APARTHEID BRASILEIRO
Os chamados rolezinhos — encontro de jovens em shoppings marcados por redes sociais — têm causado preocupação nos proprietários de lojas de São Paulo. Desde de dezembro do ano passado, esses encontros tem acontecido em todo o estado e, em alguns, foram registradas ocorrências como furtos, tumulto e depredação. Para evitar que isso aconteça, alguns estabelecimentos comerciais recorreram à Justiça e conseguiram decisões liminares impedindo os eventos no último final de semana (11 e 12/1). Ainda que a proibição de entrada não estivesse proibida, foram relatados casos de pessoas impedidas de ingressar nos locais.
Para o advogado Marcelo Feller, do Feller e Serra Advogados, do ponto de vista jurídico, não há qualquer problema nas decisões da Justiça. “O problema está por trás. Os rolezinhos são uma tentativa da classe emergente de fazer parte do que lhe é tirado. Porém, os shoppings, com chancela da Justiça, reafirmam que esse acesso não lhes pertence. Criou-se uma especie de apartheid, uma segregação social, mostrando àqueles jovens que ali não pertencem”, afirma. Feller aponta um um vídeo na internet de 2011 que mostra jovens da comemorando a aprovação no vestibular da USP com gritos e bagunça, sem que houvesse qualquer repressão.
A opinião é reforçada por Edward Rocha de Carvalho, do Miranda e Coutinho Advogados. “Se aparecesse uma legião de mulheres com bolsas Louis Vuitton, elas seriam proibidas? Isso me lembra a doutrina Separate But Equal (Separados mas iguais), que falava que todos eram iguais, mas permitia a segregação. Os negros não eram proibidos de andar de ônibus, desde que ficassem apenas no espaço reservado a eles”, compara.
Os advogados criticam duramente o sistema judicial brasileiro. “Essa liminar mostra que o judiciário brasileiro é feito para proteger os ricos dos pobres. Nós já sabiamos que existia uma divisão de casta no Brasil, agora temos isso confirmado por uma decisão judicial. É uma vergonha”, diz Carvalho. Segundo ele, o shopping é um local privado aberto ao público, e por isso deve permitir a circulação do público sem qualquer tipo de segregação ou preconceito.
Marcelo Feller complementa afirmando que a Justiça no Brasil é elitista. “A Justiça é elitista para que se mantenha o status quo, não serve para as classes C e D, que são a maioria carcerária. De que adianta aplicar uma multa de R$ 10 mil se a pessoa não tem como pagar? Só resta utilizar a força policial”, critica.
Para Roberto Mortari Cardillo, do Cardillo & Prado Rossi Advogados, os shoppings agiram corretamente ao buscar a Justiça. “O direito de cada um termina quando começa o direito do outro e não há nenhum direito absoluto, inclusive o da manifestação”, explica. Segundo ele, em alguns encontros marcados os jovens afirmaram que tinham como objetivo causar tumultos, como ir no sentido contrário aos das escadas rolantes, fazer guerra de comida na praça de alimentação, entre outros.
Diogo L. Machado de Melo, diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), também concorda com as medidas adotadas pelos shoppings. Segundo ele, como regra, nenhum estabelecimento aberto ao público poderá discriminar a entrada de consumidores sem justificativa, ainda mais pela idade. “Ocorre que no caso concreto, a restrição imposta pelo shopping JK foi adotada para o cumprimento e medida de apoio ao cumprimento de uma liminar que impedia o “rolezinho” naquele local. Ou seja, o Judiciário visualizou uma situação excepcional e garantiu ao estabelecimento, baseado em provas concretas, o uso de medidas preventivas para se evitar a manifestação no local, em proteção aos demais consumidores e lojistas”.
Para ele, o uso de palavras vagas nas decisões liminares é normal, sendo admitido ao autor da ação adotar medidas de apoio para se garantir o uso manso e pacífico dessa posse. Segundo Melo, caso o shopping tenha cometido algum abuso, poderá o juiz especificar o cumprimento de sua ordem e coibir o shopping de adotar novas medidas restritivas.
Casos anteriores
As duas decisões que proibiram os rolezinhos são praticamente idênticas. Nelas os juízes argumentam que o direito constitucional da livre manifestação deve ser exercido com limites e o shopping é um local impróprio, pois impede o exercício de profissão dos funcionários. Além disso argumentam, com base em informações da imprensa, que alguns grupos se infiltram nos rolezinhos com finalidades ilíticas.
“É certo que além de o espaço ser impróprio para manifestação contra questão que envolve Baile Funk, mesmo que legítima seja, é cediço que pequenos grupos se infiltram nestas reuniões com finalidades ilícitas e transformam movimento pacífico em ato de depredação, subtração, violando o direito do dono da propriedade, do comerciante e do cliente do Shopping . A imprensa tem noticiado reiteradamente os abusos cometidos por alguns manifestantes”, registrou o juiz Alberto Gibin Villela, da 14ª Vara Cível da capital, proibindo o encontro que estava marcado para o último sábado (11/1) no Shopping JK Iguatemi (1001597-90.2014.8.26.0100).
O mesmo argumento foi utilizado pela juíza Daniella Carla Russo Greco de Lemos, da 3ª Vara Civel do Foro Regional de Itaquera, que proibiu o encontro no Shopping Metrô Itaquera (1000339-33.2014.8.26.0007 ). “A Constituição Federal estabeleceu direitos fundamentais a todos. Esses direitos importam também em obrigações a cada um, que tem o dever de olhar a sua volta para avaliar se sua conduta não invade a esfera jurídica alheia. O Estado não pode garantir o direito de manifestações e olvidar-se do direito de propriedade, do livre exercício da profissão e da segurança pública. Todas as garantias tem a mesma importância e relevância social e jurídica”, complementou.
As duas liminares impedem que o encontro aconteça e estabelece pena de R$ 10 mil para cada manifestante idenfiticado. Além disso, as decisões determinam que as autoridades policiais sejam comunicadas para tomar “todas as medidas necessárias para impedir a concretização do movimento no espaço pertencente ao autor e garantir a segurança pública e patrimonial dos clientes, comerciantes e proprietários do centro de comércio autor”.
No Shopping Metrô Itaquera a Polícia Militar utilizou balas de borracha e bombas de gás contra um grupo de jovens. Segundo a Secretaria de Estado de Segurança Pública, "centenas" de jovens promoveram quebra-quebra, furtos e roubos no centro comercial. Três pessoas foram detidas.
Histórico não justifica
Os atos ilícitos praticados em encontros anteriores não justificam as medidas adotadas, defende Edward Carvalho. “Por causa de alguns casos de violência em outras reuniões parecidas o juiz acha que pode proibir as futuras. Isso não pode. Os atos isolados de violência já aconteceram nas passeatas, porém na ocasião elas não foram proibidas, e nem poderiam”, complementa.
Para Marcelo Feller, o histórico também não pode ser usado para embasar as decisões e as proibições. “A história nos mostra que nem sempre se pode confiar na polícia”, diz. Segundo ele, além das liminares, os shoppings também não poderiam controlar a entrada de pessoas, como aconteceu no Shopping JK Iguatemi.
“A existência de casos de furtos e baderna em eventos semelhantes anteriores não autoriza o shopping a selecionar as pessoas que podem ou não ingressar no centro comercial. Não dá pra fazer essa seleção classista. O shopping não pode barrar por cor da pele, bairro onde mora ou poder aquisitivo”, diz. Segundo ele, os jovens só poderiam ser proibidos de entrar no shopping se falassem na entrada que estavam indo para o ato proibido ou se o shopping possuísse uma lista com todos os confirmados e verificasse nome por nome, o que não ocorreu.
Para os advogados, os envolvidos em atos ilícitos devem ser identificados e punidos. SegundoGuilherme San Juan Araujo, do San Juan Araujo Advogados, os jovens identificados podem ser enquadrados na perturbação da tranquilidade e eles podem ser conduzidos à delegacia de polícia. “Além deste, outros tipos penais podem ser violados, de acordo com a conduta praticada pelos infratores e contraventores”, diz.
Para o próximo sábado (18/1) está marcado um novo encontro no Shopping JK Iguatemi. De acordo com a página do evento no Facebook, que conta com mais de 1,5 mil confirmados, “o objetivo do ato é expor a segregação racial e social que existe em São Paulo, e manifestar o nosso repúdio a liminar da justiça que impediu o rolezinho no shopping”.
Encontros permitidos
Em outras duas liminares os encontros não foram proibidos. O shopping Parque Dom Pedro, em Campinas, teve seu pedido negado (1000219-57.2014.8.26.0114). Segundo o juiz Renato Siqueira de Pretto, da 1ª Vara Cível de Campinas, o encontro marcado pelo Facebook não fazia apologia à qualquer ato contrário à ordem pública e que medidas preventivas poderiam ser tomadas, como alertar as autoridades policiais para caso uma intervenção seja necessária.
Já o shopping Campo Limpo, localizado na capital paulista, teve seu pedido parcialmente aceito (1000656-46.2014.8.26.0002). Na decisão o juiz Antonio Carlos Santoro Filho, da 5ª Vara Cível do Foro de Santo Amaro, não proibiu o encontro. “Entendo que o direito à livre manifestação, ou mesmo de reunião, deve ceder espaço para a preservação da ordem e paz públicas, conjugadas com o direito de ir e vir e dos valores sociais do trabalho, este último, um dos fundamentos da própria República”, apontou na liminar. Com base nesse entendimento, autorizou o encontro desde que os participantes não pratiquem atos ilíticos que impliquem ameaça à segurança dos frequentadores e funcionários do shopping, sob pena de multa de R$ 10 mil.
Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico
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