Leonardo Sakamoto
O golpe e a ditadura cívico-militar de 1964 ainda são temas que não fazem parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser boas democracias. Por aqui, lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente.
A Comissão Nacional da Verdade entregou o seu relatório final, nesta quarta (10), encaminhando 29 propostas para governos e órgãos públicos a fim de assegurar que as violações aos direitos humanos presentes na ditadura militar nao continuem a ocorrer ou voltem a acontecer. Uma das recomendações é que as forças armadas assumam a responsabilidade, inclusive legal, pelos atos cometidos. Outra, que as polícias estaduais sejam desmilitarizadas.
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Pouco me importa o que pensam os verde-oliva da reserva que tomam seu uísque nos Clubes Militares enquanto, saudosos, lançam confetes ao Dia da Revolução (sic). Demonstrações de afeto a um período autoritário são peça de museu, então que fiquem, democraticamente, com quem faz parte do passado.
Mas eles precisam saber – ainda em vida – que, desta vez, a História não vai ficar com a versão dos golpistas. E que o sistema de opressões que eles ajudaram a estruturar, mais cedo ou mais tarde, vai embora com eles. Não por vingança, mas por Justiça.
Como já disse aqui em outras ocasiões, em nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido permanece nos assombrando. Seja através de um olhar perdido da mãe de um amigo que, da janela, permanece a esperar o marido que jaz no fundo do mar, lançado de helicóptero. Seja adotando os métodos desenvolvidos por eles para garantir a ordem e o progresso.
Durante a ditadura, os militares armaram uma farsa para encobrir o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. A explicação trazida à público, de suicídio na cela, não convenceu e a morte de Vlado tornou-se símbolo na luta contra o regime.
Mas fez escola pois, tempos atrás, aqui em São Paulo, um homem de 39 anos foi encontrado enforcado pouco mais de duas horas depois de ter sido preso.
Supostamente, era traficante e transportava cocaína. Supostamente, teria se enforcado usando um cadarço de sapato.
Questionado por jornalistas se não é praxe da polícia retirar os cadarços de sapatos de presos, um policial afirmou que o acusado usou um pedaço de papelão para arrastar um cadarço que estava fora da cela. Seria cômica se não fosse ofensiva uma justificativa dessas.
O impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando ou reprimindo parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A verdade é que não queremos olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje.
Lembrar é fundamental para que não deixemos certas coisas acontecerem novamente.
Que o Estado e a sociedade discutam as propostas da Comissão Nacional da Verdade, reconsiderem as políticas atuais que mantém a estrutura de injustiça e afirmem que crimes contra a humanidade, como a tortura, não podem ser anistiados, nunca. Um relatório sozinho não resolve nada. Mas é fundamental na construção de uma nova narrativa que não aceite a impunidade como parte necessária de nossa transição democrática e que, sem medo, use a experiência do passado para corrigir os rumos do presente.
Narrativa que será construída também pelas próximas gerações. Com a história dos assassinatos sob responsabilidade da ditadura sendo conhecida e contada nas escolas até entrar nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada.
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