Antes de mais nada, dona Justiça, devo confessar que, lá onde nasci, a senhora era figura rara. Não me interprete mal, por favor, não estou insinuando que na minha cidade ou no meu país falte justiça --o que de fato acontece, mas não vamos antecipar as coisas. Eu simplesmente queria começar contando que na minha cidade não se via --e, até onde eu sei, não se vê-- sua figura em locais públicos. Vasculhei minuciosamente minha memória --incluindo as lembranças inventadas-- e juro que não consegui localizar uma escultura, uma pintura ou pelo menos um grafite onde a senhora aparecesse. Estranho, não é? O mais provável é que sua ausência tenha uma explicação sem graça, que se deva a motivos burocráticos, quer dizer, ao fato de a administração da Justiça ser centralizada. Minha cidade não é capital do Estado, não é capital de coisa nenhuma. Ergo: não tem nenhum órgão próprio de Justiça, o que nos condena à ausência do prédio de um tribunal, que teria na entrada e à vista de todos aquela sua figura de olhos vendados, com seu par de pratinhos na mão direita e a espada na esquerda.
Se não me falha a memória --depois de muito puxar por ela, tanto que talvez a misture com a imaginação-- a primeira imagem da senhora que vi na vida foi na televisão. Deve ter sido num filme de advogado ou num desenho de super-heróis. A senhora percebe, dona Justiça? Em nenhum dos casos se trataria de um produto de ficção nacional, os dois são ficções importadas dos Estados Unidos. Volto a lhe pedir que não me interprete mal, não há segundas intenções na minha afirmação --não estou dizendo que a Justiça no meu país seja importada dos Estados Unidos. Só acho curioso uma pessoa que cresceu numa cidadezinha mexicana ter tido o primeiro contato com a senhora Justiça através de uma imagem produzida pela poderosíssima indústria do entretenimento do país vizinho.
A senhora notou, dona Justiça, que num espaço muito breve já lhe pedi duas vezes para não me interpretar mal? Me dá um pouco de vergonha, mas imagino que a senhora já deva estar acostumada, sendo, como é, sujeita a infinitas interpretações.
Desculpe o atrevimento, dona Justiça, mas desde que vendaram seus olhos eu sempre tenho a impressão de que a senhora foi sequestrada. Não precisa que a gente mande alguém para providenciar seu resgate?
Por outro lado, gostaria de lhe sugerir algumas mudanças na sua imagem. Não sei se a senhora costuma ver televisão --imagino que não, a não ser que tire a venda dos olhos depois do expediente--, mas agora são muito comuns uns programas que transformam a aparência das pessoas. No início mostram uma pessoa que faz questão de parecer feia. E no fim do programa essa mesma pessoa aparece linda de morrer. Sei que muita gente acha que isso é uma frivolidade --e é mesmo, quando se trata de seres humanos--, mas acontece que a senhora, dona Justiça, não é um ser humano: é pura imagem. Na minha humilde opinião, a senhora devia encurtar um pouco a saia, ser mais generosa no decote, inclinar o corpo de um jeito mais sugestivo. Numa palavra: ser mais sensual. A senhora pode imaginar? Eu posso: uma dona Justiça que provoque desejo.
E já que quebramos o gelo, gostaria também de falar sobre os pratinhos da balança que a senhora segura na mão direita. Eles me dão angústia. A interpretação mais corrente diz que esses pratinhos representam o equilíbrio entre o verdadeiro e o justo. Certo. Só que eu acho que eles transmitem uma tremenda fragilidade, como se esse equilíbrio, na prática, fosse impossível. É um problema gravíssimo, que põe em risco sua credibilidade e a confiança dos seres humanos! Não sei se a senhora está a par do espírito da nossa época. Deixe eu lhe dizer uma coisa: já não restam muitos idealistas, a maioria deles se bandeou para o time dos pragmáticos. E o que um pragmático pode pensar vendo a senhora de olhos vendados segurando dois pratinhos numa mão e uma pesada espada na outra? "Impossível!", é o que ele vai pensar, que é impossível haver justiça.
Por último, mas nem por isso menos importante, queria lhe falar da espada, símbolo do poder da razão e da justiça. Hoje em dia já não gostamos muito de armas, sabe? Quer dizer, muita gente gosta delas e as usa, mas digamos que nossas sociedades não têm uma boa imagem das armas nem das pessoas que gostam delas e as usam. Sugiro duas alternativas. Se a senhora faz mesmo questão de continuar sendo idealista --coisa que eu aplaudo--, é melhor trocar a espada por um livro ou por uma folha de papel que simbolize nossas leis. Se, ao contrário, a senhora quer convencer os pragmáticos com um elemento dissuasivo --o que também não seria má ideia, dada a situação do mundo--, seria melhor esquecer a espada e comprar logo uma arma de fogo. Uma pistola. Uma escopeta. Melhor ainda! Uma Uzi, um AK-47!
Pode ser que a esta altura, cara dona Justiça, a senhora esteja escandalizada. Se for assim, peço que me desculpe. Minha imaginação foi condicionada pelo fato de não ter crescido perto de uma imagem sua. A senhora provoca em mim uma terrível saudade, a mesma que sentem os amantes separados por milhares de quilômetros. Acredite que o que me move é o mais puro amor por tudo que a senhora representa.
Sempre seu,
Juan Pablo Villalobos, escritor mexicano
Texto originalmente publicado na Folha de S.Paulo de 17/08/2014, pela primeira vez em português. Foi escrito para comemoração dos 100 anos do Palácio da Paz, em Haia. Traduzido por Sérgio Molina.
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