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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
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sábado, 13 de dezembro de 2014

Como perpetuar uma ditadura

  • Na contramão das democracias, Brasil ignora seus crimes contra a humanidade, amparado em Lei de Anistia ilegal e ilegítima

    Vladimir Safatle





  • De todos os países latino-americanos que passaram pela experiência de uma ditadura militar nas últimas décadas, o Brasil se destaca no direito internacional por sua situação catastrófica.
    Enquanto Argentina, Chile e Uruguai passaram, cada um à sua maneira, por processos profundos de julgamento dos responsáveis por crimes contra a humanidade perpetrados por funcionários de Estado, o Brasil brilha por nunca ter colocado um torturador no banco dos réus. Enquanto vários países fizeram revisões de suas leis e instituições, o Brasil conseguiu preservar algumas das mais brutais heranças jurídico-institucionais da ditadura militar.
    Não entenderemos nada sobre essa resiliência da ditadura militar brasileira se não começarmos por perguntar sobre a especificidade do regime implantado entre nós no período 1964-1984. A moda atual é dizer que ditadura mesmo houve apenas durante um pequeno período, mais precisamente entre 1969 e 1979, quando vigorou o AI-5. Antes e depois teria ocorrido um regime autoritário, mas nada que se comparasse a uma verdadeira ditadura. Afinal, como se diz, até partido de oposição existia (no caso, o antigo MDB). A vantagem de lermos análises deste calibre em livros e jornais é perceber claramente o verdadeiro nível de comprometimento de alguns analistas com a democracia. Eles não temem em colocar nas ruas um profundo negacionismo revisionista, digno das piores análises históricas, a fim de desqualificar a necessidade de punir exemplarmente os que implementaram e deram suporte à ditadura brasileira. Talvez porque temam a reflexão que nasceria de um ato de tal natureza.
    A tentativa de apagar aos poucos a ditadura da história brasileira só pode ocorrer porque os militares procuraram, desde o início, criar uma forma renovada de totalitarismo. Ele consistiu em não apelar a um típico regime na base da lei e da ordem, com suspensão total de todas as liberdades individuais, bloqueio completo da produção cultural, eliminação sistemática de todo e qualquer opositor e anulação soberana da integralidade das estruturas político-partidárias. Daí a impressão de que, comparada a países como Argentina e Chile, a ditadura brasileira teria sido branda, inclusive com menos mortos e desaparecidos.
    É verdade que, em plena ditadura, era possível levar para casa discos com canções de protesto, comprar livros de Karl Marx nas bancas e livrarias, votar no partido de oposição. No entanto, devemos lembrar que o totalitarismo está ligado à generalização de situações de exceção nas quais a lei pode ser, a qualquer momento, suspensa, pois há sempre uma segunda lei não-dita que pode interferir e se fazer sentir. Posso comprar livros de Marx e levá-los para casa, mas, a qualquer momento, por razões as mais diversas possíveis, posso ser enquadrado por isto e processado pela Lei de Segurança Nacional. Generaliza-se uma situação na qual nunca sei, com clareza, se estou dentro ou fora da lei, cabendo à atitude discricionária do poder decidir minha real posição. O modo como a lei é aplicada é uma decisão soberana do Estado, cujo poder volta a ter um funcionamento quase monárquico. Aceita-se a existência de um Congresso Nacional com deputados de oposição, mas, caso suas decisões desagradem, está sujeito a ser fechado por tempo indeterminado. A legalidade é reduzida à condição de aparência.
    Se quisermos ter ideia do peso da ditadura na sociedade brasileira, devemos procurar não o número de mortos, mas o número de processos abertos contra opositores. As mortes podem funcionar de maneira cirúrgica. Não preciso matar 10 mil. Com 450, é possível colocar a sociedade em estado de medo e paralisia. No entanto, já nos primeiros anos da ditadura mais de 30 mil processos se avolumavam contra opositores e acusados de atividades contra o regime.
    Essa capacidade em reduzir a legalidade à situação de aparência foi usada com maestria pela ditadura militar brasileira. Ela serviu não apenas para quebrar o ímpeto oposicionista, mas principalmente para perpetuar seu legado após o fim oficial. Dando-se a impressão de legalidade e apoiando-se em uma vergonhosa lei de anistia que vai na contramão do direito internacional – que entende serem imprescritíveis os crimes contra a humanidade, e objetos de uma jurisdição que se sobrepõe às leis nacionais – permitiu-se que todas instituições escapassem de exigências de depuração. Para ficar em um só exemplo, a Polícia Militar conseguiu a proeza de não afastar de seus quadros a maioria dos envolvidos em tortura sistemática contra presos políticos. Como resultado, o Brasil é atualmente o único país latino-americano onde o número de casos de tortura aumentou em relação àqueles ocorridos no regime militar, como mostra estudo realizado pela socióloga norte-americana Kathryn Sikkink. Poderíamos insistir que nenhuma empresa que apoiou ou financiou o golpe foi obrigada a fazer sequer um mea culpa público, assumindo a responsabilidade por sua ação. Por mais paradoxal que possa parecer, a única a fazê-lo foram as Organizações Globo. Desta forma, a sociedade não sinaliza repulsa em relação à conspiração contra o funcionamento de sua democracia.
    Mesmo nossas leis constitucionais continuaram permeadas pelo legado ditatorial. O Brasil foi capaz de legalizar o golpe de Estado em sua Constituição de 1988. No artigo 142, as Forças Armadas são descritas como “garantidoras dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Ou seja, poderemos ver situações nas quais, por exemplo, o presidente do Senado pede a intervenção militar em garantia da lei (mas qual?, sob qual interpretação?) e da ordem (social?, moral?, jurídica?) para legalizar constitucionalmente ações arbitrárias.
    A incapacidade de construir uma repulsa coletiva visível à ditadura é a maior responsável pela perpetuação da lei de anistia. Valeria a pena insistir no absurdo que é a leitura oficial de tal lei, como se fosse resultado de ampla negociação com setores da sociedade civil e da oposição.
    A insistência em conservar essa leitura é ilegal sob dois aspectos. Primeiro, há um conflito de soberania. O Brasil, ao reconhecer a existência do conceito de “crime contra a humanidade”, e até aceitando a jurisprudência de um Tribunal Penal Internacional, abriu mão de parte de sua soberania jurídica em prol de uma ideia substantiva de universalidade de direitos. Os acordos políticos nacionais não podem estar acima da defesa incondicional dos cidadãos contra Estados que torturam, sequestram, assassinam opositores, escondem cadáveres e estupram. Isso vale tanto no Brasil quanto em Cuba, na França ou em qualquer outro lugar.
    Além disso, a lei é ilegítima em sua essência. Na verdade, não houve negociação alguma, mas pura e simples imposição das condições a partir das quais os militares esperavam se autoanistiar. O governo de então recusou a proposta do MDB de anistia ampla, geral e irrestrita, tal como a sociedade civil organizada exigia, e enviou para o Congresso Nacional o seu próprio projeto.
    Por não ter representatividade alguma, o projeto passou na votação do Congresso por 206 votos contra 201, com todos os votos favoráveis vindos da antiga Arena. Ou seja, só em um mundo paralelo alguém pode chamar de “negociação” um processo no qual o partido governista aprova um projeto sem acordo algum com a oposição.
    O texto da Lei da Anistia era claro a respeito de seus limites. No segundo parágrafo do seu primeiro artigo, lê-se: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, de assalto, de sequestro e atentado pessoal”. Por isso, a maioria dos presos políticos não foi solta em 1979, ano da promulgação da lei. Eles permaneceram na cadeia e só foram liberados por diminuição das penas. Os únicos anistiados, contra a letra da lei que eles próprios aprovaram, foram os militares que praticaram terrorismo de Estado, sequestro, estupro, ocultação de cadáver e assassinato.
    A Lei da Anistia consegue a proeza de ser, ao mesmo tempo, ilegítima na sua origem e desrespeitada exatamente pelos que a impuseram. Um belo exemplo do tipo de singularidade lógica que a ditadura militar nos legou.

    Vladimir Safatle é professor da Universidade de São Paulo e autor de A esquerda que não teme dizer seu nome. (Três Estrelas, 2012).



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