“O menino não tinha mais digitais”, conta, com minúcias, Sueli Galvão Cortiano, 50 anos, coordenadora do Serviço de Atendimento ao Vitimizado da Fundação de Ação Social (FAS). Não se trata de mais uma história de quem conhece os bastidores do mundo cão, mas de um momento chave: naquele dia, Sueli entendeu que algo tinha mudado no mundo da infância e adolescência em situação de rua. Não necessariamente para melhor.
O menino Sérgio sai debaixo das cobertas durante abordagem matinal da Fundação de Ação Social, na Avenida Sete de Setembro, em Curitiba: sob efeito de drogas e à mercê dos adultos. Foto: Aniele Nascimento/ Gazeta do Povo
A reportagem é de José Carlos Fernandes e publicada pelo jornal Gazeta do Povo, 05-08-2012.
Veterana do setor – ligada à criação do programa Criança Quer Futuro e às abordagens feitas a pé, pelas ruas da capital paranaense – a assistente social se imaginava diante de mais um caso de menino aceitando a inserção, disposto a tirar a carteira de identidade. Mas na hora da documentação descobriu-se que o uso contínuo do crack tinha queimado seus dedos. Era simbólico. A droga tinha criado um novo rito de passagem – para os meninos e para os educadores. Ficavam para trás as histórias de abandono familiar e expedições infinitas pelas ruas. Em seu lugar, vidas decididas pelas regras do tráfico, “um estorvo sem tamanho ao trabalho social, nosso grande adversário”.
Fim do mundo? Não para Sueli e outros que atuam no ramo. “Os meninos e meninas se salvam entre si”, acredita, sobre as estranhas formas de vida que nascem de mais essa adversidade. Mesmo debaixo do crack, muitos meninos recuperam suas digitais. “Apenas mudou. É isso”, resume a educadora Dolores Lacerda, 55 anos, a tia Dodô, com duas décadas de serviços prestados à infância e adolescência.
Dolores é didática – conta que antes os educadores viam os meninos como os pobrezinhos. Depois, temeram os arrastões e criaram programas para coibi-los. “Eles respondiam bem ao receber agasalho e comida. Hoje, nos manipulam com perfeição. De cem às vezes acho que salvo um. Mas eles ainda mudam quando se sentem gente”, emociona-se, ao tratar dos atuais desafios para quem atua no campo da infância.
As resistências são maiores. Muitos decoraram como se movimentar nos albergues, sem precisar dar respostas e fazer tratos. Estão mais potentes, abusados, mas não menos em perigo. “Antes eles vinham da periferia para o Centro. Ficavam nos sinaleiros. Hoje, vão do Centro para as periferias, onde estão ‘protegidos’ pelos traficantes”, resume o pesquisador Rodrigo Navarro, de posse da equação que está virando de canelas para o ar albergues e esquinas.
Meninos de rua estão de mudança. Eis a questão.
Na Kombi com Yara e Sarita
“Com um pé desse tamanho, acho que não é o *Adriano não”, comenta a educadora social Yara Mello, 35 anos, à colega de trabalho Sarita Betim, 25, ao abordar um grupo de nove moradores de rua, numa marquise da Avenida Sete de Setembro, nas proximidades do Centro da capital. Elas estão em busca de crianças e adolescentes aninhados entre os mendigos. São 7h30 da manhã. Faz frio curitibano. Não fosse a abundância de cachorros-quentes e pizzas, deixados ali por gente dos prédios, o cenário poderia ser confundido com o de um campo de refugiados da África.
Todos estão escondidos até a cabeça. Mesmo assim, as funcionárias da Fundação de Ação Social se aproximam às passadelas, sempre com luvas de borracha, e chamam os meninos pelo nome. Fazem balé no meio dos colchões e cobertores. Suspeitam que há pelo menos três guris entre eles – Adriano e seus dois primos, oriundos da Vila das Torres, ali protegidos pelos grandes em troca de drogas, que pagam conseguindo esmolas e, não raro, prestando favores sexuais. Um dos moradores resmunga. Manda que as mulheres se afastem. É quando Adriano – um garoto negro, de dentição perfeita –, se levanta e alveja as educadoras com a luz de uma lanterninha. Tem 13 anos, traja uniforme do Colégio Positivo e forma uma capa de super-herói com seu cobertor de campanha. É o bastante para que seu primo Sérgio, 12 anos, ponha a cabeça para fora das mantas, completando o teatro inacreditável das ruas.
Sérgio também tem uma lanterna e brinca com ela na mão bêbada. Está sob efeito de entorpecentes e se recusa a subir na Kombi da assistência, mesmo debaixo dos apelos de Yara, sua velha conhecida das manhãs. “A gente tem a impressão de que são sempre os mesmos nos mesmos lugares. Não posso levá-lo à força todos os dias, debaixo de gritos, sofrendo ameaça dos adultos que os mantêm aqui. O sonho de que a gente vai conseguir resolver tudo de imediato, acaba”, relata a educadora. A Kombi se vai, em direção dos mocós das ruas Brigadeiro Franco e 24 de Maio.
Ouvir “não” como resposta é rotina para os 25 educadores do programa Criança Quer Futuro, da FAS. Mesmo assim, eles retornam aos espaços de mendicância do Centro, quatro vezes ao dia, sem trégua, cumprindo o mesmo protocolo, trazendo para o programa cerca de 260 adolescentes a cada mês. Fazem parte dos roteiros a pé e trabalham para criar vínculos de amizade com as crianças e adolescentes. “Aquele é o Gilberto de Almirante Tamandaré. Vai fazer 18 anos”, comenta uma delas, ao ver o guri que cruza a Praça Osório e as cumprimenta de longe. “Não, hoje não vou”, grita ele... A cena se repete com uma garota grávida, “que fez 18 anos”, avisam, indicando que pertence agora a outra equipe. Tem quem fuja em disparada ao ver a logo do “Criança...”, sinal de que “o ponto está queimado”, exigindo da turma da Ação Social “dar um tempo”. Trabalhar com o povo da rua não é para iniciantes.
Bate-e-volta
Em três abordagens acompanhadas pela Gazeta do Povo nenhum menino ou menina em situação de rua aceitou a “carona” até a central de acolhida. Foi acaso: cerca de 50 meninos chegam ali semanalmente pelas próprias pernas, na hora que acharem melhor. Fazem parte da turma do “bate-e-volta”, apelido dado aos que circulam pela casa até não terem mais idade para isso. Na sede, um barracão bem equipado na Rua Rockefeller, no Rebouças, apenas em dias de baixíssima temperatura as 24 vagas destinadas a quem foi recolhido pela cidade são todas ocupadas. Há mesmo quem afirme haver menos pequenos ao relento. Ou que sejam um fenômeno de verão – quando há menos atividade na escola, caem nas calçadas, às vezes para sempre.
Faz algum sentido. Cada vez mais, poucos são vistos nos sinaleiros ou se aquecendo com a luz que vem das galerias, deixando para o passado a imagem clássica do pivete, eternizado na música homônima de Chico Buarquee no filme Pixote, de Hector Babenco. Adriano e Sérgio, os adolescentes da Sete de Setembro, podem ser alguns dos últimos representantes da categoria “menino de rua”, tal como se pensa desde os tempos da Candelária. “A rua, agora, é só um capítulo da história”, diz a assistente social Lusilene de Mello Efigênio, 48, gerente do programaCriança Quer Esperança, sobre a relação delicada que vê se desenhar a cada Kombi da assistência que vê sair em disparada.
O ECA, a rede de proteção e a FAS no meio do ringue
“Está na hora de reagir”, vaticina Murillo Digiácomo, promotor da área da infância no Ministério Público Estadual, ao falar sobre a “adaptação” dos meninos e meninas em situação de risco às regras da rede de proteção. Ele é enfático – chega a sugerir que educadores e agentes do movimento social em geral batam às portas da promotoria e abram uma discussão. “Sugiro um estudo técnico”, resume, afirmando, sem meias palavras, que o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, não pode ser responsabilizado.
Mas o ECA é, sim, alvo de insatisfação entre educadores. “A lei não previa o que as drogas como o crack iriam causar na sociedade”, lembra um deles, a caminho de mais uma jornada pelas esquinas. “O ECA prevê o acompanhamento individualizado de cada criança. Ponto. Pode-se estabelecer regras nos abrigos e até internar. Dizer o contrário disso é desconhecer a lei”, rebate Digiácomo.
Para o pesquisador Rodrigo Navarro, uma das saídas para evitar o uso burocrático da rede de proteção à infância é rever a política adotada pela FAS. “Temos um projeto premiado”, discorda Luciana Kuzman, coordenadora do Resgate Social.
Navarro mantém sua posição. O projeto municipal lhe parece ter baixa interação com o terceiro setor, paliativo, higienista, sem proposta pedagógica forte. “Seu efeito acaba sendo de fazer com que as crianças deixem de circular na rua algumas horas do dia”, argumenta o estudioso, cuja trajetória está ligada à Chácara dos Meninos dos 4 Pinheiros.
Para ele, o problema é de fundo – a política não consegue atingir as famílias, empoderar os adolescentes e erra nos detalhes. “A própria Kombi se confunde com a da polícia. E como o sistema não oferece uma proposta consistente, a criança o abandona.”
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