Na seção de hoje (5/9/13) o ministro Joaquim Barbosa rejeitou a possibilidade de embargos infringentes, contra decisão do STF, em caso de competência originária (casos julgados originariamente em razão do foro por prerrogativa de função). Fomos honrados, Valério Mazzuoli e eu, com a citação por ele da nossa doutrina a respeito do duplo grau de jurisdição.
Artigos do prof. LFG
LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e coeditor do portal atualidades do direito.com.br. Estou ao vivo no portal e TVAD.
Na seção de hoje (5/9/13) o ministro Joaquim Barbosa rejeitou a possibilidade de embargos infringentes, contra decisão do STF, em caso de competência originária (casos julgados originariamente em razão do foro por prerrogativa de função). Fomos honrados, Valério Mazzuoli e eu, com a citação por ele da nossa doutrina a respeito do duplo grau de jurisdição (aliás, trata-se de citação feita originalmente pelo min. Celso de Mello, que foi reproduzida no voto do min. Joaquim Barbosa). Duas observações importantes: (a) eu, particularmente, apesar de todos os argumentos contrários, discordo do min. Barbosa e entendo que os embargos infringentes são cabíveis (a polêmica, no entanto, é grande); (b) Valério Mazzuoli e eu afirmávamos na terceira edição do nosso livro Comentários à CADH (RT) que o sistema europeu (europeu!) não admite o duplo grau de jurisdição quando o caso é julgado pela máxima corte do país. Vamos aos nossos argumentos e fundamentos:
(a) Por que entendo cabíveis os embargos infringentes?
De acordo com a minha opinião, não há dúvida que tais embargos (infringentes) são cabíveis. Dois são os fundamentos (consoante meu ponto de vista): (a) com os embargos infringentes cumpre-se o duplo grau de jurisdição garantido tanto pela Convenção Americana dos Direitos Humanos (art. 8º, 2, “h”) bem como pela jurisprudência da Corte Interamericana (Caso Barreto Leiva); (b) existe séria controvérsia sobre se tais embargos foram ou não revogados pela Lei 8.038/90. Sempre que não exista consenso sobre a revogação ou não de um direito, cabe interpretar o ordenamento jurídico de forma mais favorável ao réu, que tem, nessa circunstância, direito ao melhor direito.
Haveria um terceiro argumento para a admissão dos embargos infringentes? Sim. A esses dois fundamentos cabe ainda agregar um terceiro: vedação de retrocesso. Se de 1988 (data da Constituição) até 1990 (data da lei 8.038) existiu, sem questionamento, o recurso dos embargos infringentes (art. 333 do RISTF), cabe concluir que a nova lei, ainda que fosse explícita sobre essa revogação (o que não aconteceu), não poderia ter valor, porque implicaria retrocesso nos direitos fundamentais do condenado. De se observar que tais embargos, no caso de condenação originária no STF, cumprem o papel do duplo grau de jurisdição, assegurado pelo sistema interamericano de direitos humanos.
Pelos três fundamentos expostos, minha opinião é no sentido de que o Min. Joaquim Barbosa (que já rejeitou os embargos infringentes de Delúbio) não está na companhia do melhor direito. O tema vai passar pelo Plenário, provavelmente na próxima seção (de 12/9/13). A controvérsia será imensa (ao que tudo indica).
(b) Cabimento do duplo grau de jurisdição
Dentro de poucos dias sairá a 4ª edição do nosso livro Comentários à CADH (RT). Nela, sobre o cabimento do duplo grau de jurisdição no sistema interamericano de direitos humanos, esclarecemos (Valério Mazzuoli e eu) o seguinte:
“As duas exceções ao direito ao duplo grau, que vêm sendo reconhecidas no âmbito dos órgãos jurisdicionais europeus [europeus!], são as seguintes: (a) caso de condenação imposta em razão de recurso contra sentença absolutória; (b) condenação imposta pelo tribunal máximo do país. ([1]) Mas a sistemática do direito e da jurisprudência interamericana é distinta [agregamos essa parte na 4ª edição, porque agora sabemos o que pensa a CIDH]. Diferentemente do que se passa com o sistema europeu, vem o sistema interamericano afirmando que o respeito ao duplo grau de jurisdição é absolutamente indispensável, mesmo que se trate de condenação pelo órgão máximo do país. Não existem ressalvas no sistema interamericano em relação ao duplo grau de jurisdição”.
“A Corte Interamericana não é um tribunal que está acima do STF, ou seja, não há hierarquia entre eles. É por isso que ela não constitui um órgão recursal. Porém, suas decisões obrigam o país que é condenado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Pacta sunt servanda: ninguém é obrigado a assumir compromissos internacionais. Depois de assumidos, devem ser cumpridos”.
“De forma direta a Corte não interfere nos processos que tramitam num determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição (em razão de livre e espontânea adesão), porém, de forma indireta sim. No famoso “caso mensalão” o tema foi amplamente discutido. Pediu-se, no princípio do julgamento, a separação dos processos em relação aos réus que não contavam com foro especial por prerrogativa de função. Por maioria e contrariando sua própria jurisprudência, deliberou o STF não separar os processos. Todos foram julgados em instância única (no STF). E agora vão questionar essa decisão no sistema interamericano, com grande chance de sucesso. Por quê?”
“Porque não é verdade que Corte não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo STF ou que as sanções da Corte seriam basicamente indenizatórias. Nada mais equivocado do que essas conclusões, totalmente desatualizadas, que revelam formação jurídica eminentemente legalista”.
“No caso Barreto Leiva contra Venezuela a Corte, em sua decisão de 17.11.09, apresentou duas surpresas: a primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição (direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada) e a segunda é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão com quem desfruta dessa prerrogativa”.
“Esse precedente da Corte Interamericana encaixa-se como luva ao processo do mensalão. Mais detalhadamente, o que a Corte decidiu foi o seguinte”: “Se o interessado requerer, o Estado (Venezuela no caso) deve conceder o direito de recorrer da sentença, que deve ser revisada em sua totalidade. No segundo julgamento, caso se verifique que o anterior foi adequado ao Direito, nada há a determinar. Se decidir que o réu é inocente ou que a sentença não está adequada ao Direito, disporá sobre as medidas de reparação em favor do réu.”
“A obrigação de respeitar o duplo grau de jurisdição, continua a sentença da Corte Interamericana, deve ser cumprida pelo Estado, por meio do seu Poder Judiciário, em prazo razoável (concedeu-se o prazo de um ano). De outro lado, também deve o Estado fazer as devidas adequações no seu direito interno, de forma a garantir sempre o duplo grau de jurisdição, mesmo quando se trata de réu com foro especial por prerrogativa de função”.
“A parte mais enfática da decisão foi a seguinte: “A Corte, tendo em conta que a reparação do dano ocasionado pela infração de uma obrigação internacional requer, sempre que seja possível, a plena restituição (restitutio in integrum), que consiste no restabelecimento da situação anterior, decide ordenar ao Estado que brinde o senhor Barreto Leiva com a possibilidade de recorrer da sentença citada”.
“No que diz respeito à reparação dos danos, uma distinção fundamental é a seguinte: uma coisa é a reparação de um dano decorrente da violação de um direito humano que não pode ser restituído à situação anterior (no caso Ximenes Lopes, por exemplo, reclamava-se da sua morte por culpa do SUS). Aqui só resta pagar indenização e investigar os abusos. Situação bem diversa é a violação de uma garantia processual, como é o caso do duplo grau de jurisdição, que ainda pode ser cumprida pelo país. Se a reparação pode ser integral, é ela que deve ser imposta e respeitada pelo Estado”.
“Ainda ficou dito que a Corte iria fiscalizar o cumprimento da sua sentença e que o país condenado deve cumprir seus deveres de acordo com a Convenção Americana”.
“O julgamento do STF, com veemência, para além de revelar a total independência dos seus membros, reafirmou valores republicanos de primeira grandeza, tais como reprovação da corrupção, moralidade pública, desonestidade dos partidos políticos, retidão ética dos agentes públicos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc. O valor histórico e moralizador dessa sentença é inigualável”.
“Mas do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do jogo do Estado de Direito, o provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano, incluindo especialmente o brasileiro, apresentam-se como deploráveis. Por vícios procedimentais decorrentes da baixíssima adequação da, muitas vezes, autoritária jurisprudência brasileira à jurisprudência internacional, a mais histórica e emblemática de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado”.
“De outro lado, quando o julgamento acontece na Corte Máxima, a única interpretação possível do art. 8º, II, “h”, da CADH, é que este mesmo tribunal é o competente para o segundo julgamento. Foi isso que determinou a CIDH no caso Barreto Leiva. Quando não existe outro juiz ou Corte “superior”, é a mesma Corte máxima que deve proceder ao segundo julgamento porque, no âmbito criminal, nenhum réu jamais pode ser tolhido desse segundo julgamento (consoante a firme e incisiva jurisprudência da CIDH)”.
[1] . Cf. Jugo, Gabriela. El derecho de recurrir la sentencia penal condenatória… Los derechos humanos en el proceso penal. Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 2002, p. 249 e ss. (especialmente p. 290).
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