Parceria entre Agência Pública e O Eco vai mapear o aumento dos investimentos do BNDES em projetos de infraestrutura na região. Obras financiadas pelo banco são acusadas de disfarçar impactos ao meio ambiente, populações indígenas e trabalhadores.
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Em uma das onze aldeias dos índios Arara do Rio Branco no noroeste do Mato Grosso, Anita Vela Arara, a mais velha da sua comunidade (tem 89 anos), está inconsolável. É que a “tia Nita”, como é conhecida, assistiu à construção de um gigante de concreto sobre o cemitério tradicional da aldeia, onde estavam alguns de seus familiares. Entre eles, sua mãe e sua avó. Segundo Audecir Rodrigues Vela Arara, um dos líderes indígenas e presidente do Instituto Maiwu, sua tia sabe quem é o culpado: a hidrelétrica de Dardanelos, obra de cerca de R$ 745 milhões, mais da metade desse valor financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Uma das primeiras menina-dos-olhos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, a usina foi construída entre 2007 e 2011 no rio Aripuanã, tirando proveito do potencial hidrelétrico da área do Salto de Dardanelos, um complexo de cachoeiras com mais de 150 metros de quedas d’água que são o cartão-postal do município de Aripuanã. Há diversas espécies que só foram encontradas no local, como o peixe-chinelão, catalogado em 2011. Os estudos de impacto da hidrelétrica identificaram 316 espécies de aves, 133 de peixes, 50 de anfíbios e 67 de répteis que vivem na área afetada diretamente por Dardanelos. Além disso, os Arara do Rio Branco, grupo de cerca de 200 indígenas segundo dados da Funasa, resistem na região, isto depois de quase terem sido dizimados nas décadas de 1950 e 1960 devido a epidemias de gripe e varicela, resultado do desastroso contato com seringueiros, ou por conflitos com grileiros partir da década de 1970.
Audecir Arara ainda se lembra da primeira Audiência Pública de esclarecimento sobre os estudos de impacto ambiental de Dardanelos, em agosto de 2005. “A empresa trouxe a proposta de construção da usina e disse que não teria muito impacto, mas isso era a estratégia para as pessoas concordarem com a obra. O município aceitou porque seria beneficiado e os únicos que foram contra eram as comunidades indígenas, que seriam as mais afetadas”. A Terra Indígena Arara do Rio Branco, com 114 mil hectares, foi considerada Área de Influência Indireta (AII) por não estar localizada diretamente na área da hidrelétrica. Na área de Aripuanã, há ainda mais três Terras Indígenas reconhecidas, a TI Aripuanã, a TI Parque Aripuanã e a TI Zoró. De acordo com a Coordenação Geral de Identificação e Delimitação da Funai, há outras áreas reivindicadas no município.
Pouco depois, o Ministério Público Estadual de Mato Grosso (MPE-MT) ajuizou ação civil pública contra a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e todas as empresas envolvidas: a Eletronorte, a Odebrecht e a Leme Engenharia(pertencente ao grupo Francês de energia GDF Suez), além da consultoria Projetos e Consultorias de Engenharia (PCE). A ação pediu o anulamento do estudo de impacto ambiental (EIA/Rima) devido a “seríssimos vícios de legalidade”. O MPE alegava ausência de aprovação junto ao Conselho Estadual de Meio Ambiente, falta de estudos de impactos fora dos limites do município, além de não serem indicadas alternativas de locação para implantação da usina. Também apontou que os estudos sequer consideraram a instalação das linhas de transmissão de energia, omitindo tanto os impactos decorrentes quanto os custos. “É certo que ninguém constrói uma hidrelétrica para não ter linhas de transmissão para fazer escoar a energia. Dessa maneira, não tem o menor cabimento o entendimento dos empreendedores, no sentido de que a construção das linhas de transmissão representaria um empreendimento paralelo ao ora licitado”, diz o texto da ação.
Para Dorival Gonçalves Júnior, professor de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Mato Grosso consultado na época pelo MPE, a omissão do impacto das linhas de transmissão de Dardanelos no EIA/Rima coloca em questão a viabilidade do empreendimento. “Quando se analisava a hidrelétrica no mapa, você percebia que ela somente poderia ser ligada ao Sistema Interligado Nacional através dos Municípios de Sinop ou de Jauru. Isso obrigava a construção de uma linha de mais de 500 km. Além disso, durante a seca, o rio passa um longo período, de mais de 90 dias, com vazão muito baixa. Ou seja, durante mais de três meses do ano a hidrelétrica praticamente não estará produzindo energia, que é justamente quando ela poderia contribuir com o sistema nacional, visto que a eletricidade produzida em Dardanelos é direcionada para o Sudeste. É uma obra extremamente cara e, quando você soma o custo da construção da linha de transmissão ao que ela produz, não é viável técnica, econômica ou ambientalmente, pelo impacto ao potencial turístico do município”, critica. Pelo seu potencial turístico, a área do Salto de Dardanelos faz parte do Programa de Desenvolvimento do Ecoturismo do Governo Federal (Proecotur).
O biólogo e professor da UFMT, Francisco de Arruda Machado, também participou do grupo de especialistas que embasou a ação do MPE. Ele e outros pesquisadores passaram cerca de 30 meses realizando viagens constantes à região para identificar problemas na central hidrelétrica de Faxinal, próxima ao local onde foi construída Dardanelos. “Trechos encachoeirados de rios na Amazônia têm características próprias e Dardanelos é um exemplo máximo disso, com uma biota ímpar, tanto de espécies vegetais como animais. Diga-se de passagem que a região toda trata-se de um “hot spot” da biodiversidade brasileira e da Amazônia”, descreve. Segundo o pesquisador, a baixa produtividade da usina foi um dos argumentados contrários à construção da hidrelétrica, pois não compensaria o risco ambiental. “No próprio projeto da construção de Dardanelos está mencionado que ela poderá funcionar no máximo sete meses por ano, pois por durante cinco meses de seca anuais não haveria como tocar a usina. Então, por que construir essa UHE se ela somente iria produzir energia nos meses de pico da produção do país?”, questiona.
O Ministério Público também criticou a construção de um parque aquático na área da hidrelétrica, o Balneário Oásis, com piscinas, quadras de vôlei e basquete e campo de futebol, que foi apresentado à população apesar de não ser objeto dos estudos de impacto ambientais da usina. Segundo a ação civil, a apresentação do balneário teve a finalidade de manipular a opinião da população para aprovação de Dardanelos.
Ainda em setembro de 2005, o MPE-MT ajuizou liminar para suspender a licitação da usina, decisão que foi cassada pela Justiça de Mato Grosso, a pedido do Governo do Estado – na época comandado por Blairo Maggi (PR-MT), premiado com o” motosserra de ouro” pelo Greenpeace. Em seguida, em dezembro de 2005, Dardanelos foi excluída do Leilão de Compra de Energia Elétrica Proveniente de Novos Empreendimentos de Geração, realizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) devido a um parecer contrário do MPE. Entretanto, a vitória dos MPs foi curta. Em janeiro de 2006, a então ministra da Casa Civil e atual presidente, Dilma Rousseff, incluiu Dardanelos em um novo pacote de licitações de hidrelétricas que foi aberto em maio.
Em outubro do mesmo ano, o consórcio Energética Águas da Pedra S.A, formado pela Neoenergia, Eletronorte, Odebrecht e Chesf venceu o leilão para venda de energia da hidrelétrica. Em maio de 2007, era emitida a licença ambiental para Dardanelos e, em setembro, começavam as obras de construção da usina.
O exemplo de Dardanelos
Descrita como “um exemplo de como construir sem destruir” segundo a revista institucional da Eletronorte, em menos de dois anos, Dardanelos transformou a vida no território dos Arara do Rio Branco. “Vixe, mudou muita coisa, viu?”, diz Audecir Arara. Segundo o líder indígena, o estouro das dinamites em áreas muito próximas às aldeias afastou diversos animais que serviam de caça, como o mutum, ave típica do sul do Amazonas. “As cachoeiras daqui também estão bem mais secas. Teve também a questão social porque o fluxo de gente para trabalhar na construção da usina foi muito grande”, diz. Além disso, Audecir aponta a destruição do cemitério tradicional da aldeia, onde estavam os antepassados da “tia Nita”, anciã do grupo. “Ela está muito triste, em parte é por causa dela que estamos brigando. Queremos as urnas de volta para montar um museu aqui na aldeia”. Segundo a publicação da Eletronorte, foram doadas ao Instituto do Homem Brasileiro, na capital Cuiabá – a mil quilômetros dali – cerca de 100 mil peças arqueológicas recuperadas na área de influência de Dardanelos, dentre cerâmicas, panelas e urnas mortuárias que podem datar de sete a 15 mil anos.
Segundo o biólogo e mestre em arqueologia Francisco Stuchi, que desenvolveu pesquisas etnoarqueológicas na região, investigações anteriores a Dardanelos já apontavam a área como antigos territórios indígenas, especificamente o local de contato dos povos Arara do Rio Branco e Cintas-Largas com a sociedade não indígena e ponto de convergência de outros povos da região. “Entre 2007 e 2009, pesquisas arqueológicas na área do empreendimento identificaram e escavaram sítios grandes e densos podendo ser interpretados como locais de habitação e os ditos cemitérios constituídos de urnas funerárias. As datações obtidas nas escavações revelam uma longínqua presença indígena no local, remetendo a mais antiga de 7.700 antes do presente (AP), além de datas que apontam 4 mil, 2 mil, 1,5 mil até 150 anos atrás”, explica.
Ainda de acordo com o pesquisador, os grupos indígenas reivindicaram o direito sobre esses sítios, o que gerou uma exigência por parte da Funai e do Iphan da realização de pesquisas etnoarqueológicas para demonstrar a relação destes povos com os sítios de Dardanelos. “Esta pesquisa, ainda em andamento, já conta com mais de uma centena de antigas aldeias localizados na região, além de relatos orais e outras informações que estão sendo analisadas, mas preliminarmente corroboram com as pesquisas antropológicas e as reivindicações indígenas que ainda veem Dardanelos com um local de importância sagrada”, acrescenta Stuchi.
Como explica Gilberto Vieira dos Santos, conselheiro regional do Conselho Indigenista Missionário, a comunidade indígena, que também inclui os índios Cintas-Largas, tenta agora uma negociação de compensações pela perda arqueológica, embora nenhuma compensação vá “dar conta do que foi perdido”. “A gente fala em sítios arqueológicos, cemitérios, mas para eles são uma parte da história que foi apagada”, acrescenta. O conselheiro aponta que os índios, junto a organizações de defesa do meio ambiente e ativistas, pretendem se articular para formar um comitê regional de defesa do território indígena, sobretudo frente aos interesses de hidrelétricas e mineradoras. Apenas no rio Aripuanã, há outras três pequenas centrais hidrelétricas, Juína e Faxinal I e II). A empresaVotorantim já possui um projeto em andamento para extração mineral em Aripuanã previsto para começar ema 2016, com produção anual de 60 mil toneladas de zinco, 20 toneladas de chumbo e 4 mil toneladas de cobre, além de ouro e prata como subprodutos. “É um modelo de desenvolvimento que não pensa as comunidades tradicionais, que não são ouvidas e apenas são procuradas para apresentação do projeto em linguagem técnica, da qual eles só entendem que serão prejudicados. Ou então para apresentar supostas compensações”, critica Gilberto.
Além do impacto aos grupos indígenas, a hidrelétrica pode ter trazido perdas ambientais sérias. O estudante de doutorado do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Mato Grosso, Ricardo Alexandre Kawashita Ribeiro, realizou um monitoramento de anfíbios e répteis a partir de 2004 na região do Salto de Dardanelos e acompanhou o início da instalação do canteiro de obras da usina. De acordo com o pesquisador, a área onde foi construído o canal de Dardanelos concentrava um grande número de espécies, atualmente uma das regiões com maior diversidade de anfíbios e répteis da Amazônia Legal brasileira. “Provavelmente, a construção do canal impactou negativamente as populações que naquele local residiam e pode ter até provocado extinções locais de algumas espécies. O Aripuanã é uma região de altíssimo potencial biológico por concentrar uma riquíssima biodiversidade, e deveria ser mais valorizada pelos órgãos ambientais”, explica.
Em janeiro de 2008, ainda durante a construção da usina, ocorreu uma das últimas tentativas de questionamento aos estudos de impactos ambientais da obra. Na época, a Justiça acatou o pedido de 2005 do Ministério Público Estadual e barrou a construção da Dardanelos. A liminar foi suspensa em julho do mesmo ano pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região – o mesmo tribunal responsável por autorizar o leilão da hidrelétrica em 2006. A usina também foi ocupada por índios dos povos Arara do Rio Branco e Cintas-Largas pelo menos três vezes entre 2010 e 2011, que fizeram funcionários reféns para exigir compensações pelos impactos ambientais. Segundo a assessoria do MPE, atualmente há um inquérito civil instaurado para acompanhar se o consórcio de Dardanelos está cumprindo as medidas mitigadoras. Além disso, a Odebrecht foi condenada, em 2013, a multa de R$ 2 milhões pelo Ministério Público do Trabalho por prática de terceirização ilícita e descumprimento de inúmeras normas de saúde e segurança, após ser considerada culpada pela morte de um trabalhador nas obras da hidrelétrica em 2009. Apesar de todos as contestações judiciais, a ANEEL liberou o início da operação comercial de Dardanelos em agosto de 2011.
Por trás dos obras, o Banco do Desenvolvimento
Dardanelos foi uma das primeiras hidrelétricas do Programa de Aceleração do Crescimento durante o Governo Lula. Com um custo de cerca de R$ 745 milhões, a maior usina do Mato Grosso teve financiamento de mais de R$ 485 milhões através do BNDES – o que supera 65% do valor da obra.
O contrato foi aprovado em outubro de 2008, quando a hidrelétrica já estava em construção, e colocou Dardanelosdentre os 20 maiores financiamentos do BNDES desde 2008 na área de infraestrutura no Brasil, segundo apuração realizada pela Agência Pública em parceria com O Eco.
A lista é encabeçada pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, com um acordo de mais de R$ 25 bilhões apenas para o consórcio Norte Energia. Não por acaso, cerca de metade dos 20 maiores financiamentos do banco em infraestrutura nos últimos cinco anos é relativa a hidrelétricas ou linhas de transmissão de energia: trata-se das usinas de Belo Monte, Jirau (RO), Santo Antônio (RO), Teles Pires (MA e PA), Estreito (TO), Santo Antônio do Jari (AP e PA), Dardanelos e Ferreira Gomes (AP); além das linhas de transmissão Porto Velho-Araraquara da Norte Energia, do sistema do rio Madeira, e das linhas da Companhia Energética do Maranhão.
Desembolsos do BNDES em infraestrutura na Amazônia (2008-2012)
Ainda dentro dos 20 maiores financiamentos do BNDES nos últimos cinco anos, investimentos milionários no setor de energia também foram destinados às termelétricas de Eike Batista no Maranhão, as UTEs Parnaíba e de Porto de Itaqui (da MPX, que recentemente mudou seu nome para Eneva ). Juntas, elas receberam mais de R$ 2,3 bilhões do BNDES. O banco inclusive chegou a se pronunciar afirmando que postergou prazos, realizou mudanças nos cálculos de conta de reserva e adiou datas para o cumprimento de exigências técnicas em relação aos contratos com Eike.
O setor de energia tem sido, de longe, o mais beneficiado dentre os desembolsos da pasta de infraestrutura doBNDES – que tem aumentado de peso exponencialmente nos últimos cinco anos. Em 2008, primeiro ano do projeto Janela da Transparência, que disponibiliza na internet algumas informações sobre as operações de crédito do banco, dos R$ 35,1 bilhões desembolsados pelo BNDES, R$ 8,6 bi foram destinados ao setor de energia. Essa quantia saltou para R$ 14,2 bi em 2009, quando foram liberados R$ 48,7 bi para todos os projetos de infraestrutura. O número atingiu seu recorde histórico no ano passado, quando dos R$ 52,9 bi desembolsados pelo banco para infraestrutura, R$ 18,9 bi foram exclusivos para energia elétrica, cerca de 12% do total de liberações do BNDES em todo o ano, de R$ 156 bi. Dos quase R$ 19 bi liberados para energia elétrica em 2012, R$ 13,3 bi foram destinados às usinas e linhas de transmissão da região Norte do país.
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