Reagindo ao deplorável escândalo da manutenção do mandato do deputado Donadon, a Câmara dos Deputados aprovou o fim do voto secreto, em todas as situações, em todas as casas legislativas.
Artigos do prof. LFG
LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e coeditor do portal Atualidades do Direito
Reagindo ao deplorável escândalo da manutenção do mandato do deputado Donadon, a Câmara dos Deputados aprovou o fim do voto secreto, em todas as situações, em todas as casas legislativas. Isso não vai passar no Senado. Algum termos será consensuado. De qualquer modo, já se trata de uma reação da parasitária classe política à reprovação nacional de norte a sul contra seu corporativismo que retrata a dialética da malandragem.
Democracia e voto
Democracia (desde a antiga Grécia) significa participação do povo nas decisões mais importantes do país (da polis). Essa participação pode ocorrer de forma direta (plebiscito, referendo, iniciativa legislativa popular) ou indireta (por eleições). O voto é o instrumento do cidadão que viabiliza a democracia. Quanto mais livre e consciente o voto, mais democrático o país é (e vice-versa). Em democracias ou conglomerados humanos atrasados, ora falta o voto, ora são poucos os que votam, ora o voto é comprado, ora o voto do legislador é secreto (foi esse voto que beneficiou escandalosamente Donadon). Todos os vícios que maculam o voto contaminam automaticamente o nível da democracia. Ou seja: quando falta ética no voto, conspurca-se a estética da democracia.
Para aprofundar: Breve história do voto no Brasil
No Brasil Colônia (1500-1821) não havia eleições (nem democracia, nem organização governamental própria etc.). Ninguém votava. Mandava o senhor de engenho, o dono da Casa-Grande, o parasita do trabalho dos índios e dos escravos, que governava seu território como um monarca despótico. A partir do Brasil Imperial (1822) o problema passou a ser “quem pode votar” (veja Laurentino Gomes, 1889). Para a Constituinte de 1823 só podiam participar: homem (mulher não), proprietário de terra ou outro bem de raiz (escravos não, índios não, embora fossem os donos de todas as terras (!), assalariados não, ou seja, brancos pobres não), com idade mínima de 20 anos. Também foram excluídos os estrangeiros e os que não professavam a religião católica. Ou seja: votavam fundamentalmente os parasitas, que são os que não colocam a mão no trabalho duro, gerador original da riqueza, tendo para fazer isso escravos, índios e brancos pobres, sob o chicote do feitor.
Voto significa democracia; mas se os votantes são somente os parasitários do país, tínhamos no Império uma democracia liberal parasitária (retrato perfeito dos dois brasis: o parasitante que vota e o parasitado que não vota). A situação se agravou com a Constituição de 1824, visto que ela aumentou a idade do votante para 25 anos e introduziu no Brasil o critério da renda mínima para votar (voto censitário). Ou seja: foi reduzido o número dos votantes parasitários (que são os que vivem do trabalho escravo ou do trabalho assalariado vil, ignóbil e imoral).
Para os cargos mais importantes, a renda mínima exigida era maior (é dizer: somente a elite parasitária podia eleger seus pares parasitários para os cargos mais importantes da monarquia constitucional). O voto direto para as eleições legislativas só aconteceu em 1881 (mas somente os parasitários votavam, porque foram excluídos os parasitados analfabetos). Resultado: na eleição de 1886 apenas 0,8% da população votou (Laurentino Gomes, 1889).
Nos primeiros anos da Primeira República (a partir de 1889) ainda era baixíssimo o número de votantes. A elite brasileira (agroexportadora) continuava parasitária, mas não mais fundada na escravidão (abolida formalmente em 1888), sim, no neoescravagismo (trabalho assalariado vil, ignóbil e imoral, que foi recusado por muitos estrangeiros que para cá vieram para trabalhar). Neoescravagismo, analfabetismo, concentração de riquezas (nas mãos dos parasitários) e exclusão da imensa maioria da população do processo eleitoral: esse era o sistema eleitoral nos primeiros anos da república, que se caracterizava também (e sobretudo) pelo voto manipulado, fraudado, roubado e comprado. O voto do eleitor, num determinado período, foi aberto. Isso deu margem para a fraude. Também foi (e ainda é) uma prática corrente, nesse período, o voto de cabresto, comandado pelo coronelismo (veja Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto).
Nas duas ditaduras (1930-1945 e 1964-1985) não se falava em voto (ao menos para o executivo federal). No período democrático de 1946-1963 continuava o voto roubado, comprado, roubado, fraudado. As eleições, ao longo do século XX, foram se universalizando, mas sem nenhuma garantia de limpeza no processo eleitoral. É dizer: continuávamos sob o império do voto viciado. Já na redemocratização, com a CF de 88, além do abuso do poder econômico (que é generalizado), veio o voto secreto dentro do parlamento, que acaba de contribuir para a “absolvição” do presidiário Donadon (o primeiro presidiário com os direitos políticos suspensos que continua sendo deputado federal). O voto secreto para o eleitor é garantia de boa democracia. O voto secreto do Parlamentar é contra a democracia, porque todos temos o direito de saber o que pensa o nosso representante.
A “absolvição” de Donadon pela Câmara dos Deputados (em agosto de 2013), por isso mesmo, entra para os anais da nossa história como uma síntese perfeita do Brasil parasitário (do Brasil que não deu certo), que é produto, como disse Darcy Ribeiro (na apresentação do livro de Manoel Bomfim, A América Latina – males de origem), “da mediocridade do projeto das classes dominantes que aqui organizaram nossas sociedades em proveito próprio, com o maior descaso pelo povo trabalhador, visto como uma mera fonte de energia produtiva, que ele podia desgastar como bem quisesse”.
Mas o aspecto mais espetacular da obra do sergipano Manoel Bomfim, escrita em 1903, é o concernente à sua oposição ferrenha contra todos os “pensadores” (muitos europeus) que apoiam as elites atrasadas que mantém o Brasil na rabeira do desenvolvimento, do progresso e da ética. Manifestou toda sua indignação com a injustiça, mas sem perder a esperança de um Brasil despojado dos seus vícios originais.
Brasil: futuro sem parasitismo (essa é a saída)
O Brasil é um país viável, mas para isso tem que fazer um corte profundo nas suas tradições parasitárias, que transmitem o vírus (de geração em geração) de que podemos, sem nenhuma vergonha, nos enriquecer à custa da corrupção, da malandragem, do trabalho escravo ou da servidão neoescravagista. Não podemos continuar com os olhos fechados para as barbáries parasitárias dos primeiros cinco séculos. Enquanto não colocarmos sobre a mesa nossos graves males de origem nós não conseguiremos evoluir rumo à civilização. O poder de decisão não pode mais ficar nas mãos exclusivas das classes dominantes, muitas parasitárias, visto que elas são infecundas, avaras, conservadoras e crueis.
Se já estivesse funcionando a democracia direta digital (DDD), que sustentamos no nosso livro Por que estamos indignados? (no prelo), democracia ancorada numa plataforma em rede, que é o Fórum Cidadão, nós não teríamos de forma nenhuma permitido que a Câmara dos Deputados deliberasse o acobertamento imoral e escandaloso de um dos seus notáveis malfeitores. A votação na Câmara tinha que ter sido acompanhada paralelamente (em tempo real) pela vigilância do Fórum Cidadão (Fórum do Povo), que estaria dialogando com cada parlamentar, narrando, em seguida, nas redes sociais, a postura de cada um (para a devida avaliação de todos os eleitores). Os interesses do país (se é que queremos construir uma verdadeira Nação, com o mínimo e dignidade) não podem mais ficar nas mãos exclusivas das elites parasitárias. Isso é conditio sine qua non para nossa evolução, para nossa civilização.
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