Esta foto foi bem destacada na cobertura dos rolezinhos em SP: segundo foi noticiado, o policial segurando o cassetete teria ameaçado: "Eu te arrebento" |
Os passeios em massa aos shoppings centers, organizados por jovens pobres e negros nos dizem, mais uma vez, de mais uma forma, que esta cidade está escandalosamente dividida, apartada, e que o povo pobre, preto, periférico não tem o mesmo direito sobre ela.
E por que os rolezinhos assustam tanto? Disputa pelo espaço? Disputa pela possibilidade do consumo? Afronta às exclusões? Sim, e também por revelar a pobreza combativa e ousada dos jovens das periferias da metrópole.
Impressiona o desaparecimento da morosidade do judiciário, que ganha asas quando é para defender o uso privado dos espaços, ao lançar quase que imediatamente a liminar proibindo os rolezinhos nos shoppings.
Por Amanda Prado e Kena Chaves, no site Passa Palavra, de 20/01/2014 – reproduzido aqui com alguns recursos de edição jornalística: pequeno acréscimo no título, destaques, mudança na disposição das fotos e legenda numa delas (enviado pelo companheiro Goiano – José Donizette)
Então a proibição do Rolezinho foi a mais nova expressão de exclusão, entre tantas outras com as quais convivemos na cidade. Imigrantes pobres, mães solteiras pobres, jovens negros pobres, desempregados pobres, trabalhadores informais pobres, entre tantos outros pobres têm algo em comum além da pobreza: somos invisíveis. E enquanto invisíveis necessários, subverter esta invisibilidade e questionar a segregação nos é terminantemente proibido, passível de multa e de mais constrangimento.
Dos cavalos do apocalipse apontados por Zizek em Vivendo no fim dos tempos, o crescimento explosivo das divisões e exclusões sociais é aquele que mais sentimos cotidianamente na vida na metrópole. São Paulo, uma cidade segregada, logrou ao longo do histórico de sua urbanização empurrar os negros e pobres para longe das áreas centrais. Ainda hoje, bairros desalojados, favelas incendiadas e posteriormente desaparecidas nos trazem exemplos além de somar às políticas históricas higienistas, elitistas, de apartamento da população pobre e preta, que fizeram com que as periferias crescessem tanto e que as áreas centrais, e aqui pensando a centralidade na cidade para além de pontos cartesianos, se valorizassem.
Aos que insistem em dizer que a divisão entre centro e periferia não existe, é fácil verificar o contrário. Fica clara a concentração de renda, lazer, cultura, áreas verdes, transportes, intervenções urbanas, valorização do capital imobiliário — eis o centro. Os números da violência policial, pobreza, moradias precárias se combinam com a concentração da população afrodescendente —eis a periferia. Sim, é uma sociedade intrinsecamente racista. Sim, é uma cidade apartada. E sim, existe o centro e a periferia.
Parece que sim, a pobreza e a negritude, relegados às periferias, desvalorizam o urbano. O urbano – que na lógica do capital realiza-se como mercadoria na comercialização de suas localizações dentro do emaranhado de serviços, aglomerações populacionais, centros de consumo, disponibilidade e fluxo de transportes, vias de circulação, precisa esconder a pobreza. Ela, que é tão presente neste espaço, das contradições mais funcionais do capitalismo – parece não existir em determinadas zonas da cidade. Não por acaso.
Diferentemente de algumas cidades do Brasil, São Paulo consegue colocar sua pobreza debaixo do tapete. Para lá da ponte dos rios. Detrás dos muros. Sem estação de metrô. Sem corredor de ônibus. Com passagem cara no transporte. Encaixotados em conjuntos habitacionais nas bordas da urbe. Sobrepostos na última favela central que sobrevive às investidas do imobiliarismo. Ameaçando a redoma privada em sinais fechados. Apartados por fios elétricos fatais. Escondidos em cozinhas sob aventais. Confundidos entre eletrônicos e objetos de plástico. Encarcerados em calabouços. Esgotados no vai e vem rotineiro do transporte lotado… Onde estão os pobres? Onde estão os negros?
A pobreza na cidade existe, como perversidade, como fatalidade e mais que nada de forma fantasmagórica. Travestida nas bordas arredondadas e sedutoras das mercadorias, nos encaixes perfeitos de tijolos e revestimentos, na violência cotidiana que assombra ricos e mata pobres, sempre.
Não que seja coisa simples classificar cada “personagem” dessa trama na dualidade de vítima e vilão. Mas, já diziam os Racionais, “Por ouro e prata, Olha quem morre, Então veja você quem mata, Recebe o mérito…” é fácil de ver também quem tem direito a circular livremente e para quem a cidade permite apenas trajetos pré-determinados, que excluem desta trajetória o convívio, o lazer, os espaços compartilhados e a identidade.
O direito à cidade é o direito à transformação desta sociedade
Ao falar em apartheid, estamos falando no uso (e na impossibilidade de uso) da cidade. Em como os espaços são apropriados pelas classes sociais. Estamos falando em como, dentro desta lógica, é preciso confinar classes, reprimir os desejos subversivos, em função da ordem da reprodução do capital. Impedir mulheres, negros, imigrantes, pobres, invisíveis de circular, significar, transformar a cidade é privá-los do direito à cidade, que, segundo Harvey, é muito mais do que o direito ao acesso àquilo que já existe, traduz o direito a transformar a cidade, sua lógica, seus espaços de convívio, de acordo com os desejos das populações. Longe da conciliação de classes, o direito à cidade é o direito à transformação desta sociedade.
Os passeios em massa aos shoppings centers, organizados por jovens pobres e negros nos dizem, mais uma vez, de mais uma forma, que esta cidade está escandalosamente dividida, apartada, e que o povo pobre, preto, periférico não tem o mesmo direito sobre ela.
Se “quem apanha não esquece”, como podemos acreditar que a reivindicação pelos espaços de convívio não seja resultado da plena consciência desta exclusão?
E por que os rolezinhos assustam tanto? Disputa pelo espaço? Disputa pela possibilidade do consumo? Afronta às exclusões? Sim, e também por revelar a pobreza combativa e ousada dos jovens das periferias da metrópole, que extrapola os limites impostos, revelando o racismo, classismo, intolerância dos ricos e as opções do nosso Estado.
Se para a classe média consumir é lazer, para os pobres tem de ser subsistência. Ao pobre o consumo é o supermercado; o lazer, o entorpecente; e a cultura, a televisão. Só que não!
“Subversivos aqueles que organizam e participam dos rolezinhos”, dizem, com outras e todas as palavras. Se é isto que tanto estrutura a vida cotidiana na cidade: também queremos. Se é o shopping, dentro dessa lógica, a mistura do espaço do encontro, do lazer, da realização da vida na metrópole: também queremos. Se consumir faz-nos sujeitos: queremos sê-lo. Se as mercadorias cotidianas fazem com que sejamos aceitos: aceitem-nos!
Mas parece mesmo que não é só isso. Para além da provocação ao desejo estruturante de nossa sociedade pelo consumo, o rolezinho é denúncia. E não denuncia apenas o mal-estar dos ricos frente aos pobres. O cerne da discussão não está no shopping ou se ele é espaço público ou não. A denúncia é pela segregação, pelo apartheid.
As mídias nos transformam em audiências, nos vendem aos anunciantes
Antes de falar dos espaços públicos, poucos e sempre apropriados, é preciso denunciar os espaços privados. E são eles que vão revelar oapartheid. O shopping é um espaço privado. E é isso que o rolezinho denuncia. Sim, estamos privados do consumo, outra denúncia dos rolezeiros. E a ostentação do funk também pode ser lida como denúncia: sim, as vidas são vitrines.
A cidade se vende segregada. Vende-se livre de pobreza, ou pelo menos algumas áreas da cidade. E ostenta tal “qualidade”. A ostentação está na cidade mesma, em sua materialidade, aquela que conecta os homens no tempo e no espaço, e que se mostra como um convite ao consumo cotidianamente. Não apenas pela quantidade de propaganda que cruzamos, vitrines de negócios diversos, restaurantes, lojas, supermercados, mas também pelas localizações. A possibilidade de lucros com as localizações no urbano. A cidade toda é vitrine de consumo. Bairros elegantes, condomínios, ruas especializadas. “Vem ser feliz”, “lugar de gente feliz”, “qualidade de vida para a família”, “de cliente a fã”, “amar tudo isso”, são slogans e apelos consumistas muito comuns no urbano. O estilo de vida na cidade moderna, na cidade global, é aquele ditado pelo consumo: cores de roupas, de paredes, das unhas, cortes de cabelo, dobras em mangas de camisas, botões abertos ou fechados, forma das cortinas, disposição dos objetos nas casas, organização dos jardins, relações intermediadas por eletrônicos e mídias que nos transformam em audiências, nos vendem aos anunciantes e eles a nós seus produtos, se multiplicam no espaço urbano.
E nesta mesma cidade, do culto ao consumo, de espaços de afirmação da lógica estruturante dos objetos em mercadorias, das relações em mercadorias, dos reis dos camarotes, tem gente que se assusta com ofunk ostentação. Assusta os pobres e negros desejando ou ridicularizando o consumo das elites.
Se, para Harvey (2013), vivemos em cidades divididas, fragmentadas, tendentes ao conflito, podemos acrescentar e dizer que vivemos em cidades fictícias, virtuais. Uma cidade fragmentada, onde as realidades são muitas e raras vezes se cruzam. A segregação, o apartheid, funciona como o elemento que garante a virtualização da realidade que surge como sombra, aquela que não pode ser, que precisa ser evitada. E concordando com Zizek (2003), a “ficção” se mostra como o elemento fundamental à aceitação do cotidiano. Iasi (2013) nos atina também para a reflexão sobre o real, já desde um outro ponto, este como imposição de uma lógica capitalista do funcionamento do cotidiano, da cidade, de circulação, venda da força de trabalho. O real como aquilo que está dado, naturalizado e imutável. E o desejo como subversão, a tentativa de reposicionamento da ordem na cidade, por exemplo, a coragem dos meninos que enfrentam a lógica da segregação, ainda que seja para denunciá-la.
O Estado partidário de uma classe precisa mostrar-se efetivo e sua efetividade é traduzida, no caso da violência policial, no extermínio dos pobres e dos negros. Escolhe-se maltratar, matar, desaparecer com aqueles que já não importam, que não fazem falta ao funcionamento da cidade do capital, os invisíveis.
E mais uma vez, este Estado agiu prontamente e o “Rolezaum no JK” não aconteceu. Impressiona o desaparecimento da morosidade do judiciário, que ganha asas quando é para defender o uso privado dos espaços, ao lançar quase que imediatamente a liminar proibindo os rolezinhos nos shoppings. A ação policial, sempre violenta contra os pobres e pretos, que não só reprimiu a entrada dos participantes do rolezinho no JK como impediu a circulação de jovens em bairros da cidade, como no caso dos meninos enquadrados na entrada da estação de trem em Itaquera.
E claro, os desejos, sempre duramente reprimidos. Mais ainda quando tomados por subversivos da ordem do capital. Aquele que reprime as ações de movimentos sociais, organizações de trabalhadores, bailesfunk nas ruas, rolezinhos é um Estado Capitalista. E é também um Estado classista e racista, que deixa escapar seu partidarismo nas esquinas das periferias todos os dias, e como pode, contra os pobres e negros em todos os lugares.
Nota sobre as autoras:
Amanda Prado é mulher, negra, produtora e ativista cultural: amandaprado@gmail.com
Kena Chaves é geógrafa, curiosa, mestranda pela Universidade Estadual de Campinas: kenachaves@gmail.com
Referências:
HARVEY, D. A liberdade da cidade. IN: Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Boitempo Editorial, 2013.
IASI, M. L. A rebelião, a cidade e a consciência. IN: Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Boitempo Editorial, 2013.
RACIONAIS Mc’s – Negro Drama, do disco “Nada como um dia após o outro”. 2002.
ZIZEK, S. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
______ Bem vindo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
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