CONSTITUIÇÃO E PODER
"No princípio era o Verbo (...). Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.” (João 1:1-4).
Nesse ponto não poderia ser mais correto o Evangelho: no princípio sempre estará o verbo, pois o ser humano só apreende e consegue organizar o caos em que se apresentam os fatos através da linguagem. “Ser que pode ser compreendido é linguagem”.
No direito, contudo, não obstante a imanente vinculação entre normas e fatos, isto é, entrelinguagem normativa e realidade, muitas decisões e julgamentos que são desenvolvidos nos tribunais pressupõem, como se fosse possível, uma clara e indiscutível separação entre os juízos de direito e juízos de fatos. O presente artigo pretende discutir a correção ou falibilidade dessa premissa, que tem, notadamente em processos acusatórios, especial importância.
Quando se cuida de conhecer a vida pelo olhar do direito, não é difícil demonstrar, há uma indefectível relação entre fatos e normas. Se, por um lado, não há como destacar na ordem jurídica as normas que aplicaremos ao caso concreto sem uma prévia consideração dos fatos que foram entendidos como importantes para a questão a ser decidida, por outro, também não é possível destacar do caos — que é a realidade — os fatos que julgamos elementares ao caso concreto, sem anteciparmos, ainda que abstratamente, as normas que — pressupomos — deverão ser aplicadas à situação da vida tornada litigiosa.
Explicando ainda mais um pouco, o jurista apenas pode aproximar-sejuridicamente dos fatos a partir da classificação ou descrição jurídica que, certo ou errado, entenda por bem imputar-lhes. No mundo do direito, não há possibilidade de conhecer fatos — distingui-los da realidade total — sem a intermediação das normas jurídicas, como também não há possibilidade de conhecer as normas — distingui-las da ordem jurídica total — sem a intermediação dos fatos antecipados como importantes à nossa decisão. Um concorre para a distinção cognoscitiva do outro.
Podemos, é certo, tomar conhecimento de “fatos puros” — “fatos puros” que, de todo modo, bem observados, não passam de distinção cognoscitiva filtrada por nossa linguagem comum, ou linguagem de alguma ciência natural -, mas, se desejarmos pensar ou descrever os fatos juridicamente, apenas podemos fazê-lo à consideração simultânea de normas que utilizamos como premissa de descrição-distinção jurídica dos fatos que observamos; de outra mão, em verdadeiro círculo hermenêutico (H-G Gadamer e Konrad Hesse), apenas conseguimos destacar essas premissas normativas do emaranhado que é a ordem jurídica total, porque, em simultâneo processo, nos valemos dos fatos que destacamos – abstratamente – da realidade. É, simplificando, o contínuo ir do fato à norma e da norma ao fato de que falava K. Engisch[1].
Não obstante essas considerações, no direito brasileiro, especialmente nos processos acusatórios — na ação penal e de improbidade administrativa —, tem-se admitido a condenação do acusado com base em dispositivo diverso do que foi proposto na petição inicial; tudo sob a consideração de que o acusado se defende dos fatos, não da norma que os qualifica, partindo-se da premissa de que a sua condenação com base em norma diversa da apontada na inicial não lhe prepara qualquer prejuízo, nomeadamente, diante dos princípios do contraditório e da ampla defesa.
O que fundamenta essa orientação jurisprudencial, contudo, agora podemos dizê-lo, é a crença de que haveria sempre uma clara distinção entre a atividade de delimitar os fatos e aquela outra, em que eles são classificados ou definidos juridicamente. Ou seja, persiste a crença, divulgada sem contestação, de que o juízo sobre os fatos não compromete o juízo sobre a sua qualificação jurídica (juízo sobre normas), e vice-versa.
Entretanto, como veem, a estarem corretas as premissas que introduziram o presente artigo, no mínimo, devemos tomar a sério essa antiga orientação de nossos tribunais de que, em nenhuma circunstância, o acusado sairá prejudicado pelo fato de o magistrado, ao final do processo, conferir aos fatos que lhe são imputados uma classificação jurídica diferente daquela que foi expressamente sugerida na inicial e que, o que é mais grave, foi tomada em consideração durante toda a instrução do processo. Confrontemos essas questão de forma analítica.
Tanto nas ações penais como nas ações de improbidade administrativa, como se sabe, costuma-se ressaltar a possibilidade de o órgão judicial conferir aos fatos qualificação diversa daquela constante da inicial acusatória, para, inclusive, condenar o acusado em sanção mais grave do que a sugerida pelo acusado. Aliás, o Código de Processo Penal veicula comando expresso sobre o tema, ao dispor no seu art. 383 que “O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”. No artigo 384, do CPP, permite-se, mais do que isso, a possibilidade de novo enquadramento, inclusive para incluir elementar não contida na ação penal (mutatio libelli), exigindo-se, nesse passo entretanto, que a petição acusatória seja emendada com o fim de propiciar o contraditório[2].
No processo civil, o tratamento é diferenciado, já que conjugados os artigos 264 e 294 do CPC, conclui-se que o autor poderá aditar livremente o pedido, apenas até a citação do acusado (artigo 264), mas, após esse momento processual, só poderá alterar o pedido ou a causa de pedir com o consentimento do réu (artigo 294). Entretanto, não obstante os limites expressos do artigo 293 e artigo 460, do CPC, que estabelecem, respectivamente, a interpretação restritiva do pedido bem como a vinculação da decisão judicial aos limites do pedido e dos seus fundamentos, a jurisprudência, seguindo orientação do STJ, tem entendido que também na ação de improbidade administrativa, à similitude do que ocorre no processo penal, o magistrado poderá conferir qualificação/classificação jurídica aos fatos diversa daquela que foi proposta na petição inicial, com base na teoria da substanciação (veja o REsp 439.280/RS)[3].
Como se sabe, numa como noutra esfera, na ação penal como na ação de improbidade administrativa, a conduta do magistrado orienta-se pela máxima de que o réu se defende dos fatos, e não da qualificação jurídica que tenha sido proposta pelo acusador. Portanto, exaurida a instrução probatória, certificados os fatos, não implicaria qualquer dificuldade ou prejuízo aos direitos do réu a circunstância de o magistrado conferir aos fatos qualificação jurídica diversa da proposta na inicial. Nós estamos acostumados, portanto, a acreditar que o magistrado apenas confere aos fatos — que seriam trazidos puros pelas partes — a correta qualificação jurídica, não alterando com isso a substância dos fatos que lhe foram trazidos a consideração (da mihi factum, dabo tibi jus), ou seja, na nossa tradição hermenêutica, acredita-se que há uma clara distinção entre a atividade de delimitar os fatos e aquela outra de lhes qualificar juridicamente.
Contudo, como dizíamos, mais contemporaneamente, a partir de H-G Gadamer, juristas como Konrad Hesse, têm acentuado que, na atividade de qualificação dos fatos, o mais certo é que ocorra um verdadeiro círculo hermenêutico, em que o intérprete seleciona a norma a partir do fato colhido na realidade, mas, da mesma forma, o fato é selecionado tendo em consideração uma prévia antecipação da norma que se pretende aplicar. Se isso é verdade, não é difícil perceber que, no mais das vezes, o acusado tenderá — durante toda a instrução probatória — defender-se não apenas dos fatos puros, mas dos fatos como foram qualificados pelo autor. Aliás, em processo judicial e no âmbito do direito, não existem fatos puros, mas fatos qualificados por uma ou outra norma.
O autor não imputa “fatos puros” ao acusado. Diversamente, são-lhe imputados fatos previamente destacados da realidade à luz de abstrata consideração ou qualificação normativa. Descrição de fatos no direito é, em primeiro lugar, descrição ou imputação jurídica de fatos.
Ao jurista hoje não representa qualquer novidade afirmar-se que a relação entre fatos e normas nem sempre é de fácil concretização. E não fosse por outras razões, lembra R. Alexy, uma dificuldade imanente encontra-se presente em qualquer submissão de fatos concretos a normas jurídicas: enquanto as normas se revelam, em regra, com considerável índice de abstração e generalidade, contendo poucos caracteres distintivos (Merkmale), os fatos são individuais e concretos, apresentando-se ao mundo com infinitos indícios e marcas distintivas que os podem separar no universo de acontecimentos que os cercam. Na verdade, são essas infinitas marcas distintivas que individualizam um fato e o distinguem dos restantes fatos que o rodeiam[4].
Entretanto, no que tange ao fato ao qual se dirige uma norma, para que se possa isolá-lo do mundo da vida com as características que têm importância para a aplicação do direito, há de se perceber e descrevê-lo com a ajuda doTatbestand hipotético da norma. De outro lado, na exata dedução de Alexy, essas características relevantes do fato podem oferecer motivo para, no caso concreto, não se aplicar a norma que inicialmente se tinha diante dos olhos, assim como para precisar, ou rejeitar algumas marcas distintivas do próprioTatbestand normativo, ou mesmo para acrescentar-lhe alguns indícios antes considerados como não relevantes[5]. Dá-se aqui o instrutivo ir e vir de perspectiva de que nos falava K. Engisch, isto é, para compreender e delimitar o caso concreto, carecemos da perspectiva da norma; para compreender a norma, precisamos da perspectiva no fato[6].
Assim, não obstante se reconheça que o acusado deva se defender dos fatos, o certo é que ele se defenderá dos fatos como foram qualificados pelo próprio autor. Como consequência, por exemplo, dificilmente, o autor irá imputar ao acusado a prática de fato juridicamente por ele classificado como suporte fático (motivo) de aplicação da artigo 9º da Lei 8.429/92, e o acusado irá se defender destes fatos como suporte fático previsto no artigo 10 da mesma lei — e vice-versa. A exceção de classificação normativa abertamente indevida e teratológica, o mais certo é que o acusado se defenderá, durante toda a instrução probatória, dos fatos como juridicamente descritos e qualificados pelo autor.
Atento a isso, em posição contrária à nossa jurisprudência, tem o Tribunal Constitucional alemão emprestado especial homenagem ao princípio da não-surpresa processual, não aceitando que qualquer condenação seja importa ao acusado sem que antes ele possa falar dos motivos de fato e de direito que, ao final, concretamente servirão de base à sua condenação. Cumpre ao Tribunal, portanto, não lhe surpreender com condenação baseada em fatos, ou normas de direito, que não foram indicadas na ação inicialmente admitida pelo órgão julgador.
Fala-se na verdade em três níveis ou estágios de realização do direito à audiência perante os Tribunais (das Recht auf rechtliches Gehör): (1) num primeiro nível, obrigam-se os Tribunais a proporcionar à parte conhecimento completo sobre todas as manifestações da outra parte, o que abrange todos os fatos por e meios de prova apresentados e indicados pela parte contrária; envolve também as opiniões jurídicas com base nas quais o próprio Tribunal pretende tomar sua decisão, além de informar a parte sobre aquelas opiniões sobre as quais elas não precisam contar (direito a não se surpreender); (2) no outro nível, implica a possibilidade efetiva de a parte poder se manifestar por escrito sobre as questões de fato e de direito; (3) e, por fim, no terceiro nível, o direito a que os Tribunais considerem nas suas decisões os argumentos essenciais apresentados pelas partes[7].
Aliás, no processo penal, anote-se, o Código de Processo Penal alemão (SfPO) é absolutamente rígido quanto à impossibilidade de mudança nos fundamentos legais de uma decisão, ao ponto de estabelecer no seu parágrafo 265, (1), que o acusado não pode ser condenado com base em uma lei diferente daquela que foi indicada na ação inicialmente admitida pelo tribunal, sem que antes seja comunicado desse mudança de posição e sem que seja dada a ele oportunidade de defesa[8].
No Brasil, também já encontra repercussão entre ilustradas vozes o princípio da não surpresa em matéria de processo acusatório. Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero acentuam o direito à segurança do cidadão, precisamente, na suas relações com o poder judiciário, especialmente, em respeito ao princípio do contraditório e ampla defesa. De fato, “por força dessa nova conformação da ideia de contraditório, a regra está em que todas as decisões definitivas do juízo se apoiem tão somente em questões previamente debatidas pelas partes, isto é, sobre matéria debatida anteriormente pelas partes. Em outras palavras, veda o juízo de ‘terza via’. Há proibição de decisões surpresa (Verbot der Überrachungsentscheidungen)[9]”. É isso.
[1] K. Engisch. Logische Studien zur Gesetzesanwendung, p. 15, cfe. nota de rodapé em Robert Alexy. Elemente einer juristischen Begründungslehre, p. 115.
[2] Veja-se por todos o excepcional estudo de Calil Simão. Improbidade Administrativa. Teoria e Prática. 2ª ed., J.H. Mizuno, 2014, p. 662.
[3] Calil Simão. Improbidade Administrativa. Teoria e Prática. 2ª ed., J.H. Mizuno, 2014, p. 661 e seguintes.
[4] Robert Alexy. Elemente einer juristischen Begründungslehre, 115.
[5] Robert Alexy. Elemente einer juristischen Begründungslehre, p. 115/116.
[6] K. Engisch. Logische Studien zur Gesetzesanwendung, p. 15, cfe. nota de rodapé em Robert Alexy. Elemente einer juristischen Begründungslehre, p. 115.
[7]BodoPieroth/Bernhard Schlink. Grundrechte – Staatsrecht II. 16ª ed., Heidelberg, 2000, p. 274/275.
[8] SfPO - § 265 (1) Der Angeklagte darf nicht auf Grund eines anderen als des in der gerichtlich zugelassenen Anklage angeführten Strafgesetzes verurteilt werden, ohne daß er zuvor auf die Veränderung des rechtlichen Gesichtspunktes besonders hingewiesen und ihm Gelegenheit zur Verteidigung gegeben worden ist.
[9] Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. SP: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2013, p. 732.
*Texto alterado às 8h53 do dia 24/9 para correções.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico
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