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sábado, 21 de fevereiro de 2015

LEIS DE DESACATO E DIFAMAÇÃO CRIMINAL

Introdução
1.         Nos Relatórios da Relatoria para a Liberdade de Expressão correspondentes aos anos 1998 e 2000, foi incluido o tema relacionado com as leis de desacato vigentes nos países do hemisfério.[1] O Relator considera que é importante manter o acompanhamento do avanço das recomendações efetuadas em ambos relatórios, principalmente quanto à necessidade de derrogar esta normativa a efeitos de ajustar a legislação interna aos padrões consagrados pelo sistema interamericano quanto ao respeito ao exercício da liberdade de expressão. É intenção da Relatoria continuar este acompanhamento a cada dois anos, já que é um tempo prudente para permitir, aos distintos Estados membros, levar adiante os processos legislativos necessários para as derrogações ou adaptações legislativas recomendadas.
 2.         Lamentavelmente, a Relatoria considera que não houve avanços significativos desde a publicação do último relatório sobre a questão: são muito poucos os países que derrogaram de sua legislação as leis de desacato, sem prejuízo de que existam algumas iniciativas em outros que se encontram em processo de fazê-lo.
3.         Preocupa também à Relatoria que os geralmente chamados “delitos contra a honra”, entre os que se incluem as injúria e as calúnia, são usados com os mesmos fins que o delito de desacato. Uma regulação deficiente nesta matéria, ou uma aplicação arbitrária está em desacordo com a recomendada derrogação das leis de desacato. Embora esta observação esteja contida nos relatórios da Relatoria antes citados, não foram registrados avanços sobre a questão.
4.         Nesta oportunidade a Relatoria renova e atualiza os argumentos que recomendam a derrogação das leis de desacato. Em seguida, se aprofunda em algumas considerações referentes aos delitos contra a honra, a importância de sua reformulação legislativa, ou, ao menos, a necessidade de uma reinterpretação judicial, quanto a sua aplicação. Finalmente, se mencionam os países que tem avançado sobre a derrogação das leis de desacato e também se expõem outras iniciativas destinadas à derrogação assim como à modificação do capítulo dos delitos contra a honra dos respectivos países.
B.        As leis de desacato são incompatíveis com o artículo 13 da Convenção
5.         A afirmação que intitula esta seção é de longa data: tal como a Relatoria expressou em informes anteriores, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) efetuou uma análise da compatibilidade das leis de desacato com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em um relatório realizado em 1995[2]. A CIDH concluiu que tais leis não são compatíveis com a Convenção porque se prestavam ao abuso como um meio para silenciar idéias e opiniões impopulares, reprimindo, desse modo, o debate que é crítico para o efetivo funcionamento das instituições democráticas [3]. A CIDH declarou, igualmente, que as leis de desacato proporcionam um maior nível de proteção aos funcionários públicos do que aos cidadãos privados, em direta contravenção com o princípio fundamental de um sistema democrático, que sujeita o governo a controle popular para impedir e controlar o abuso de seus poderes coercitivos[4].  Em conseqüência, os cidadãos têm o direito de criticar e examinar as ações e atitudes dos funcionários públicos no que se refere à função pública[5].  Ademais, as leis de desacato dissuadem as críticas, pelo temor das pessoas às ações judiciais ou sanções fiduciárias.  Inclusive aquelas leis que contemplam o direito de provar a veracidade das declarações efetuadas, restringem indevidamente a livre expressão porque não contemplam o fato de que muitas críticas se baseiam em opiniões, e, portanto, não podem ser provadas.  As leis sobre desacato não podem ser justificadas dizendo que seu propósito é defender a “ordem pública” (um propósito permissível para a regulamentação da expressão em virtude do artigo 13), já que isso contraria o princípio de que uma democracia, que funciona adequadamente, constitui a maior garantia da ordem pública[6].  Existem outros meios menos restritivos, além das leis de desacato, mediante os quais o governo pode defender sua reputação frente a ataques infundados, como a réplica através dos meios de comunicação ou impetrando ações cíveis por difamação ou injúria.  Por todas estas razões, a CIDH concluiu que as leis de desacato são incompatíveis com a Convenção, e instou os Estados  que as derrogassem.
6.         Concomitantemente a esta opinião da CIDH, distintas organizações internacionais e organizações não governamentais de todo o mundo têm-se manifestado, de maneira uniforme sobre a necessidade de abolir estas leis, que limitam a liberdade de expressão ao castigar as manifestações que possam ofender os funcionários públicos. Muitas destas manifestações foram já citadas nos Relatórios anteriores da Relatoria. Resumindo: 
7.         Em março de 1994, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) realizou uma conferência hemisférica sobre liberdade de imprensa no Castelo de Chapultepec, na cidade do México.  A declaração foi subscrita pelos Chefes de Estado de 21 países da região, e é considerada uma norma modelo para a liberdade de expressão[7].  A respeito das leis sobre desacato, a Declaração estabelece no Princípio 10: “Nenhum meio de comunicação ou jornalista deve ser punido por divulgar a verdade ou formular críticas ou denúncias contra o poder público”.
8.         Em 26 de novembro de 1999, Abid Hussain, Relator Especial das Nações Unidas sobre Liberdade de Opinião e de Expressão naquela época, Freimut Duve, representante sobre Liberdade dos Meios de Comunicação da OSCE, e Santiago Canton, Relator para a Liberdade de Expressão da CIDH naquele momento, emitiram uma declaração conjunta na qual manifestavam que em muitos países existem leis, como as leis sobre difamação, que restringem indevidamente o direito à liberdade de expressão, e instavam os Estados que revisassem estas leis com o objetivo de adequá-las a suas obrigações internacionais.  Em outra reunião conjunta celebrada em novembro de 2000, os Relatores adotaram outra declaração conjunta, que se refere ao problema das leis sobre desacato e difamação.  Nesta declaração, os Relatores defenderam a substituição das leis sobre difamação por leis civis, e afirmaram que se devia proibir  a interposição de ações de difamação relacionadas com o Estado, objetos como as bandeiras ou símbolos, os organismos governamentais e as autoridades públicas.
9.         Em julho de 2000, Artigo XIX, uma organização não governamental mundial que toma seu nome do artigo que protege a liberdade de expressão da Declaração Universal de Direitos Humanos, promulgou um conjunto de princípios sobre liberdade de expressão e proteção da reputação.[8]  O princípio 4(a) estabelece que todas as leis sobre difamação devem ser abolidas e substituídas, quando necessário, por leis apropriadas de difamação civil[9].  O Princípio 8, sobre funcionários públicos, estabelece que “em nenhuma circunstância as leis sobre difamação devem proporcionar proteção especial aos funcionários públicos, qualquer que seja seu cargo ou situação.
10.       Em outubro de 2000, a CIDH aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão[10], promulgada pela Relatoria para a Liberdade de Expressão.  A Declaração constitui uma interpretação definitiva do Artigo 13 da Convenção.  O Princípio 11[11] refere-se às leis sobre desacato.
11.       Em seu relatório de janeiro de 2001, o Relator Especial das Nações Unidas sobre Liberdade de Opinião e de Expressão também manifestou-se contrário às leis sobre difamação e, em particular, contra as leis que proporcionam proteção especial a funcionários públicos.[12]
12.       Como foi este antes, estas expressões já foram descritas nos relatórios anteriores da Relatoria. No presente relatório, o Relator destaca que a opinião, quase universal, sobre a necessidade da derrogação das leis de desacato segue vigente, tal como pode ser observado nas seguintes manifestações:
13.       O relatório anual 2002 do Banco Mundial sobre desenvolvimento[13] dedica um capítulo à importância dos meios de comunicação nesta matéria. Especificamente no que se refere às leis de desacato, é este que: As leis de desacato são particularmente restritivas, e protegem grupos seletos tais como a realeza, políticos e funcionários do governo frente a críticas. Normalmente, as leis de desacato tipificam como delito penal o prejudicar a "honra e dignidade" ou a reputação destes indivíduos e instituições seletas, sem levar em conta a verdade. Um estudo de 87 países constatou que estas leis são, surpreendentemente, freqüentes, em particular nas ações por difamação... Na Alemanha e nos Estados Unidos são pouco comuns e muito raramente invocadas. Ainda assim, em muitos países em desenvolvimento, são o meio favorito para acossar os jornalistas.
14.       Em 13 de setembro de 2002, em Dakar, Senegal, celebrou-se a décima reunião geral de Intercâmbio Internacional pela Liberdade de Expressão [14]. A declaração subscrita pelas organizações participantes[15] expressa que as leis concebidas para dar proteção especial da crítica pública e controle por parte da imprensa a líderes nacionais, altos funcionários, símbolos do Estado e a nacionalidade são anacronismos nas democracias e ameaçam os direitos dos cidadãos ao acesso livre e pleno à informação sobre seu Governo. A declaração insta aos Governos a eliminar essas leis antiquadas. A declaração dispõe que “As leis normais e razoáveis contra a calúnia e a difamação que estão à disposição, por igual, de todos os membros da sociedade são suficiente proteção contra qualquer ataque injusto. Essas leis deveriam ser do direito civil, não do direito penal, e só deveriam prever casos de danos e prejuízos demonstráveis. Aos funcionários públicos lhes corresponde menos, e não mais, proteção contra a crítica que aos privados. Os organismos públicos, categorias de funcionários, instituições, símbolos nacionais e países não deveriam ser imunes ao comentário e a crítica existentes dentro das democracias que honram a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. 
15.       Em 9 de dezembro de 2002, o Relator Especial da ONU sobre a Liberdade de Opinião e Expressão, Ambeyi Ligabo, o Representante da OSCE sobre a Liberdade de Imprensa, Freimut Duve, e o Relator Especial da CIDH sobre Liberdade de Expressão, Eduardo Bertoni, emitiram uma declaração conjunta na qual disseram estar  “Atentos ao constante abuso da legislação penal sobre difamação, inclusive por parte de políticos e outras pessoas públicas”. Ademais, expressaram que “A difamação penal não é uma restrição justificável da liberdade de expressão; deve ser derrogada a legislação penal sobre difamação e substituí-la, conforme necessário, por leis civis de difamação apropriadas.”
16.       Apesar da condenação, quase universal, às leis de desacato, elas continuam existindo de uma ou de outra forma na maioria dos Estados das Américas.  Além disso, muitos destes seguem utilizando leis sobre delito de difamação, injúria e calúnia, que com freqüência são utilizadas, na mesma forma que as leis sobre desacato, para silenciar quem critica as autoridades. Sobre esta questão, o Relator faz algumas apreciações no ponto que segue:
C.        Os delitos de difamação criminal (calúnia, injúria, etc)
17.       A Relatoria para a Liberdade de Expressão ressaltou, nos Relatórios anuais anteriormente citados, que a opinião da CIDH em relação com o tipo penal de desacato também apresenta certas implicações em matéria de reforma das leis sobre difamação, injúria e calúnia.  O reconhecimento do fato de que os funcionários públicos estão sujeitos a um menor, e não a um maior, grau de proteção frente às críticas e ao controle popular significa que a distinção entre as pessoas públicas e privadas deve-se efetuar, também, nas leis ordinárias sobre difamação, injúria e calúnia.  A possibilidade de abuso de tais leis, por parte dos funcionários públicos, para silenciar as opiniões críticas é tão grande no caso destas leis como no das leis de desacato.  A CIDH manifestou:
[N]a arena político em particular, o limiar para a intervenção do Estado a respeito da liberdade de expressão é necessariamente mais alto devido à função crítica do diálogo político em uma sociedade democrática. A Convenção requer que este limiar se incremente, mais ainda, quando o Estado impor o poder coativo do sistema da justiça penal para restringir a liberdade de expressão. Por isso, caso consideremos as conseqüências das sanções penais e o efeito inevitavelmente inibidor que têm para a liberdade de expressão, a punição de qualquer tipo de expressão só pode ser aplicada em circunstâncias excepcionais nas quais exista uma ameaça evidente e direta de violência anárquica.
 A Comissão considera que a obrigação do Estado de proteger os Direitos dos demais se cumpre estabelecendo uma proteção estatutária contra os ataques intencionais à honra e à reputação, mediante ações civis e promulgando leis que garantam o direito de retificação ou resposta. Neste sentido, o Estado garante a proteção da vida privada de todos os indivíduos sem fazer um uso abusivo de seus poderes de coação para reprimir a liberdade individual de se formar opinião e expressá-la.[16]
18.       Para assegurar uma adequada defesa da liberdade de expressão, os Estados devem ajustar suas leis sobre difamação, injúria e calúnia de forma tal que só possam ser aplicadas sanções civis no caso de ofensas a funcionários públicos. Nestes casos, a responsabilidade, por ofensas contra funcionários públicos, só deveria incidir em casos de “má fé”.  A doutrina da “má fé” significa que o autor da informação em questão era consciente de que a mesma era falsa ou atuou com temerária despreocupação sobre a verdade ou a falsidade de esta informação. Estas idéias foram recolhidas pela CIDH ao aprovar os Princípios sobre Liberdade de Expressão, especificamente o Princípio 10.[17] Este propõe a necessidade de revisar as leis que têm como objetivo proteger a honra das pessoas (comumente conhecidas como calúnia e injúria). O tipo de debate político, ao que dá lugar o direito à liberdade de expressão e informação, gerará, indubitavelmente, certos discursos críticos ou inclusive ofensivos para quem ocupa cargos públicos ou que está intimamente vinculado à formulação da política pública. As leis de calúnia e injúria são, em muitas ocasiões leis que, em lugar de proteger a honra das pessoas, são utilizadas para atacar ou silenciar o discurso que se considera crítico da administração pública.
19.       Este argumento tem sido, recentemente, compartilhado por juízes e jornalistas salvadorenhos e costarriquenhos que concluíram que os delitos contra a honra das pessoas, cometidos através dos meios de comunicação, não devem ser castigados com a prisão mas sim resolvidos na instância civil, como uma forma de não prejudicar a liberdade de imprensa, o direito do público à informação e para evitar a auto-censura. Esta e outras conclusões emergiram das conferências jurídicas nacionais sobre liberdade de imprensa, organizadas pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) em novembro de 2002, em El Salvador e na Costa Rica no marco da Declaração de Chapultepec.[18] Embora tenha havido posições contrárias sobre o papel da imprensa frente à honra, à privacidade e à intimidade, houve uma afinidade de critérios de que os delitos de injúria e calúnia não devem levar à pena de prisão para os jornalistas quando se referem à questões de interesse público. Vários especialistas referiram-se à tipificação dos delitos e aos atenuantes e responsabilidades quando a informação causadora do agravo não é emitida com intenção de ofender, ou às diferentes tipificações quando se trata de informação verdadeira ou falsa.
20.       Também os Chefes de Estado e de Governo, no Plano de Ação da Terceira Cúpula das Américas celebrada em abril de 2001, na cidade de Québec, Canadá, manifestaram a necessidade de que os Estados assegurem que os jornalistas e os formadores de opinião tenham a liberdade de investigar e publicar sem medo de represálias, acosso ou ações vingativas, incluindo o mal uso de leis contra a difamação.
21.       As conclusões apontadas são válidas toda vez que, do ponto de vista de uma análise dogmática penal, o desacato é simplesmente uma calúnia ou injúria na qual o sujeito passivo é especial (um funcionário público). Nos delitos contra a honra, não existe tal especialidade. Então, o conjunto de indivíduos a quem podem ser dirigidos é maior, o qual não quer dizer que não se possa restringir esse conjunto, como se explicará mais adiante, excluindo-se os funcionários públicos, pessoas públicas, ou em geral, quando se trate de questões de interesse público.
22.       Não é relevante caso se trate da imputação de uma pena como conseqüência da figura de “calúnia” ou de "injúria" ou de "difamação" ou de “desacato”. Uma das circunstâncias determinantes das conclusões dos órgãos do sistema interamericano para declarar as leis de “desacato” como leis contrárias à Convenção consiste na natureza da sanção penal, isto é, produz uma sanção de caráter repressivo para a liberdade de expressão. Este efeito também pode ser produzido pelas sanções, em conseqüência da aplicação do direito penal comum. Em outras palavras: de acordo com a doutrina dos órgãos do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, resulta necessária a descriminalização de manifestações críticas a funcionários públicos, figuras públicas ou em geral, assuntos de interesse público; e isso se deve ao efeito paralisante ou a possibilidade de auto-censura[19] que produz apenas a existência de leis que prevêem sanções penais a quem exerce o direito à liberdade de expressão neste contexto.
23.       Os tipos de crimes de calúnia, injúria e difamação, consistem, em geral, na falsa imputação de delitos ou em manifestações que afetam a honra de uma pessoa. Pode-se afirma, sem dúvida, que estes tipos de crimes tendem a proteger direitos garantidos pela própria Convenção. O bem jurídico honra[20]está consagrado no artigo 11, pelo que, talvez, poderia afirmar-se que os tipos de crime de calúnia e injúria, em abstrato e em todos os casos, deixam vulnerável a Convenção. Entretanto, quando a sanção penal que se persegue pela aplicação destes tipos penais dirige-se a expressões sobre questões de interesse público pode-se afirmar, pelas razões expostas, que se vulnera o direito consagrado no artigo 13 da Convenção, seja porque não existe um interesse social imperativo que justifique a sanção penal, seja porque a restrição é desproporcional, seja  porque constitui uma restrição indireta.
24.       Os delitos contra a honra surgiram como uma “desapropriação” por parte do poder público do conflito entre particulares: tradicionalmente uma lesão à honra ou à dignidade era canalizada mediante o duelo dos envolvidos. Entretanto, esta prática social começou a ser valorizada negativamente, a tal ponto que se converteu em um fato sancionado penalmente. Mas, simultaneamente, para não deixar “desprotegida” a honra manchada, o direito penal passou a se ocupar do assunto. Daí que a derrogação líquida e certa dos delitos contra a honra pode não resultar, em nosso estágio cultural, aceitável. 
25.       Entretanto, se a proposta fosse que, pelas mesmas razões pelas que se promove a derrogação do delito de desacato, é necessário estabelecer um mecanismo para que a utilização das calúnia ou das injúria não sejam utilizadas em seu lugar, então, sem derrogar totalmente os delitos contra a honra, pode-se incorporar nos ordenamentos penais uma desculpa absolutória[21] que “elimine” a punibilidade quando o lesado for um funcionário público ou uma figura pública, ou um particular auto-envolvido em um assunto de interesse público. Não importa aqui o lugar sistemático que lhe outorgue a este tipo de regras de impunidade: entretanto, é bastante comum entre os países da região que existam razões de política criminal pelas quais decide-se não punir certos fatos. E isso não implica a derrogação certa dos delitos contra a honra. Só implica que, em certos casos específicos, a ação não é punível. Deve-se recordar que as razões de punibilidade são razões que fazem a política criminal dos Estados. As sociedades escolhem quando, frente a certos casos, determinados valores fazem que seja preferível não punir penalmente, ainda quando existam direitos potencialmente lesados: quando os ordenamentos penais decidem a impunidade dos autores de delitos contra a propriedade por razões de parentesco[22], não se derroga o furto, o roubo ou a fraude, só se afirma que não resulta conveniente a resposta penal ante esses delitos perpetrados dentro do grupo familiar. A Relatoria entende que a não punibilidade deveria ser estabelecida no caso de manifestações realizadas no âmbito de questões de interesse público.
26.       Finalmente, outro argumento que é bastante comum afirma que uma cláusula, como a que se propõe, significa, apenas, que certas pessoas não têm honra. Esta argumentação é equivocada: os funcionários ou figuras públicas têm honra, mas sua possível lesão cede lugar a outro bem que o corpo social, nesse caso, lhe outorga preponderância. Este outro bem é a liberdade de expressão, em suas duas dimensões, tanto social como individual. Um exemplo, longe deste conflito, permite dar uma luz ao problema: se no momento de começar um incêndio, um indivíduo pega fogo e a única maneira de apagá-lo é utilizando uma valiosa manta para cobrir-lo, ninguém dirá que a manta chamuscada depois da operação não tinha valor para seu dono. Ao contrário: sem dúvida, foi lesado o direito de propriedade do dono da manta, mas isso cede lugar a outro bem de maior hierarquia. 
27.       Nos casos que envolve a aplicação dos delitos contra o honra, a hierarquia da liberdade de expressão frente às expressões relacionadas com questões de interesse público tem sido considerada maior, quando a CIDH argumentou a favor da derrogação do delito de desacato. E, além disso, o fato de que os funcionários públicos e personalidades públicas possuam, em geral, um fácil acesso aos meios de difusão que lhes permite contestar os ataques a sua honra e reputação pessoal, também é uma razão para prever uma menor proteção legal a sua honra.[23] Finalmente, cabe recordar que a CIDH já estabeleceu que a obrigação do Estado de proteger os Direitos dos demais se cumpre estabelecendo uma proteção estatutária contra os ataques intencionais à honra e à reputação, mediante ações cíveis e promulgando leis que garantam o direito de retificação ou resposta. De qualquer modo, deve-se ter presente que as punições de tipo civil, se não tiverem limites precisos e podem ser exageradas, podem também ser desproporcionais nos termos convencionais.
28.       Em conseqüência, a descriminalização parcial dos delitos contra a honra não encontra objeções válidas.
D.        Observações finais: parcos avanços no processo de derrogação das leis de desacato e em projetos de reforma legislativa com relação aos delitos de calúnia e injúria
29.       Como se dizia na introdução deste capítulo, a Relatoria considera que no hemisfério não houve avanços significativos no sentido da derrogação das leis de desacato. Com as exceções que se detalham mais adiante, todos os países co-signatários no Relatório, do ano 2000, seguem mantendo em seu código penal legislação deste delito. Não se faz necessária a repetição dos comentários efetuados à legislação interna, comentários aos quais a Relatoria refere-se neste informe. Resta esclarecer que os países mencionados nesta seção estão levando adiante processos de alteração legislativa, de acordo com as recomendações da Comissão e da Relatoria, motivo pelo qual se insta os Estados que não tenham começado estes processos imitar essas iniciativas.
30.       Chile derrogou, em 2001, o delito de desacato previsto no art. 6 b da Lei de Segurança do Estado. A modificação se fez por meio da “Lei sobre as Liberdades de Opinião e Informação e Exercício do Jornalismo”. A lei é a No. 19.733 e apareceu no diário oficial em 4 de junho de 2001. Ademais do Artigo 6b, a lei derrogou outros artigos da Lei de Segurança do Estado, que datava de 1958; entre eles, o Artigo 16, que autorizava a suspensão de publicações e transmissões, e a confiscação imediata de publicações consideradas ofensivas; e o Artigo 17, que estende a responsabilidade penal aos diretores da editora e da gráfica da publicação denunciada. Segundo a nova lei, os tribunais civis, e não os militares, conhecerão  os casos de difamação interpostos por militares contra civis. Ademais, a legislação derrogou a Lei de Abusos de Publicidade de 1967, segundo a qual um juiz pode proibir a cobertura jornalística de um processo judicial. A lei garante, assim mesmo, o direito ao segredo profissional e a proteção das fontes. 
31.       O delito de desacato, todavia, encontra-se vigente tanto no Código Penal como no Código da Justiça Militar. A Relatoria recebeu informação que o Poder Executivo enviou ao Congresso um projeto de modificação deste corpo normativo no que se refere ao desacato. A Relatoria reitera os conceitos vertidos em seu comunicado de imprensa[24] ao culminar sua visita a esse país: o projeto significa um novo avanço, mas insta o Estado a converter o projeto em lei o mais breve possível. Também a Relatoria recebeu informação de que há no Congresso um projeto para reformar os tipos penais referentes aos delitos contra a honra e privacidade. De acordo com o que foi manifestado neste capítulo, essa iniciativa, se estiver de acordo com os parâmetros expostos mais acima, é bem-vinda; entretanto, é recomendável que ela não atrase a discussão e sanção do projeto que derroga o delito de desacato.
32.       A Costa Rica derrogou o delito de desacato em março de 2002 (lei 8224), mediante uma modificação do artigo 309 do Código Penal. O artigo modificado dispõe:
Artigo 309.—Ameaça a um funcionário público. Será reprimido com prisão de um mês a dois anos quem ameaçar a um funcionário público por causa de suas funções, dirigindo-se a ele pessoal ou publicamente, ou mediante comunicação escrita, telegráfica ou telefônica ou pela via hierárquica.
33.       Igualmente, a Relatoria recebeu informação que neste país existe em andamento no Congresso um projeto de reforma ao Código Penal referente aos delitos contra a honra. A Relatoria insta o Estado a avançar nas modificações necessárias, de acordo com as considerações expostas no presente relatório.
34.       Por último, a Relatoria recebeu informação de que também no Peru existem vários projetos de lei para derrogar o delito de desacato, apresentados à Comissão de Justiça do Congresso. Igualmente, existiria também um projeto de lei que descriminaliza a injúria e a difamação, caso se trate de informação falsa ou opiniões através da imprensa contra um funcionário, guardando  determinadas circunstâncias.
35.       Como mencionado inicialmente, pode-se ver que os avanços foram poucos desde a publicação do Relatório correspondente ao ano 2000. É auspicioso que nos países mencionados se tenham produzido modificações ou estão em processo de discussão. É de se esperar que, ainda tendo em conta os processos legislativos internos de cada um dos países, estas discussões não demorem e que os projetos rapidamente encontrem sanção legislativa. A Relatoria finalmente insta todos os Estados membros  adaptar sua legislação de acordo aos padrões de garantia da liberdade de expressão estabelecidos pelo sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.


[1]Ver Relatório Anual da CIDH, 1998 Volume III, Capítulo IV A. –OEA/Ser.L/V/II.102 Doc.6 rev. 16 abril 1999-; e Informe Anual da CIDH, 2000 Volume III, Capítulo III A.2. –OEA/Ser.L/V/II.111 Doc.20 rev. 16 abril 2001-
[2] CIDH, Relatório sobre a compatibilidade entre as leis de desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA/Ser. L/V/II.88, doc. 9 rev., 17 de fevereiro de 1995, 197-212.
[3] Ibid., 212.
[4] Ibid., 207.
[5] Ibid.
[6] Ibid., 209.
[7] A Declaração de Chapultepec foi firmada pelos chefes de Estado dos seguintes países, que se comprometeram a cumprir suas disposições: Argentina, Bolívia, Belize, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, os Estados Unidos, Granada, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Porto Rico, a República Dominicana e Uruguai.
[8] “Definir a Difamação:  Princípios de Liberdade de Expressão e de Proteção da Reputação”, aprovado pela organização não governamental Artigo XIX, Londres, julho de 2000.
[9] Ibid., Princípio 4(a).
[10]Ver em  “Relatório Anual da CIDH, 2000”, Volume III, Relatório da Relatoria para a Liberdade de Expressão, Capítulo II (OEA/Ser.L/V/II.111 Doc.20 rev. 16 abril 2001).
11“Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como “leis de desacato”,atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.”
[12] Os Direitos Civis e Políticos, em Particular as Questões Relacionadas com a Liberdade de Expressão, documento da ONU No. E/C.4/2000/63, 18 de janeiro de 2000 (também pode ser obtido em inglês com o mesmo número de documento).
[13] The World Development Report 2002, em www-wds.worldbank.org/servlet/WDS_Ibank _Servlet?pcont=details&eid=000094946_01092204010635.
[14]IFEX –http:/www.ifex.org-, “The International Freedom of Expression Exchange” uma Organização não Governamental com sede em Toronto, Canadá.
[15] Nessa reunião participaram, entre outros: Alliance of Independent Journalists, Indonesia; ARTICLE 19, South Africa; Association de Journalistes du Burkina; Canadian Journalists for Free Expression, Canada; Center for Human Rights and Democratic Studies, Nepal; Center for Media Freedom and Responsibility, Philippines; Centro Nacional de Comunicação Social, México; Committee to Protect Journalists, USA; Ethiopian Free Press Journalists' Association, Ethiopia; Féderation professionnelle des journalistes du Québec, Canada; Free Media Movement, Sri Lanka
Freedom House, USA; Freedom of Expression Institute, South Africa; Independent Journalism Center, Moldova; Independent Journalism Centre, Nigeria; Index on Censorship, United Kingdom; Instituto Imprensa e Sociedade, Peru; International Federation of Journalists, Belgium; International Federation of Library Associations and Institutions (IFLA) – Free Access to Information and Freedom of Expression (FAIFE), International Press Institute, Austria; Journaliste en danger, Democratic Republic of Congo; Media Institute of Southern Africa, Namibia; Pacific Islands News Association, Fiji Islands; JORNALISTAS, Associação para a Defesa do Jornalismo Independente, Argentina; Press Union of Liberia; Thai Journalists Association, Thailand; Timor Lorosa'e Journalists Association; West African Journalists Association, Senegal; World Press Freedom Committee, USA.
[16] Ibid., 211
[17]10.       As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a divulgação de informação de interesse público. A proteção à reputação deve estar garantida só através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida for um funcionário público ou pessoa pública ou privada que tenha se envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público.  Ademais, nestes casos, deve-se provar que, na difusão das noticias, o comunicador teve a intenção de infligir dano ou pleno conhecimento de que se estava divulgando noticias falsas ou se conduziu com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas.
[18]Ver comunicado de imprensa da SIP em http://216.147.196.167/espanol/pressreleases/srchphrasedetail. cfm?PressReleaseID=836
[19]Esta idéia, em parte, tem sido exposta de maneira concreta e concisa por Germán Bidart Campos em um antigo artigo intitulado “A auto-censura na liberdade de expressão” (Revista El Derecho, Buenos Aires, Argentina, To.83 pág.895):  “O direito constitucional tem-se preocupado muito por erradicar as medidas restritivas da liberdade de expressão. No caso argentino, a Constituição tomou a precaução de proibir a censura prévia... Pese a ele, hoje cremos que em muitas sociedades contemporâneas assistimos a um fenômeno muito mais difícil de regular normativamente, porque se produz espontaneamente sem que, na maioria dos casos, seja possível detectar um autor responsável a quem aplicar-lhe pessoalmente um dever de atuar. Nos referimos ao fato da auto-censura. Sociedades existem que atravessam em determinados momentos uma etapa crítica na que, por circunstâncias diferentes, os homens se coíbem a si mesmos em sua pretensão de expressar as idéias livremente, através dos meios de comunicação social. Em alguns casos, isso pode ser prudência, em outros, covardia, em outros, complacência para com os governantes, em outros, temor à repressão. Numa palavra, o fenômeno consiste em que as pessoas preferem guardar silêncio, dissimular sua opinião, calar uma crítica, não expor uma doutrina ou um ponto de vista. Intimamente, essas pessoas desejariam se expressar, mas se contêm ou abortam sua expressão por alguma das causas estas anteriormente. Não se trata de que haja apatia ou indiferença, mas sim pressões sociais difusas ou diretas que compelem a usar a alternativa do mutismo. E isto é patológico, isso denota uma enfermidade social, em quanto é do meio social de onde provêm os estímulos que induzem a não se expressar. Dissemos que geralmente não se descobre o autor responsável por esta situação. Mas algumas vezes esse responsável é o governo. Se, por ex., os jornalistas são vítimas de coerções, perseguições, de travas no exercício de sua função, de repressões, ou de qualquer outra classe de conduta restritiva, a atmosfera coletiva retrai, sobremaneira, a possibilidade de se expressar. O clima não se torna propício, e as pessoas preferem a segurança de não se verem submetidos a padecer um provável prejuízo, ao desafio de fazer pública uma opinião. Quem escolher a via de uma expressão audaz, pode se dar “mal”, é difícil que sua capacidade de reação lhe permita superar a pressão do meio hostil. Então, cala. Não houve censura no sentido estrito, mas houve coerção. Pode ser a ameaça, o risco, o medo, ou tantas coisas mais. E isso é patológico.”.
[20] Em relação com o bem jurídico honra, desde sempre tem sido complexo outorgar-lhe um conteúdo concreto. Cesare Beccaría há meados de 1.700 incluiu um capítulo em seu trabalho “Dos delitos e das penas” dedicado a Injúria. Ali em relação à honra, textualmente, diz: “Esta palavra honra é uma dessas que tem servido de base para longos tratados e brilhantes pensamentos, sem lhe designar uma idéia fixa e estável.” De qualquer modo, não é pertinente neste caso desenvolver esta questão.
[21]Também poderia apresentar como uma condição objetiva de não punibilidade ou de não perseguição. O importante será que, ante uma eventual ação judicial, isso seja examinado a maneira de exceção prévia para evitar o trâmite do processo penal.  Sobre esta categoria dogmática, ver por todos, Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo 1, Fundamentos. Eesterial Civitas, S.A., Madrid, Seção 6.
[22]Ver Código Penal Argentino, Titulo IV: Delitos contra a Propriedade, Cap. VIII - Disposições Gerais,  Art.  185.- Estão isentos de responsabilidade criminal, sem prejuízo da civil, pelos furtos, fraudes ou danos que reciprocamente se causarem: 1)os cônjuges ascendentes descendentes e afins na linha direta…; Código Penal de Uruguai Livro I, Título II, Capítulo III: Das causa de impunidade, Artigo 41 (O parentesco, nos delitos contra a propriedade) "Ficam isentos de pena os autores dos delitos contra a propriedade, exceção feita ao roubo, extorsão, seqüestro, perturbação de posse e todos os outros cometidos com violência quando participaram as circunstâncias seguintes: 1°. Que foram cometidos pelo cônjuge em prejuízo do outro, sempre que não estiverem separados de acordo à lei, definitiva o provisoriamente. 2°. Pelos descendentes legítimos em prejuízo de ascendentes ou pelo filho natural reconhecido ou declarado tal, em prejuízo dos pais ou vice-versa ou pelos afins em linha reta, pelos pais ou os filhos adotivos. 3° Pelos irmãos quando viverem em família. Código Penal da Nicarágua, capítulo IX Disposições Comuns aos Capítulos Anteriores, Art. 296.- Estão isentos de responsabilidade criminal e sujeitos unicamente a civil, os devedores puníveis ou autores de usurpação, roubos, fraudes, perturbações, estelionatos, invasões ilegítimas, furtos, ou danos que reciprocamente se causem: 1) Os ascendentes e descendentes legítimos, pais ou filhos adotivos. 2)Os parentes afins legítimos, em toda a linha reta. 3)Os cônjuges. 4)Os pais ou filhos naturais. 5) Os parentes co-sanguíneos legítimos na linha colateral, até o segundo grau inclusive. 6) Os pais e filhos ilegítimos notoriamente reconhecidos; Código Penal da República do Paraguai, Lei N° 1.160, Título II, Capítulo 1: Atos Puníveis Contra a Propriedade, Art. 175 estabelece que um parente que vive na comunidade doméstica com o autor pode ficar eximido de pena.
[23]Ver, Projeto de lei sobre descriminalização dos delitos de injúria e calúnia contidos nos Códigos Civil e Penal da Nação Argentina, publicado no Relatório Anual da Relatoria para a Liberdade de Expressão do ano 1999.
[24]Nº 66/2002


Fonte: http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=533&lID=4

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