Sociedade
Relatório Final
Para comissão violações e abusos de hoje são continuidade do que ocorria no período ditatorial. Reforma engloba a desmilitarização da PM e fim dos autos de resistência
por Marcelo Pellegrini, com Rodrigo Martins — publicado 10/12/2014 10:52, última modificação 10/12/2014 10:56
Marcello Casal Jr./ Agência Brasil
A Comissão da Verdade disse que a militarização da polícia é uma "anomalia", que treina o policial para combater um inimigo, ao invés de atender ao cidadão
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado nesta quarta-feira 10, recomenda um conjunto de medidas que, se realizadas em conjunto, consistiriam uma das maiores reformas na área de segurança pública ocorridas na história do Brasil. A CNV ecoa sugestões feitas anteriormente por outros organismos internacionais, e sugere alterar estruturas remanescente do período militar que nem o processo de redemocratização se propôs a realizar.
A necessidade de reforma é justificada pelos dados de violência que o País produz. Responsável por um em cada dez assassinatos no planeta, o Brasil ocupa a 16ª posição no ranking de países mais violentos do mundo, de acordo com o Estudo Global sobre Homicídio 2013. Por dia, 82 jovens são mortos em território brasileiro, segundo a Anistia Internacional, sendo uma parte deles mortos em situações de conflito com as forças de segurança.
Apenas a Polícia Militar matou mais de 11 mil pessoas entre 2009 e 2013. A fim de comparação, a polícia estadunidense levou 30 anos para matar o número de pessoas que a polícia brasileira matou em apenas cinco. Além disso, o País também possui a terceira maior população carcerária do planeta, sendo que 40% estão presos sem julgamento. A superlotação dos presídios e os relatos de tortura dentro deles completam o cenário caótico da segurança no Brasil.
Em face disso, das 29 recomendações do documento, oito delas são diretamente relacionadas à segurança pública: a desmilitarização da Polícia Militar; a reforma curricular nas academias de polícia; o fim dos autos de resistência; a desvinculação do Instituto Médico Legal (IML) das secretarias de segurança pública e da estrutura policial; a ampliação da Defensoria Pública; a extinção da Justiça Militar estadual; a exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar federal; o fim da Lei de Segurança Nacional, de 1983.
Desmilitarização da PM
A mais ambiciosa das recomendações diz respeito à desmilitarização da Polícia Militar. Para a Comissão, a militarização da polícia é uma “anomalia” no exercício da segurança pública em uma democracia. Segundo o texto, na estrutura militar, o policial é treinado para combater um inimigo, em vez de atender ao cidadão.
Caso concretizada, a recomendação implicaria em uma reconfiguração da estrutura básica da segurança brasileira, começando pela união entre as polícias (Militar e Civil). A categoria policial apoia amplamente a reforma. Segundo uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Ministério da Justiça, três em cada quatro policiais militares são favoráveis à desmilitarização. Entre os agentes das duas polícias, a aceitação da proposta é de 73,7%.
A sugestão de desmilitarização da polícia não é nova e já foi recusada anteriormente. Sugerida em 2012 pela Dinamarca, na reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a proposta já foi recusada pelo Brasil por ferir a Constituição Federal, que prevê “a existência de forças policiais civis e militares”. Como mostrou CartaCapital em agosto de 2013, o único caminho possível para rever essa herança da ditadura é alterar a Constituição Federal. Atualmente, há três Propostas de Emenda Constitucional (PEC) que pedem a desmilitarização da polícia e a união das forças de segurança. Todas estão paradas no Congresso.
A Comissão da Verdade defende ainda a revisão curricular das academias de polícia para garantir mais espaço à promoção da democracia e dos direitos humanos. O investimento em uma melhor formação policial e a desmilitarização da instituição é tido como a principal forma de reduzir o número de homicídios cometidos por policiais. Apenas entre 2009 e 2013, as forças policiais brasileiras mataram 11.197 suspeitos, o que equivale a seis indivíduos por dia. O número supera as mortes causadas polícia dos Estados Unidos ao longo de 30 anos (11.090).
Fim dos “autos de resistência”
O relatório da Comissão da Verdade também recomenda a substituição do termo “auto de resistência” nos inquéritos de ações policiais que resultaram em morte ou lesão corporal dos suspeitos. Na avaliação de especialistas, o instrumento muitas vezes é usado para encobrir execuções extrajudiciais e evitar uma investigação criteriosa de homicídios causados por policiais.
Um estudo de Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência da UFRJ, estima a dimensão do problema. Misse analisou todos os autos de resistência registrados em 2005 no estado do Rio de Janeiro e verificou que 98% dos casos haviam sido arquivados até dezembro de 2007. Um trabalho anterior, desenvolvido pelo sociólogo Ignácio Cano nos anos 1990, havia dado números à violência gratuita: à época, mais de 60% das vítimas em supostos confrontos com a polícia fluminense foram mortas com tiros na cabeça ou nas costas, o que indica a possibilidade de execução.
O relatório final da Comissão da Verdade recomenda que “as lesões e mortes decorrentes de operações policiais ou de confronto com a polícia sejam registradas como ‘lesão corporal decorrente de intervenção policial’ e ‘morte decorrente de intervenção policial’, substituindo os termos ‘autos de resistência’ e ‘resistência seguida de morte’, respectivamente”.
Em tramitação na Câmara, o projeto de lei 4471, de 2012, prevê que as mortes causadas por agentes do Estado tenham um rito de investigação semelhante ao previsto para os crimes praticados por cidadãos comuns. O objetivo é justamente acabar com os autos de resistência e evitar que os casos sejam arquivados com base em simples justificativas de que os suspeitos resistiram à prisão.
“O auto de resistência era usado pela ditadura para encobrir os assassinatos de dissidentes políticos e, hoje, serve para legitimar a violência policial”, afirma o deputado petista Paulo Teixeira, um dos autores do projeto. Pela proposta, sempre que uma ação policial resultar em lesão corporal ou morte, a autoridade competente deverá instaurar imediatamente o inquérito para apurar o fato, sem prejuízo, inclusive, da prisão em flagrante.
Nos casos de morte violenta, passa a ser obrigatório o exame de corpo de delito interno. O laudo deverá ser entregue à autoridade requisitante e à família da vítima em até dez dias. O projeto torna ainda obrigatória a documentação fotográfica dos cadáveres “na posição em que forem encontrados”.
“O que se pretende é garantir uma investigação isenta”, diz Teixeira. “Desde a Proclamação da República, o Brasil aboliu a pena de morte. Mas ela continua a ocorrer até hoje em execuções extrajudiciais cometidas por policiais que atuam à margem da lei”. A expectativa é que o projeto seja votado até o fim do ano.
Independência do IML
Para assegurar que execuções e procedimentos de tortura cometidos por policiais não sejam encobertos pela máquina pública, a Comissão da Verdade também recomendou que órgãos forenses e de perícia criminal sejam independentes e desvinculados das secretarias de segurança pública e da estrutura policial. Hoje, órgãos como o Instituto Médico Legal (IML) e o Instituto de Criminalística (IC) estão sob a coordenação da Polícia Científica, que, por sua vez, se reporta à Secretaria de Segurança Pública e mantém estreitos laços de cooperação com as polícias civil e militar.
Com a independência e autonomia destes institutos de perícia seria possível "conferir maior qualidade na produção de provas técnicas, inclusive no diagnóstico de tortura", afirma o relatório da Comissão.
Direito de defesa
No ranking dos países com as maiores populações carcerárias do mundo, o Brasil ocupa o terceiro lugar, com mais de 715 mil presos, incluídos os 147,9 mil condenados que cumprem prisão domiciliar. Do total, mais de 40% aguarda o julgamento em presídios e centros de detenção provisória, segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea). Quanto julgadas, a maioria acaba absolvida ou condenada a cumprir penas alternativas.
Uma das causas para este cenário de injustiça é o baixo número de defensores públicos. Das 2.680 comarcas do País, apenas 754 possuem defensoria pública. Proporcionalmente, é como se cada defensor fosse responsável por atender 29 mil pessoas que não podem pagar pelo direito de defesa, assegurado pela Constituição. Como consequência, segundo a Comissão da Verdade, os presos se tornam mais vulneráveis a abusos, decorrentes da ação ou da omissão da administração pública.
De acordo com o relatório, “o contato pessoal do defensor público com o preso nos distritos policiais e no sistema prisional é a melhor garantia para o exercício pleno do direito de defesa e para a prevenção de abusos e violações de direitos fundamentais, especialmente tortura e maus-tratos”. A ONU recomendou ao Brasil, em 2012, um defensor público para cada unidade do sistema prisional.
Legislação anacrônica
Durante as manifestações de junho e os protestos contra a Copa do Mundo, o governo federal utilizou uma lei, retirada do período militar, para coibir os protestos e investigar os manifestantes. Formulada no final da ditadura, em 1983, a Lei de Segurança Nacional pune quem incitar “à subversão da ordem política ou social” e quem depredar patrimônio público ou privado por inconformismo político, tática amplamente utilizada por black blocs em 2013. Além disso, o artigo 30 da lei especifica que “compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes previstos nesta Lei”. Ou seja, institui-se que civis sejam julgados por militares.
Isso, segundo o relatório, “reflete as concepções doutrinárias que prevaleceram no período de 1964 a 1985”. Por julgar a lei um anacronismo na Constituição brasileira, a Comissão da Verdade pediu sua revogação, assim como a extinção das Justiças Militares estaduais e a manutenção de uma Justiça Militar Federal, responsável apenas pelos efetivos das Forças Armadas.
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