 fez a ditadura mostrar as verdadeiras garras da perseguição”, contou, lembrando as duas intervenções no sindicato que comandava, em 1964 e, depois, em 1968.
Da mesma forma, a ex-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Unaí (Noroeste de Minas), Maria Aparecida Rodrigues de Miranda, relatou os malefícios que permanecem até hoje na organização dos trabalhadores rurais e na impunidade daqueles que cometem violência no campo. A militante teve o pai assassinado e a mãe baleada por jagunços de um fazendeiro contrário a uma ocupação. Mas os culpados, mesmo identificados, não foram devidamente punidos.
“Com relação à omissão do Estado, nada mudou. No campo, ainda há ditadura. A questão da terra continua cheia de atrocidades, e uma das reformas de base pregadas por João Goulart, a reforma agrária, ainda está sem resposta”, destacou.
Ligas camponesas - Sobre a repressão no meio rural, o coordenador da Comissão da Verdade de Minas Gerais, Antônio Ribeiro Romaneli, falou sobre um episódio que marcou o início da atuação das Ligas Camponesas em Minas Gerais, da qual fez parte. “Como advogado, tinha escritório no Edifício Acaiaca, bem ao lado do local em que as lideranças dos camponeses se reuniam. Um dia eles pediram minha ajuda para 14 famílias que estavam sendo ameaçados de expulsão de uma ocupação em Três Marias", lembrou.
"Ao contrário das expectativas, consegui uma ordem do Tribunal de Justiça para manter as famílias ali, o que foi uma semente da organização dos camponeses, pois até então a legislação proibia a organização de sindicatos rurais”, contou.
Presos políticos - O advogado do Sindicato dos Petroleiros de Minas Gerais (Sindipetro-MG), Carlos Cateb, atuou entre 1967 e 1968 na defesa de mais de 50 perseguidos políticos pela ditadura. Ele falou das grandes dificuldades para exercer sua profissão nos anos de chumbo. “Os processos de presos políticos eram julgados por juntas com quatro militares e um juiz togado”, disse, revelando a falta de isenção do julgamento.
Ele citou o julgamento do Colina (Comando de Libertação Nacional). “Fui o primeiro orador, com a incumbência de fazer a defesa ideológica do Colina. Eram 38 indiciados num teatro lotado, com militares armados na plateia”, disse. Segundo ele, ao final, todos foram condenados em um julgamento que durou sete dias. E seu colega advogado Afonso Maria da Cruz foi preso por um coronel.
Igreja perplexa e opositores partem para a luta armada
O Frei Osvaldo Augusto Rezende Júnior, prior do Convento dos Frades Dominicanos em Belo Horizonte, lembrou que as tentativas de golpe contra a democracia começaram, na verdade, muito antes de 1964. “O Brasil era bem diferente. Em 1954, os golpistas tentaram contra Getúlio Vargas, que parou tudo se matando com uma bala no coração. Em 1955, tentaram impedir Juscelino Kubitscheck de tomar posse. Em 1961, com a renúncia de Jânio Quadros, tentaram impedir a posse do presidente João Goulart. Mas em 1964 deu tudo certo para eles. Eles tomaram o poder e logo demonstraram que não iam largar mais”, contou.
Na análise do religioso, muito se falou de um golpe comunista que estava sendo tramado pelo presidente João Goulart. “Isso nunca existiu, é uma mentira. Quando isso ficou claro, uma ditadura encurralada editou o AI-5, um crime contra a nação brasileira. E tudo isso por reformas pelas quais até hoje continuamos lutando”, lembrou. Ele lamentou a postura inicial de perplexidade pela maior parte da Igreja diante do golpe, ao contrário da Ordem dos Dominicanos, que, segundo ele, sempre se manteve firme em suas posições pela justiça social e pela liberdade.
Outro convidado, Welington Moreira Diniz, foi estudante de Sociologia em Belo Horizonte e participou da luta armada contra a ditadura como integrante do organização clandestina Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), o que o levou a ser exilado no Chile e no México. Ele lembrou os locais em que foi preso e torturado, como a antiga sede do Departamento Estadual de Operações Especiais (Deoesp), órgão da Polícia Civil, na Avenida Afonso Pena. “Não vou descrever todas as atrocidades das quais fui vítima. Faço delas um ato de fé e de amor. Me sinto orgulhoso de ser brasileiro, pois entreguei meu corpo e meu espirito na luta pela liberdade”, afirmou Welington, que classificou o dia 1º de abril de 1964, data em que eclodiu o golpe, como o mais tenebroso que o Pais já viveu.
O ex-guerrilheiro denunciou que a tortura no Brasil teve duas fases distintas, sendo a “mais profissional” a partir de 1970, com a colaboração de especialistas americanos trazidos diretamente da Guerra do Vietnã. “No quartel de Juiz de Fora (Zona da Mata) foi organizado um curso de tortura com plenário e tudo, na qual vários oficiais não aguentaram e vomitaram, para se ter uma ideia do que representa a tortura. É por isso que o mais importante agora é reforçar nossa crença na força da juventude para que se busque sempre primeiro o diálogo. Mas também tenho fé de que essa mesma juventude não hesitará em pegar novamente em armas contra qualquer ditadura”, afirmou, arrancando aplausos dos presentes.
Estudantes - Já o ex-vice-presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), o economista Cléber Consolatrix Maia, lembrou, com bom humor, que chegou a participar da coleta de ouro em uma campanha das autoridades para dar suporte ao novo governo. “Mas logo em junho de 1964, com as prisões e desaparecimentos, descobrimos que havia alguma coisa errada. Em 1965, com a onda de cassação de opositores, os estudantes começaram a fazer a campanha do voto nulo, que, no ano seguinte, à medida em que eram aprimorados os métodos de opressão, evoluíram para as pixações com as inscrições de abaixo a ditadura”, lembra.
E a partir do assassinado do estudante Edson Luís, no Rio de Janeiro, em 1968, a postura dos estudantes passou a ser o confronto direto. Em 1969, logo após a edição do AI-5, ele foi preso quando preparava um congresso da Ubes. “A revista Realidade descobriu que tinham me levado para o Rio Grande do Sul e, pelo que pude apurar, somente assim escapei de darem cabo na minha vida. É por isso que temos que seguir insistindo nas conquistas para a sociedade pelas quais estamos lutando há 50 anos”, defendeu.
Pré-ditadura - Já a fundadora e secretária do Movimento Feminino pela Anistia e membro da Ordem Franciscana Secular, Zélia Rogedo, lembrou da época pré-ditadura. “Vivíamos num país inteligente e politizado. Conversávamos sobre Sartre, Simone de Beauvoir...”, rememorou. Para ela, o golpe militar foi um crime contra toda essa movimentação política e cultural.
Zélia Rogedo considerou que, com a eclosão da ditadura, os vários movimentos que a União Nacional dos Estudantes (UNE) desenvolvia até então, assim como a própria entidade, foram desestruturados. Segundo ela, com o golpe, a sociedade se dividiu em duas grandes frentes. De um lado, de acordo com ela se postava a direita, formada por banqueiros, latifundiários e setores da igreja, que se posicionavam contra as organizações populares. Na outra ponta, ficavam os movimentos populares, de estudantes, de operários e outros, se articulando em apoio às reformas de base do presidente João Goulart e contra a direita, conforme ela destacou.
Após o golpe, continuou a ativista, as várias lideranças se dividiram em grupos diferentes, com alguns indo para a luta armada. Outra parte ficou na reorganização do movimento estudantil e outra, na chamada “luta institucional”, atuando na periferia, em sindicatos. "Toda essa ação política criou um 'celeiro de militância', que contribuiu muito para a democracia atual, na qual há muito ainda a ser feito”, disse.
Censura é sentença de morte para a classe artística
Pedro Paulo Cava é diretor, ator, autor, dramaturgo, produtor e professor de teatro. Mas toda essa versatilidade não o livrou da censura durante a ditadura militar. Curiosamente, conforme lembrou, começou no teatro em 1964, o ano do golpe, e por isso teve que conviver com um dos lados mais perversos da ditadura, que condenava os artistas a um outro tipo de morte, a representada pelo ostracismo.
“É preciso dizer que fazer arte no Brasil é difícil com ou sem uma ditadura, mas com a censura dos militares, muita gente boa desistiu. Mais de 500 peças caíram na gaveta do esquecimento de 1968 a 1984, assim como filmes, discos, livros e revistas, entre outras produções culturais. Todo o pensamento de uma geração foi jogado na lata de lixo”, lamentou.
Pedro Paulo Cava lembrou a montagem da estrutura de censura no Brasil, que teve até concurso público e curso em Brasília para os advogados selecionados. “Eles foram lá aprender como nós pensávamos. É por isso que sempre tive mais medo do guarda da esquina do que do general. Esses militares que não marchavam fizeram um estrago muito grande. Curiosamente, era muito mais fácil passar pornografia pela censura, desde que não falássemos contra o regime. Eles sabiam do poder da palavra, e tinham razão”, avaliou.
Sirlan de Jesus, compositor e cantor censurado e perseguido pela ditadura militar, deu a exata dimensão do poder repressor da censura. “Não fui preso nem torturado. Mas passei por uma pressão psicológica das mais terríveis. Foi difícil não cair na depressão e cometer suicídio. Na minha melhor fase como artista, tudo o que produzi foi censurado. Me tiraram de circulação e acabaram com a minha carreira. Só consegui gravar um disco em 1979, mas aí o quadro das gravadoras já era adverso por outros motivos”, contou. Como Chico Buarque, outro alvo frequente dos censores e de quem é amigo, Sirlan ganhou fama nos festivais de música da época, mas suas letras engajadas levaram à proibição até das suas aparições públicas, sob ameaça de prisão.
“O mais importante é que nós, os artistas da minha geração, continuamos pensando e produzindo, e estamos vivos para ter a noção critica de tudo isso. E a luta ainda não terminou, pois ainda há muito a ser conquistado. A ditadura militar criou um abismo cultural na sociedade brasileira pelo qual paga-se caro até hoje”, avaliou.
Denúncia de truculência da Guarda Municipal e da PM
Durante os debates, a presidente do Instituto Helena Greco, Heloísa Greco, denunciou que foi vítima de violência policial na noite do último domingo (30), na Praça Duque de Caxias em Santa Tereza, em Belo Horizonte. Ela relatou que estava junto com o funcionário do instituto, Bruno Soares, fotografando o busto de Duque de Caxias que estava com um panfleto pregado. “Fomos abordados de forma truculenta pelos guardas municipais Itamar Silva e Jardel Henrique, que nos ameaçaram com dois tasers, que são armas de tortura”, contou.
“Me empurraram, jogaram Bruno no chão e passaram a dar choques nele por cinco minutos”, relatou. Segundo ela, logo depois chegaram policiais militares que os colocaram numa viatura e os levaram para a carceragem da antiga Delegacia de Furtos e Roubos, onde passaram a noite toda, só sendo libertados na manhã seguinte. Esse fato levou a militante a concluir que o aparato repressivo continua atuando. “Não podemos aceitar isso. Exigimos o desmantelamento do aparato repressivo. Desmilitarização da PM para nós é pouco. Exigimos o fim das polícias, da guarda municipal e da Força Nacional de Segurança. Temos que acabar com a tortura como política de Estado”, exigiu.
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