Por Rubens Teixeira*
A sabedoria popular cunhou um slogan muito interessante: “cada macaco no seu galho” para identificar, dentre outras coisas que se pode entender, que cada pessoa deve ater-se à sua atribuição, ao que lhe compete no ambiente que vive. No mundo jurídico, nas normas que regem a gestão de processos, e em todo o ambiente que careça de uma organização mínima, há largo emprego deste conceito. Quanto mais razão houver para que haja a definição de atribuições, mais peso esta máxima terá. Quando se trata, por exemplo, de uma obrigação de órgão público, menos passível de usurpação será, em especial se for por instituição não integrante da administração pública.
Por outro lado, é importante considerar que algo ser constitucional ou legal não quer dizer que é bom, desejável, adequado ou benéfico. A legislação não pretende resolver todos os problemas da sociedade e do ser humano. Ela sequer atende o senso de justiça de todos os cidadãos. Por exemplo, ninguém pode ser acusado de crime se um moribundo morreu de fome ou de frio à sua porta, pois não há lei que obrigue qualquer cidadão a compartilhar seus recursos para alimentar ou agasalhar um desprovido de recursos. Assim, nem tudo que é constitucional ou legal é desejável e merece ser perenizado.
Pior ainda é se algo arranhar a Constituição, ainda que seja com alguma chancela. A coisa se agrava quando o que foi entendido ser constitucional ferir Direitos Fundamentais previstos na Declaração Universal de Direitos Humanos, cujo fórum julgador é um ente fora das nossas fronteiras e coloca em xeque as instituições nacionais. Julgamento fora de nossas fronteiras não está sujeito a injunções internas de interações entre instituições que deveriam ser independentes.
As pessoas e instituições têm suas prerrogativas e obrigações. No que diz repeito às instituições públicas no Brasil, a legislação estabelece as competências de cada uma. Dentre as obrigações do MEC, está a de estabelecer regras para o funcionamento das faculdades, incluídas, obviamente, as de Direito. A OAB deve fiscalizar a profissão de advogado. A OAB, por exemplo, pode ter opiniões sobre diversos temas e, frequentemente, exterioriza estas opiniões. Contudo, não pode avocar para si o direito de corrigir o que entende não estar de acordo com a sua visão.
Se ainda não está clara esta ideia, a elucidação vem do próprio Direito. Várias pessoas são diariamente incomodadas e, por vezes, têm seus direitos ultrajados. Quando isso acontece, o cidadão, mesmo que sofrendo prejuízos, em regra, não pode agir à sua própria maneira nem dar a solução que achar que deve, se for privativa do Estado a prerrogativa de definir de que lado está o direito. A iniciativa desastrada de alguém agir para resolver a sua pretensão, mesmo que legítima, e fazer valer um suposto direito seu, infringindo a lei ou o direito alheio, é o que se chama “exercício arbitrário das próprias razões”. No direito, não é uma mera desconformidade, mas é tipificado como crime no artigo 345 do Código Penal. Isto preserva o monopólio da violência que é do poder estatal.
Respeitadas a legislação, as instituições e as responsabilidades de cada uma, se o MEC precisa melhorar algo, a OAB não pode usar as suas razões de forma arbitrária para “proteger a sociedade das fragilidades do MEC”. Até porque todas as instituições e pessoas sempre têm algo a ser aprimorado. Será que a OAB aceitaria que uma consultoria independente avocasse para si o direito de certificar advogados em vários atributos não avaliados no Exame da OAB, como por exemplo, os advogados que melhor fazem sustentação oral, os melhores negociadores, os mais capazes de liderar equipes ou os que possuem maior equilíbrio emocional em momentos de crise e com isso “proteger a sociedade das fragilidades da OAB”? Afinal, são todos atributos relevantes ao exercício da advocacia, mas não avaliados no Exame da OAB.
Além de uma instituição não poder avocar para si atribuição de outra, a vedação se justificaria mais ainda quando se trata de prerrogativas de natureza pública, como a prevista no art. 209, II, da Carta Magna, que determina que o ensino terá “autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”. Como uma prerrogativa de um ente público poderia ser avocada por um ente não público, em especial quando afeta direitos fundamentais?
Outro instituto bastante relevante para se fazer um paralelo é quando alguém exerce uma profissão sem cumprir os requisitos da lei, mesmo que tenha habilidades pessoais e conhecimento para exercê-la. Trata-se do exercício ilegal da profissão, ilícito previsto na Lei das Contravenções Penais. Se é algo reprovável exercer indevidamente uma profissão, deixar de exercê-la por limitação indevida é algo que merece reprovação ainda maior, pois trata-se de um ataque ao direito constitucional ao livre exercício da profissão e leva, na mesma enxurrada de injustiça e truculência, o direito fundamental ao trabalho, que, quando atingido, arrasta outros direitos fundamentais, incluindo o direito à vida pois, sem trabalho, sem recursos para sobreviver, como pode um indivíduo íntegro se alimentar, se vestir, juntamente com a sua família?
Outro tema bastante relevante no direito é sobre a competência de pessoas e instituições de praticarem determinados atos. Um ato praticado por uma pessoa ou instituição que não esteja na sua esfera de atribuições é nulo, ou anulável, de acordo com o cenário estabelecido, as circunstâncias envolvidas e as disposições legais. Este tema merece destaque no debate a respeito do Exame da OAB porque se uma avaliação desta natureza deve existir, não deve ser a OAB que deve aplicá-la, mas o MEC. Por esta razão, em tese, ainda que pouco provável, todos os exames são passíveis de anulação, pois a OAB aplicou exames para selecionar profissionais que, pelas regras do MEC, cumpriram os requisitos para se formarem em Direito.
Como a OAB tem colocado em xeque a qualificação de profissionais que cumpriram as regras do MEC para obterem seus diplomas, está evidente que a prova é um crivo às faculdades. Ora, se a OAB não pode aprovar ou reprovar as ações do MEC, como poderia aprovar ou reprovar um profissional alegando que o curso que ele fez não está adequado em sua avaliação, se na avaliação do MEC está? Para que não fossem usadas arbitrariamente as razões de uma instituição para corrigir eventuais fragilidades da outra, ou mesmo um impedimento indevido ao livre exercício da profissão, ou mesmo uma prática de ato por instituição incompetente e, portanto, nulo ou anulável, era melhor que a OAB, familiar a todos estes conceitos, propusesse ao MEC que fizesse esta avaliação, ou sugerisse um modelo que entendesse apropriado, mas jamais aplicasse uma prova distante da realidade de se avaliar um profissional adequado ao mercado.
Bons profissionais e maus profissionais serão absorvidos ou rejeitados pelo mercado por meio de regras relacionadas a desempenho profissional que, dada a quantidade de fatores considerados, um exame aos moldes do que é aplicado pela OAB não é capaz de distinguir de forma segura um tipo de profissional de outro. Em função disso, há potenciais bons advogados que não conseguem aprovação no Exame da OAB e maus profissionais que conseguem esta aprovação. Ou seja, nem todos os que passam são bons profissionais e nem todos os que não passam seriam maus advogados. Se apenas um cidadão fosse injustiçado, já seria um tema relevante. Como tem característica de injustiça em série, agrava mais ainda a agressão contra direitos fundamentais caríssimos às pessoas.
Se o modelo aplicado no Exame da OAB fosse apropriado, era só propor ao MEC que o assumisse, corrigindo a distorção. Contudo, dada a discrepância do que se faz e o que se deveria fazer, é melhor o MEC assumir todo o processo e propor uma metodologia isonômica para avaliação de profissionais de todas as áreas e corrigir eventuais falhas na formação nas faculdades. Isto porque o MEC teria esta referência para aprimorar os parâmetros a serem exigidos às faculdades. A avaliação de profissionais de todas as áreas permitiria melhorias nos diversos cursos e aprimoramentos em profissionais com lacunas em suas formações.
Parece claro que a OAB não tem uma proposta de melhoria do ensino a ser apresentada ao MEC. Até porque, se tivesse, já teria implementado no que concerne a melhor seleção de advogados. É de se supor que o modelo apresentado é o que se conseguiu de melhor, embora não avalie habilidades relevantes de um advogado, como, dentre outras, as já citadas acima. Supor que nem mesmo as melhores faculdades do país, com alunos aprovados em seleções disputadíssimas e com professores do mais alto nível, conseguem ser boas o suficiente para formar, próximo a totalidade de seus alunos, profissionais minimamente preparados para a advocacia é uma mostra de que a prova, além de não testar requisitos importantes, está em desacordo, dentre outras coisas já citadas ou não neste artigo, com a razoabilidade, em especial porque muitos advogados militantes hoje não seriam aprovados nela.
Assim, fica muito difícil entender que o Exame da OAB não é um controle indevido do ingresso de profissionais no mercado, o que é claramente conflitante com o livre exercício da profissão previsto no artigo 5º, XIII, da Constituição Federal, exatamente nos direitos e garantias fundamentais. Também um injusto e gritante limitante ao direito fundamental ao trabalho, também previsto na Lei Maior e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em um país que historicamente luta contra a desigualdade social, contra a injustiça social, contra o desrespeito a direitos, contra o desemprego, é por demais contraditório que se prive a sociedade de mais advogados, classe de profissionais definida pela Carta Magna como “indispensável à administração da justiça”.
É certo que a educação é uma das áreas que o Brasil mais precisa avançar. O MEC tem tomado medidas para melhorá-la em vários níveis. Evidente que há ainda muito por fazer. Iniciativas e sugestões construtivas serão sempre bem vindas. Entretanto, colocar todas as limitações que se tenha em qualquer área, inclusive na educação, sobre o cidadão que não é o administrador de tudo isso, por si só, é um ataque aos direitos humanos. A educação é um direito fundamental. Se o cidadão, ao buscá-la, sob regência do poder público, nem assim tiver garantia de que seus cursos legitimados pelo poder público terá valor, é uma negação, não só do seu direito fundamental, mas de outros direitos relacionados aos recursos, expectativas, tempo de vida, e poderá estar sendo vítima de um dos maiores prejuízos que se pode impor à democracia: insegurança quanto aos seus direitos fundamentais.
Por esta razão, é importante ressaltar que as melhorias das quais o ensino é carente no Brasil devem ser implementadas pelo MEC e órgãos governamentais das três esferas de governo. Qualquer instituição ou pessoa que tenha críticas ou sugestões a fazer, deve formalizá-las ao poder público e propor soluções, como um gesto de cooperação. Apontar defeitos sem sugerir soluções pode parecer crítica vazia, ou argumentos para se tirar o foco do que realmente interessa e abrir caminho para soluções convenientes.
Avaliações do ensino precisam ser feitas em todos os níveis e devem servir para corrigir as falhas e melhorar a educação disponível ao cidadão. Estas avaliações não podem ser punitivas ou prejudiciais a cidadãos que acreditaram nas instituições públicas. As eventuais fragilidades existentes no sistema público ou privado de ensino devem ser corrigidas com expedientes que não ataquem direitos individuais, até porque, se o sistema funciona mal, o cidadão não é culpado, mas vítima dele.
As deficiências que temos em nosso país são nossas, não de uma instituição ou cidadão específico. Isso exige um esforço coletivo de solução, mas os direitos humanos nos impedem de apresentar soluções que sacrifiquem direitos fundamentais alheios. Não existe instituição brasileira maior que o Brasil. Nossos triunfos e nossos infortúnios são de todos, igualmente. Qualquer instituição ou pessoa que queira ser maior do que o país não age como se fosse parte dele e termina agredindo as instituições democráticas, alegando querer defendê-las.
A democracia é alinhada com o debate e não coaduna com soluções prontas que não suportam o intenso farol das ideias. Tais soluções antidemocráticas normalmente sustentam-se pelo preconceito e viabilizam-se com projetos exequíveis na penumbra, onde ficam protegidos da opinião pública. Querer ser pessoa ou instituição à parte não enaltece ninguém, mas pode evidenciar falta de amor ao Brasil do qual somos todos filhos e, com suas virtudes e defeitos, nos orgulhamos dele. Por isso queremos as instituições preservadas e nossos cidadãos respeitados, evitando ameaças geradas por consensos impostos por grupos que, por não conseguirem demonstrar o valor de suas ideias, impõem-nas pelo exercício arbitrário de suas próprias razões, como se tivessem a prerrogativa de estabelecer os limites da democracia quando, na verdade, violam esses limites.
* Rubens Teixeira é autor da Carta Aberta ao Congresso Nacional pelo fim do Exame da OAB. A carta, seu resumo, entrevistas e outros artigos do autor sobre o tema estão disponíveis em:http://www.rubensteixeira.com.br/site/?cat=200. É doutor em Economia (UFF), mestre em Engenharia Nuclear(IME), pós-graduado em auditoria e perícia contábil (UNESA), Engenheiro de Fortificação e Construção(IME), Bacharel em Direito (UFRJ - aprovado para a OAB/RJ), bacharel em Ciências Militares (AMAN), professor, escritor, membro da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra e da Academia Evangélica de Letras do Brasil.
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