Na mesa de bar ou nas redes sociais, o brasileiro reclama que políticos descumprem as leis - e cada vez mais sai às ruas por direitos. No cotidiano, porém, a transgressão de regras é frequente - desde o consumo de pirataria até a embriaguez ao volante. Para oito em cada dez brasileiros, é fácil desobedecer às normas. Sempre que possível, recorrem ao "jeitinho". As causas, segundo quem viola as regras, são falhas nas leis e o mau exemplo de autoridades.
A reportagem é de Victor Vieira, publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 06-06-2014.
Os números são da segunda edição do Índice de Percepção do Cumprimento da Lei (IPCL) da Escola de Direito daFundação Getulio Vargas (Direito GV), obtido pelo Estado com exclusividade. Entre 2013 e este ano, aumentou a quantidade de pessoas que admitem ilegalidades ou infrações, como as de trânsito. Na escala de zero a dez, o IPCLrecuou de 7,3 para 6,8 em relação a 2013. Participaram do levantamento 3,3 mil entrevistados em sete Estados e no Distrito Federal.
A agente de viagens Cristina, que preferiu adotar um pseudônimo, bateu o carro depois de beber. Pior: a jovem não tinha carteira de habilitação. "Você faz uma, duas, três vezes. Como não acontece nada, relaxa", reconhece ela, de 23 anos.
Apesar do recente endurecimento da lei seca, a mistura de álcool e direção foi admitida por 17% dos entrevistados pela Direito GV. "Por causa das blitze, trocava caminhos ou deixava de passar por ruas movimentadas. Nunca havia tido problemas", relata.
Ninguém se feriu no acidente de Cristina, mas a experiência negativa fez com que ela mudasse de postura. "Bati só em uma placa. Mas isso mexeu comigo. Não bebo e dirijo de novo. Já perdi amigos em situação igual." Ela ainda presta serviço comunitário como pena, que foi menor porque o exame não detectou a presença de álcool. Embora no comportamento muitos ignorem a lei, a pesquisa mostra que a maioria sabe que a prática é imprópria - 97% disseram que beber após dirigir é "errado" ou "muito errado".
Regras e exceções. Já o arquiteto Cauê Azevedo, de 24 anos, confessa usar carteira de estudante adulterada. "Estou com o curso trancado, mas não deixei de ser aluno. Como o documento da minha faculdade não vale mais, resolvi fazer um falso", argumenta. Mesmo para a irregularidade, Azevedo afirma adotar critérios. "Se o preço é baixo, às vezes nem uso. Mas não vou pagar caro para ir a um show e ficar em pé", afirma.
Azevedo acredita que um dos principais problemas é a defasagem de algumas leis. "Estão fora da realidade das pessoas", reclama ele, que também admite baixar séries de TV na INTERNET e ouvir música alta a ponto de incomodar os vizinhos. Para ele, os escândalos de corrupção políticos também levam às práticas irregulares. "Se a figura pública não é punida, por que isso acontecerá com quem comete delitos menores?", questiona.
Para evitar maus exemplos às três filhas, Élvio Freitas garante evitar desvios. "Elas precisam aprender o que é certo em casa. Sou bem 'caxias'", conta o pós-graduando em Direito, de 46 anos. Freitas afirma, no entanto, que já perdeu a carteira de motociclista por infrações. "O motivo foram ultrapassagens no farol vermelho: é perigoso parar em uma esquina de madrugada. Não arrisco minha vida só pela regra", justifica.
Vigilância social. A coordenadora do estudo, Luciana Gross Cunha, afirma que a certeza da punição, diferentemente do que se imagina, pesa menos do que o controle social no cumprimento das leis. "A preocupação é quanto a conduta gera de imagem negativa", afirma. Isso explica por que algumas ações, como a compra de produtos piratas ou atravessar fora da faixa de pedestre, são alvo de menos críticas, apesar de também irregulares. "Há uma permissividade, cultural e social, que interfere no comportamento", afirma.
Segundo ela, chama a atenção nos resultados o número de pessoas que admitem dirigir alcoolizadas, apesar das campanhas de conscientização. "É necessário pensar em como garantir o cumprimento das regras, mesmo depois de elas saírem das discussões diárias e dos meios de comunicação."
'Instituições não responderam aos protestos'
A sensação de desrespeito às leis é acompanhada por uma crise de legitimidade das instituições.
A pesquisa, feita após as manifestações de junho de 2013, evidencia baixa confiança no governo, nos partidos políticos, no Judiciário e na polícia.
"As instituições políticas e representativas não souberam responder aos protestos", avalia a professora da Direito GV Luciana Gross Cunha. O descontentamento popular com a corrupção no governo visto nas manifestações, entretanto, não se traduz em maior controle sobre o cumprimento de normas de um cidadão em relação ao outro. "Talvez aumente o pessimismo: se o outro faz, faço também. E, sem incentivo do governo ou da Justiça, não me comporto de acordo com a lei", diz.
Mendez, fotógrafo de 24 anos, não acredita em seguir regras a todo custo. "A lei supõe que somos a Suíça. Mas ando quarteirões com lixo na mão sem achar uma lixeira", critica ele, que se considera transgressor. "Não significa que eu seja antiético. Apenas contra hipocrisias. É preciso questionar as leis", sugere.
Para o professor de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Carlos Kauffmann, porém, ainda há a ideia de que o resultado justifica a ação. "Alguns acham que falsificar documento de estudante é menor. Mas é crime grave", explica ele, que também defende mudança de cultura.
Transformações. O professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) José Álvaro Moisés identifica contestações e desconfiança no governo como parte do processo de amadurecimento do País . "Há menos passividade, com grande atenção ao que se passa na política", aponta. Segundo ele, as infrações não são aceitáveis, mas também explicadas por desigualdades sociais. "Até hoje não é universal o acesso à educação , por exemplo", afirma.
A pesquisa confirma diferenças de percepção entre classes: ricos creem ser mais fácil desobedecer às leis. "Quem é vítima de maior controle social não é a população de alta renda", explica Luciana. Dos entrevistados que recebem mais de oito salários mínimos, 85% dizem ser fácil descumprir leis. Já entre os que ganham menos de um salário, são 71%.
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