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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A luta pelos direitos no Brasil: entre a teoria e a prática



Graças a Charles Darwin, cujo 202o aniversário de seu nascimento comemoramos hoje, não somente biólogos, mas também muitos cientistas sociais de nossos tempos, podem contar com um paradigma evolucionista em suas áreas de estudos, aprofundando suas investigações do que subjaz aos fenômenos socioculturais para muito além do que alcançam perspectivas outras, como a culturalista, a marxista, a estruturalista etc. Assim, naturalista empedernido que sou, gostaria de esclarecer que tenho para com antropólogos culturalistas, como Roberto DaMatta, precisamente isso: uma divergência paradigmática. Mas, a despeito disso, de modo algum me sinto impedido de apreciar inúmeros pontos levantados em suas obras, sobretudo quando estes se revelam objetivamente precisos enquanto descrição de fenômenos socioculturais sem dúvida condizentes com a realidade conspícua.
Roberto DaMatta (1936 - ).
Na verdade, naquilo que um autor como DaMatta descreve, eu apenas ajusto minhas lentes para alcançarem um pouco além, a níveis subjacentes mais profundos, como já dito. E assim procedendo, percebo que grande parte dos contornos que adquirem os fenômenos socioculturais parece constituir reflexos de traços inerentes à natureza humana, que uma cultura Apermite aflorar, enquanto uma cultura B os inibe. Ou seja, já não vejo tais fenômenos como produtos tão somente da influência de dada cultura sobre as pessoas — estas que, na visão culturalista, seriam passivelmente modeláveis por aquela, como massinhas de moldar.
Feitas estas observações, apesar deste desacordo quanto ao que realmente estaria “por detrás” do fenômeno social aparente, reconheço (com admiração) que antropólogos como DaMatta realizam o que eu chamaria de uma impecável “estratigrafia superficial” da cultura observada, ao menos no sentido de nos oferecem uma descrição e uma análise acuradas desse nível aparente, bem como de suas camadas imediatamente inferiores. E é exatamente em virtude dessas descrições e análises que me deleito com suas obras.
Foi com prazer, a propósito, que li os excelentes ensaios reunidos em A casa & a rua (1984), em especial o texto intitulado “A questão da cidadania num universo relacional” [1]. Nele, desenvolvendo sua metáfora da casa e da rua como alusões aos espaços sociais privado e público, respectivamente, DaMatta destaca como nossa cultura (não apenas a brasileira, como também a latino-americana) está profundamente marcada pela transferência, para o universo público, do tipo de relações interpessoais que normalmente as pessoas estabelecem no âmbito familiar, na esfera “da casa”. Como salienta o autor, isso, na prática, cria entre nós um sério paradoxo não apenas quanto à noção de direitos, mas também quanto à ideia mesma de cidadania.
Em suas palavras,
o que o caso brasileiro inegavelmente revela é que a noção de cidadania sofre uma espécie de desvio, seja para baixo, seja para cima, que a impede de assumir integralmente seu significado político universalista e nivelador. [...]
Mas qual é o mecanismo social para que tal variação venha a ocorrer? Ou melhor: por que a noção de cidadania sofre tal variação no Brasil, quando o que a caracteriza em sociedades como a inglesa, a francesa e a norte-americana é a sua invejável estabilidade?[2]
A fim de responder sua indagação retórica, o autor contrapõe o modelo de cultura relacional que se estabeleceu na América Latina e, em especial, no Brasil, ao modelo cultural estadunidense, outra sociedade que também tivera a oportunidade de estudar diretamente. O fato é que, se obviamente a cultura meritocrático-individualista que se verifica nos Estados Unidos acarreta seus próprios desdobramentos negativos (de um ponto de vista naturalista, por dar vazão a traços um tanto daninhos da natureza do Homo sapiens), por outro lado, ela evita que conceitos valorizados não só numa dada sociedade, mas tidos em comum apreço na maior parte do mundo desenvolvido e em desenvolvimento, acabem sofrendo a mutação aberrante que neles se constata em sociedades relacionais como a brasileira.
Segundo DaMatta, nosso modelo de sociedade constitui
um modo de organização burocrática, onde o todo predomina sempre sobre as partes e a hierarquia é fundamental para a definição do papel das instituições e dos indivíduos. Isso explicaria certamente o chamado “individualismo” (ou “personalismo”; ou, ainda, “caudilhismo”) brasileiro e latino-americano como uma modalidade de reação às leis do Estado colonizador, em oposição ao individualismo norte-americano (e anglo-saxão), que é criador de leis.
Em outras palavras, enquanto o processo histórico brasileiro (e da América Latina) foi no sentido de ter de abrir um espaço social e político para as manifestações individuais e locais, já que tudo está rigidamente previsto e dominado pelo centralismo político, legal e religioso, o processo histórico norte-americano é no sentido de engendrar leis que possam inventar, estabelecer ou até mesmo salvar totalidades maiores e mais inclusivas que os sistemas locais.
No Brasil, o individualismo é criado com esforço, como algo negativo e contra as leis que definem e emanam da totalidade. Nos Estados Unidos, o individualismo é positivo e o esforço tem sido para criar a unidade ou a union: a totalidade.[3]
O que essa distinção entre culturas representa na luta pelos direitos civis dos grupos sociais, em especial das minorias sociais? Muita coisa, na  verdade. Muita coisa de ruim. Afinal, como o próprio autor salienta, a forma como essas duas culturas se estabeleceram faz com que um mesmo conceito adquira aqui e lá significações bem distintas na prática. É o caso, por exemplo, do que ocorre com a ideia de cidadania ou o conceito de cidadão.
Recentemente, lendo notícias de jornais americanos pela internet, deparei-me com uma do Washington Post[4] sobre a condenação de um policial num tribunal do júri federal por ter espancado um prisioneiro numa delegacia, o qual supostamente não só o teria insultado repetidas vezes, como também ameaçado sua esposa e filha. O policial, conforme argumentos da defesa, teria aguentado tudo isso, até que chegou a seu limite. Os jurados não quiseram nem saber: ele havia violado os “civil rights” [direitos civis] de outro cidadão americano, e isso era inaceitável.
Por sua vez e coincidentemente, anteontem, um conhecido meu relatava a algumas pessoas, dentre as quais eu me encontrava, a terrível experiência por que haviam passado alguns parentes seus, em João Pessoa, cuja casa fora invadida por um pequeno grupo de homens armados. Durante o tempo em que permaneceram na residência, os assaltantes espancaram a dona da casa e seu filho, e molestaram sexualmente a filha, de 15 anos. Por fim, foram embora, levando o dinheiro que conseguiram e alguns bens da família.
O que é curioso nessa história, em comparação com a notícia do Washington Post, foram as palavras desse meu conhecido, ao concluir seu relato. Ele informou que tinha outro parente, que trabalhava como agente penitenciário na capital paraibana, o qual estava só esperando a polícia “botar as mãos” nesses bandidos. Isso porque, mesmo que não fossem mandados para onde o sujeito trabalhava, ele tinha seus contatos nos outros presídios. O grupo que havia invadido a casa dessa família com quem o agente penitenciário tinha relações aprenderia sua lição, não importava onde acabassem trancafiados.
Pois é exatamente essa uma das características mais acentuadas numa cultura relacional como a nossa, em comparação com uma cultura mais individualista e meritocrática como a norte-americana. Conforme DaMatta destaca em seu ensaio, nos Estados Unidos, quando alguém evoca seus “civil rights” ou quando uma autoridade reconhece que não pode fazer nada contra fulano ou sicrano porque são, afinal de contas, “American citizens” [cidadãos americanos], percebe-se que há naquela sociedade a consciência de que existe uma lei universalizante, que a todos submete. No Brasil, por outro lado, o que importa são suas relações sociais; ser cidadão e evocar direitos civis coloca-nos numa posição diametralmente oposta por aqui.
Com efeito, a palavra “cidadão” é usada sempre em situações negativas no Brasil, para marcar a posição de alguém que está em desvantagem ou mesmo inferioridade. Quando se diz: “o automóvel pertence àquele cidadão”; ou “o cidadão não tem todos os documentos em ordem”, sabe-se que o tratamento universalizante e impessoal é utilizado para não resolver e/ou dificultar a resolução de um problema. Nesse contexto, nada é mais revelador do que a resposta invocadora da cidadania brasileira, no meio de um comício político tenso e proibido pela polícia. De fato, falar em alto e bom som que se é um cidadão brasileiro é sofrer, em situações como essas, penalidades brutais. Querer ser um cidadão para fazer crítica ao governo é às vezes tão negativo quanto ter de ser um cidadão para poder ser preso e maltratado pela autoridade pública. Daí todo brasileiro estar certo de que, quando está numa delegacia de polícia, seus direitos políticos (e civis) ficam lá fora, na sua casa: junto aos amigos e colegas.[5]
Isso porque, em nossa sociedade, princípios universalizantes como a cidadania, embora embutidos no discurso ético e político, embora expressos em nossas leis codificadas, traduzem-se na experiência social como meras… ficções. Nada mais. Pensem, por exemplo, em que situações um brasileiro reclamaria “Mas eu tenho direito a isso”, ou afirmaria “Pois saiba que eu sou um cidadão brasileiro”. Não faço ideia de que cenários vocês, leitores, imaginaram, a fim de contextualizar esses enunciados, mas de uma coisa eu tenho certeza: a pessoa em questão não está apenas sendo prejudicada de alguma forma; ela também está, seguramente, vivenciando algum tipo de humilhação no espaço público.
Isso porque, numa cultura relacional, menos vale “ser cidadão” do que ser uma pessoa “bem relacionada”. Aqui, com muito mais frequência do que em sociedades individualistas, pouco relacionais, se os documentos do “cidadão” não se encontram em situação regular, a multa poderá ser prontamente “perdoada” e a irregularidade, “esquecida”, caso a pessoa se revele irmão de um importante juiz daquela localidade ou genro de um influente senador, ou — quem sabe? — sobrinho do coronel ao qual o policial se encontra submetido, ou, até mesmo, se ele for um simples colega policial (um membro da mesma corporação), passeando num dia de folga. Além disso, como não surpreende nem um pouco a conclusão, é sobretudo numa cultura marcadamente relacional que ganha força inimaginável o revoltante hábito da “carteirada” — a notória atitude de uma pessoa, reivindicando direitos especiais em face do tratamento que deveria ser universalmente dispensado, indagar: “Você sabe com quem está falando?”
Assim, o grande problema diante do qual nos encontramos é que, numa cultura como a nossa, defender-se invocando seus “direitos” já é um fator a pesarcontra você, “cidadão”: significa, antes de tudo, que, se precisa apelar para seus direitos civis, é porque estes não estão sendo prontamente reconhecidos (é óbvio!), e isso, portanto, implica que você não tem relações com as “pessoas certas”, mediante o que o reconhecimento de seus direitos impor-se-ia de antemão ou tão logo a informação se tornasse conhecida (um tipo de inferência que é igualmente óbvia apenas enquanto induzida pelo modelo de cultura sobre a qual se assentou a sociedade brasileira).
Mas se nos perguntarmos por que nos adaptamos tão bem a esse modelo de cultura — um pergunta importante, convém salientar —, a resposta, indo além das explicações culturalistas, muito provavelmente estaria em certos aspectos de nossa natureza, sobre os quais discorri em outro ensaio aqui publicado.[6]Culturas relacionais dão maior vazão à espontânea propensão humana à identificação e filiação grupais — isso, para não mencionar a prática do nepotismo —, o que torna mais difícil a construção e o estabelecimento de uma moralidade, uma ética e, até mesmo, uma lei que se imponha com eficácia, de modo universalizado.
DaMatta, ainda comparando a sociedade estadunidense e a brasileira como exemplos antitéticos, destaca que,
nos Estados Unidos, o indivíduo isolado conta como uma unidade positiva do ponto de vista moral e político; mas no Brasil o indivíduo isolado e sem relações, a entidade política indivisa, é algo considerado altamente negativo, revelando apenas a solidão de um ser humano marginal em relação aos outros membros da comunidade. Realmente, o que mais chama atenção no caso brasileiro é essa capacidade de relacionar numa corrente comum não só pessoas, partidos e grupos, mas também tradições sociais e políticas diferentes. A comunidade norte-americana seria homogênea, igualitária, individualista e exclusiva; no Brasil ela seria heterogênea, desigual, relacional e inclusiva. Num caso o que conta é o indivíduo e o cidadão; noutro, o que vale é a relação.
Isso permitiria explicar os desvios e as variações da noção de cidadania. Pois se o indivíduo (ou cidadão) não tem nenhuma ligação com pessoa ou instituição de prestígio na sociedade, ele é tratado como inferior. Dele, conforme diz o velho ditado brasileiro, quem toma conta são as leis. Mas se a categoria profissional (os trabalhadores como cidadãos e não mais como empregados) tem uma ligação forte com o Estado (ou governo), então, eles podem ser diferenciados e tratados com privilégios. É a relação que explica a perversão e a variação da cidadania, deixando perceber o que ocorre no caso das diversas categorias ocupacionais no Brasil, onde formam uma nítida hierarquia em termos de sua proximidade do poder, ou melhor, daquilo que representa o centro do poder.[7]
Quem é que, tendo assistido aos noticiários nos últimos 10 ou 20 anos, poderia pôr em questão essa descrição de como as coisas funcionam no Brasil? (E o ensaio de DaMatta foi originalmente escrito na década de 1980, convém lembrar.) Além disso, a fim de ilustrar como os privilégios gerados por aquilo que uma pessoa representa no quadro das relações hierárquicas sociais acabam por minar o propósito nivelador de conceitos como cidadania, principalmente em culturas relacionais como a nossa, DaMatta alude a um exemplo cotidiano, com que todos estamos familiarizados. O autor comenta sobre o fato de brasileiros normalmente demonstrarem um irritado estranhamento perante o respeito “moralista” que as pessoas, em países como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos, têm para com a ordem nas filas em bancos, supermercados, lojas etc.
Em países como esses, não é bem visto nem mesmo o “jeitinho” brasileiro de se deixar alguém guardando lugar na fila do supermercado, por exemplo, enquanto outro faz as compras. DaMatta cita ainda uma observação de Érico Veríssimo quanto a esse hábito entre os americanos, em que o escritor gaúcho destacou que, entrassem numa dessas filas um soldado, um sargento e um tenente, por exemplo, respectivamente nessa ordem de chegada, não haveria nada que impusesse ao soldado o dever de ceder seu lugar a qualquer um dos outros dois.
Mais um detalhe relevante para o qual DaMatta chama a atenção é o resultado revelado por um questionário que ele próprio apresentara a estudantes de pós-graduação, em que a resposta para a indagação “Como você classifica a pessoa que obedece às leis no Brasil?” havia sido, invariavelmente, negativa. Em geral, a opinião fora a de que o brasileiro que obedece a todas as leis é uma pessoa inferior e sem recursos — é um “babaca”, como um desses estudantes grosseiramente respondera —, cuja conduta denuncia ausência de relações influentes.
Como salienta o renomado antropólogo fluminense, estamos tão imersos nessa cultura acentuadamete relacional (que, de minha perspectiva naturalista, como já disse, fomenta ainda mais nossa problemática tendência natural à filiação grupal), que mal nos damos conta de como isso turva nossa visão, impedindo-nos de enxergar direitos alheios mesmo nas esferas mais triviais da experiência social. Por exemplo, por que nos sentimos constrangidos por ter de cobrar de um amigo por um serviço profissional a ele prestado, pelo qual este “se esqueceu” de pagar? E por que esse mesmo amigo não raro se sente no direito de se magoar ou se indignar por você lhe estar cobrando pelo serviço em questão? Ou, em outro exemplo, por que é algo imperdoável exigir de seu patrão um benefício a que você tem direito por lei, só porque ele lhe arrumou o emprego em consideração à amizade de longa data mantida com seu pai?
Como bem lembra DaMatta,
clamar pelos seus direitos como empregado, estudante, cidadão ou indivíduo, [...] [acaba se revelando] abrir mão de suas relações sociais talvez mais importantes. Sobretudo das relações de parentesco, família e amizade. [...] [N]ão posso cobrar um trabalho ou falar de dinheiro com um amigo; mesmo que ele me deva uma dada quantia pelo trabalho que realizei. [...] [Isto porque, neste caso], trata-se de um modo de abrir mão de identidades relacionais, o que é sempre visto negativamente no Brasil.[8]
Enfim, ao longo de todo o ensaio de Roberto DaMatta, somos confrontados com essa descrição nem um pouco romantizada de nossa cultura e de como esta prejudica, entre nós, a consolidação de noções indispensáveis em nossos tempos, como, por exemplo, cidadania e direitos humanos. Como podemos chegar a nos aceitar como uma totalidade de iguais enquanto cidadãos e enquanto seres humanos — uma percepção que já colide frontalmente com nossa predisposição natural ao favorecimento de grupos de pares[9] —, se a toda hora vemos essa pretensa igualdade ser chutada para escanteio por uma tradição fortemente relacional que se revela a espinha dorsal que mantém erguida nossa sociedade?
Quem, como nós, humanistas seculares, luta pelo reconhecimento de direitos universais numa sociedade relacional como a nossa tem de estar ciente dessas relações e do que elas implicam. Se defendemos o direito dos homossexuais ao casamento civil, o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, a legalização do aborto etc.; se nos opomos à discriminação de negros, mulheres, homossexuais e ateus; se criticamos a aprovação da homeopatia como especialização médica ou a aceitação de cartas psicografadas supostamente ditadas por espíritos de pessoas assassinadas como evidência em processos criminais[10], estamos enfrentando muito mais do que apenas aquelas estatísticas que refletem a chamada “opinião pública nacional” sobre cada um desses temas. Em cada uma dessas discussões, temos de enfrentar tanto a crença popular acerca da questão quanto o lobby de pessoas influentes e suas relações na esfera do poder político e legislativo.
Como exigir, por exemplo, que não mais se aceite a homeopatia como especialidade médica no Brasil, se figuras com autoridade para influir diretamente nessa questão mantêm “boas relações” com pessoas que lucram com a prática ou com aquelas que julgam ter sido beneficiadas por ela, enquanto pacientes? Mesmo que a opinião pública se voltasse contra a prática homeopática, a existência dessas supramencionadas relações contaria como um fator à parte com que lidar, a fim de vermos a homeopatia retirada do quadro das especialidades médicas.
Enfim, para concluir este texto sobre esse sério problema detectado em nossa cultura, que Roberto DaMatta tão bem descreveu, citarei um excerto de seu ensaio, em que ele narra como poderia ser a imaginária chegada de um grande observador como o aristocrata francês Alexis de Tocqueville (1805 – 1859) no Rio de Janeiro de nossos dias, entrando pelo aeroporto do Galeão. Segundo o autor, o visconde de Tocqueville, após observar o que ocorre no desembarque de passageiros de voos internacionais, bem provavelmente escreveria em sua caderneta de campo:
“Curioso país esse Brasil, feito de um credo liberal tão alardeado na base de suas instruções jurídicas, mas operando de modo a privilegiar as relações pessoais de modo tão flagrante. Vi na chegada ao Rio o estabelecimento de hierarquias inesperadas entre as pessoas, só porque algumas tinham conhecidos ou parentes entre os funcionários do aeroporto. Assim sendo, tais indivíduos eram chamados e deixavam as filas, mesmo quando tinham nos seus empregos e ocupações uma posição menos importante que a de muitas pessoas que continuavam nas filas. Observei”, continuaria ele, “que ser estrangeiro dava direito imediato a um melhor tratamento do que ser um nativo. De fato, verifiquei que meu passaporte francês era quase mágico, evitando maiores delongas junto ao funcionário que manipulava um moderníssimo computador cujo banco de dados fica à disposição da polícia. Curioso”, concluiria novamente o nosso imaginário e perplexo Alexis de Tocqueville, “que num país tão pobre de recursos os bancos de dados ultramodernos tenham sido implantados primeiro para o controle policial dos cidadãos do país e até hoje a pesquisa científica vegete em busca de verbas para essas máquinas. Será que o liberalismo brasileiro tem uma bela teoria de igualdade, mas na prática tudo é diferente?”[11]
É essa a indagação com que ficamos hoje.

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NOTAS
[1] DaMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, “Cidadania”, p. 65-95.
[2] Id., ibid., p. 75.
[3] Id., ibid., p. 76, grifos do autor.
[4] KINNARD, Meg. Ex-SC deputy found guilty in inmate beating case.Washington Post, 3 fev. 2011. Disponível em: Washington Post.
[5] DaMATTA, op. cit., p. 80, grifos meus.
[6] GOMES JR., Camilo. Nós e o resto: por que os humanos não se veem como iguais. A voz da espécie, 4 jan. 2011. Disponível em: A voz da espécie e Bule voador.
[7] DaMATTA, op. cit., p. 77-78, grifo do autor.
[8] Id., ibid., p. 82-83.
[9] Vide texto citado na nota número 6, acima.
[10] “No Brasil, em alguns casos, a psicografia foi utilizada como prova em tribunal. Em pelo menos quatro casos envolvendo homicídio:
  • num homicídio em Goiás, cometido a 10 de fevereiro de 1976, cuja vítima foi Henrique Emmanuel Gregoris;
  • em outro, também em Goiás, a 8 de maio de 1976;
  • em um ocorrido no Mato Grosso do Sul, a 1 de março de 1980; e
  • em um no Paraná, cometido a 21 de outubro de 1982.
Um dos casos mais recentes registrou-se em maio de 2006, em Porto Alegre (RS), tendo a ré, Iara Marques Barcelos sido inocentada do assassinato do ex-amante, Ercy da Silva Cardoso, graças a uma carta que teria sido ditada pelo falecido. Mais recentemente, em 17 de maio de 2007, o julgamento do réu, Milton dos Santos, pelo assassinato de Paulo Roberto Pires (o ‘Paulinho do Estacionamento’) em abril de 1997, foi suspenso devido a uma carta recebida pelo médium Rogério Leite em uma sessão espírita realizada em 2004, na qual Paulinho inocenta o acusado” (Fonte: Wikipédia).
[11] DaMATTA, op. cit., p. 74-75.

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