ATITUDE ARBITRÁRIA
Existem duas formas de se prender alguém no Brasil conforme o artigo 5º, LXII, da Constituição da República: em flagrante delito ou por determinação de autoridade judicial.
Enquanto a prisão em flagrante consiste em ato administrativo conduzido pela autoridade policial, no nosso caso, pelo delegado da Polícia Civil ou Federal, a prisão por ordem judicial pressupõe representação da autoridade policial ou requerimento da parte ministerial legítima.
Enquanto a prisão por ordem judicial somente pode ser utilizada quando tiver finalidade cautelar ou instrumental, seja para a investigação (prisão temporária, de duvidosa constitucionalidade), seja para o processo (prisão preventiva baseada na ordem pública, na garantia da instrução criminal ou na aplicação da lei penal), a prisão em flagrante que pode ser feita por possibilidade de qualquer do povo ou autoridades da segurança pública tem dois objetivos principais: cessar a prática da infração e permitir apreensão de elementos probatórios imediatos que viabilizem a responsabilização do criminoso.
Superado o Estado Policial de outrora para o Estado Constitucional e democrático, sendo a regra que a restrição sempre excepcional de liberdade somente se dê por ordem judicial, sempre decorrente de pedido de parte legítima e decisão fundamentada em respeito ao artigo 93, IX, da Constituição, evidente que a prisão em flagrante delito, que somente é formalizada juridicamente pela autoridade policial, deve pressupor preenchimento de requisitos formais e materiais, sob pena de ser tida como ilegal. O flagrante consiste numa exigência fática prévia que precisa ser formalizada e registrada pela roupagem jurídica adequada.
Enquanto a prisão cautelar temporária ou preventiva é analisada e decretada por Juízo competente, a prisão em flagrante precisa ser “decretada fundamentadamente” (STJ, RHC 4494-RS – “a prisão em flagrante decretada com a devida fundamentação não ofende o princípio da presunção de inocência”, ainda que a afirmação da ementa não corresponda aos fundamentos discutidos no caso concreto) pela autoridade policial para, posteriormente, após prévia manifestação do titular da ação penal, ser submetida à apreciação do Poder Judiciário para sua validação positiva ou negativa.
Embora o rigor na apreciação da validade desta modalidade de prisão seja implícito ao fato de que esta exige o comunicado imediato ou, no máximo, em até 24 horas tanto da autoridade judicial como do Ministério Público, a prática teima em mostrar que, de modo geral, não se examina com a técnica e rigor necessário a validade da prisão. Por mais que o Código de Processo Penal trate do instituto da prisão em flagrante nos artigos 301 a 310, tal disciplina não tem se mostrado suficiente e, via de regra, é mal interpretada e aplicada.
Os defeitos são muitos. Autoridade policial ausente e que não preside o ato, falta de deliberação fundamentada do enquadramento justificando a restrição do direito constitucional de liberdade de ir e vir, ausência de menção às situações do artigo 302 do Código de Processo Penal, falta de preenchimento adequado da nota de culpa de modo a informar tanto a capitulação legal como o nome do crime, falta de motivação para arbitramento de fiança, falta de qualificação adequada do indiciado etc.
Mesmo assim os flagrantes são confirmados de maneira geral, muitas vezes sem ressalva, sem censura, quando o caminho natural seria o relaxamento da prisão, ou seja, a invalidação do flagrante, que não só tem o efeito de cercear a liberdade como também configura importante elemento de prova de materialidade e, sobretudo, da autoria do delito.
Um dos aspectos ignorados pelo “senso comum” (Warat) que norteia a apreciação do flagrante consiste no fato deste implicar em restrição de direito, consistindo em ato administrativo vinculado que, nos termos do artigo 50 da Lei 9.784/99, exige fundamentação. Ora, se a autoridade judicial após um pedido fundamentado de parte legítima, no caso, o titular da ação penal, Ministério Público, precisa fundamentar o decreto de prisão expedido, isso quando já existe uma investigação ou um processo, com muito mais razão não é de se permitir que a autoridade policial utilize jargões e expressões de significado aberto para segregar o direito de liberdade de quem quer que seja.
Não obstante isso, a compreensão reinante (e irritante) que impõe a dicção do óbvio, na falta de interpretação sistemática, já que o Código de Processo Penal não menciona expressamente uma necessidade intrínseca ao ato, do mesmo modo que é difícil encontrar o ato de “indiciamento” do Delegado como formalização fundamentada e argumentada da probabilidade de autora, é raro de se identificar autos de prisão em flagrante que tenham observado a exigência de motivação justificadora do enquadramento jurídico-penal preliminar dado, o qual, vale dizer, irá prevalecer até o momento da manifestação do Ministério Público e Poder Judiciário, normalmente até a posterior formação de “opinio delicti” pelo Ministério Público como titular da ação penal.
É inaceitável que “a autoridade competente” (artigo 304 do CPP) para apresentação do preso, no caso o delegado de Polícia, quando da deliberação ou exercício de um de seus atos máximos, possa estar ausente do ato, fazendo sugestões ou orientações por telefone, como sabe-se não ocorrer costumeiramente... A legislação é clara ao estabelecer que ouvir o condutor e colher a oitiva das testemunhas é ato que deve ser acompanhado e conduzido diretamente pela autoridade policial, evidentemente com o auxílio do serviço auxiliar disponível à polícia (escrivão ou agente de polícia) apenas para a execução de atos materiais e burocráticos relativos à lavratura do auto (formalização escrita da prisão).
Fosse desnecessária a presença da autoridade policial no auto de prisão em flagrante e estar-se-ia diante da necessidade de rever a utilidade e a necessidade de se manter os cargos de Delegado e da própria carreira, ainda mais considerando que a Lei 12.830/13, prevê o cargo de delegado como “carreira” jurídica, equivalendo a prisão em flagrante a indiciamento, que pressupõe, nos termos do parágrafo sexto do artigo 2º, “ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”; fosse assim e sequer haveria sentido na determinação do artigo 308 do CPP, segundo o qual a falta da autoridade exige que o preso seja apresentado no lugar mais próximo no qual esta esteja presente.
Tratando do tema, ainda que parcialmente, no sentido de exigir a presença da autoridade policial quando da lavratura do auto de prisão em flagrante, sob pena de nulidade, observe-se o disposto no julgamento do Supremo Tribunal Federal HC 77.042-0/RJ, julgado em 16 de maio de 1998, relator ministro Sepúlveda Pertence. Entender diferente é admitir que a “autoridade policial” a que se refere à Lei não consiste no Delegado de Polícia, mas em qualquer agente policial civil ou militar, o que não se entende ser adequado, mas que deve ser objeto de alerta, inclusive por questão de coerência.
São deletérios e nefastos os efeitos da preguiça ou da negligência dos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário no exame do auto de prisão em flagrante que, infelizmente, constantemente são lavrados de modo nulo e viciado. Dois exemplos práticos são bastante elucidativos. A falta de exigência de deliberação fundamentada da autoridade policial pode implicar em atitude arbitrária que não explica o motivo de se enquadrar determinada situação como uso de drogas sujeito à lavratura de termo circunstanciado de outra situação de tráfico, delito equiparado à hediondo e sujeito à formalização de auto de prisão em flagrante. O mesmo vale, por exemplo, para menção a qualificadoras de homicídio, que não podem simplesmente ser alegadas, mas devem ser justificadas de modo fundamentado pela autoridade policial, sob pena de se entender que o auto de prisão em flagrante deve ser “decotado” ou homologado apenas de modo parcial, já que com reenquadramento preliminar da situação criminosa que se tem como prática sob hipótese legitimadora de custódia flagrancial.
Não é possível desconsiderar a compreensão de enquadramento do fato típico pressupõe juízo de tipicidade abrangente de nexo de causalidade e resultado, isso tudo associado às situações espaciais e temporais previstas no artigo 302 do Código de Processo penal e seus incisos. Não se olvide que, diferente de uma simples apresentação para que o preso seja recolhido, o auto de prisão em flagrante pressupõe não só a identificação e qualificação do preso, mas oitiva de condutor, de testemunhas e, derradeiramente, o interrogatório do próprio investigado, todos esses atos iniciais e cruciais para o bom andamento da persecução penal e a prática dos atos que serão subsequentes.
A “fundada suspeita sobre o conduzido” (artigo 304 do CPP) capaz de determinar que se mande a recolher a prisão alguém pela prática de crime, mais do que mera afirmação, precisa estar fundamentada de modo juridicamente consistente, alcançando todos os requisitos formais e materiais que compõem a regra do jogo do instituto complexo da prisão em flagrante, não fosse assim não seria necessária a lavratura de um “auto”. A fundamentação do enquadramento jurídico-penal dado também se mostra necessária, inclusive, para explicitação dos “motivos” da prisão, requisito inerente à elaboração da “nota de culpa” como garantia do acusado. Tal como evoluiu-se o regramento legal para constar a explícita necessidade do juiz relaxar o flagrante ou homologá-lo convertendo em prisão preventiva ou concedendo liberdade provisória, superando-se entendimentos do passado que entendiam que apenas a desconstituição deveria ser fundamentada, não a homologação (justificativa para o fato de muitos juízes anotarem um simples e vergonhoso “ciente do flagrante; aguarda-se a remessa do inquérito policial”, evidente que a exigência de motivação de ato administrativo que restringe direito fundamental de liberdade de locomoção deve ser imposta à autoridade policial.
Desde a Constituição de 1988 que que a prisão imposta ilegalmente, nos termos do artigo 5º, LXV, da Constituição deve ser objeto de “relaxamento imediato”, mas preocupação com o cumprimento efetivo deste comando infelizmente nunca foi prioridade na prática ministerial e judiciaria, não raras vezes optando-se por excessiva flexibilidade e contornos hermenêuticos para “salvar” o injustificável, atitude que somente contribui para estimular a falta de aprimoramento e zelo no exercício da atividade policial. Mesmo após o advento das Leis 11.113/05, Lei 11.449/07 e Lei 12.403/11, que fizeram aprimoramentos legislativos no tocante ao tema em questão, diversos outros problemas cumulados ou alternados ao ponto já demonstrado persistem.
Não raras vezes, além da “comunicação imediata” do juiz competente e do Ministério Público, que pode ser feita tanto de modo presencial como por meio eletrônico em prestígio ao princípio da eficiência, ainda mais em tempos de processo digital, percebe-se a violação do devido processo legal substancial inerente ao flagrante, que também exige a comunicação da “família do preso” ou de “pessoa por ele indicada”, que pode ser evidentemente o advogado, tal como previsto pelo artigo 306 do CPP. Do mesmo modo não é possível que se admita a falta de comunicado da Defensoria Pública ou adoção de medida equivalente.
Embora não haja previsão legal específica, é lógico entender-se que o fato de a autoridade policial possuir, pelo menos em tese ou como exige a lei, contato pessoal e direto com o acusado (isso, claro, se estiver efetivamente presidindo o ato e não praticando delito de falsidade ideológica), pressupõe que esta, em visualizando base fático-empírica capaz de justificar a conversão da prisão em flagrante em prisão cautelar (preventiva ou temporária, embora a lei textualmente apenas trate da primeira espécie no artigo 310, inciso II, do CPP), seja a primeira a apresentar seu entendimento e argumentos para os membros do Ministério Público e Poder Judiciário que atuarão no caso.
Se a prática do “jogo” da prisão em flagrante ainda admite que se conviva com ilegalidades, com omissão de dever e ato de ofício da autoridade policial que também implica em possível prevaricação, isso se deve a fenômeno atribuíveis a múltiplas causas. Primeiro, muito se deve ao controle leniente e falho do Ministério Público como instituição no exercício da sua atribuição constitucional de controle externo da atividade policial (artigo 129, VII); segundo, na falta de atenção e zelo de alguns membros do Poder Judiciário com a fiscalização das garantias do investigado, notadamente a partir da previsão do artigo 310, I, do CPP; terceiro, na falta de consciência ou mesmo ímpeto de alguns no exercício da advocacia como atividade essencial à justiça, já que, embora ainda não seja obrigatório (neste sentido são os precedentes dos Tribunais Superiores, por exemplo, HC 155.665/TO como precedente do Superior Tribunal de Justiça), como acertadamente se prevê no Anteprojeto de alteração do Código de Processo Penal em curso no Congresso Nacional, mesmo quando o ato realizado na Delegacia é acompanhado de advogado não é incomum que este negligencie a cobrança e fiscalização para que o ato se desenvolva dentro do “campo” do devido processo legal.
Admitir que aspectos de estrutura humana e material possam justificar o descumprimento dos requisitos da prisão em flagrante é enfraquecer o Estado Democrático de Direito e fazer com que a prática equivocada sobreponha-se a exigências legalmente exigíveis, sendo postura equivalente a se admitir que tanto membro do Ministério Público quanto do Judiciário também possam delegar atos intelectuais e decisórios que são próprios e intransferíveis dessas autoridades.
Importante considerar que, ao contrário do que pode se pensar, independente da concessão ou não de liberdade, a validade ou não do flagrante, como elemento probatório irrepetível, pode e deve ser discutida, se preciso, mediante ajuizamento de ação constitucional de liberdade (Habeas Corpus), não havendo que se falar em falta de “interesse de agir” ou “superação de vício por superveniência de prisão sob outro título” (ex: STJ – HC n. 276909/SP, DJe 30/10/2013), mesmo quando tiver havido a soltura do acusado pela concessão de liberdade provisória. Mais do que prisão e liberdade provisória como ocorrências processuais, o auto de prisão em flagrante, como pode ser constatado no relatório de qualquer ação penal, constitui relevante e por vezes decisivo meio de prova. Há, portanto, consequência processual relevantíssima de caráter probatório consistente na validação ou na invalidação do flagrante. Ora, flagrante que pode ser denominado como tal é somente aquele válido e chancelado pela autoridade judicial após prévia manifestação do Ministério Público e apreciação fundamentada da presença dos requisitos constitucionais e legais.
A despeito da importância da temática do controle ministerial e jurisdicional da legalidade formal e material das regras do jogo envolvendo o instituto da prisão em flagrante, escassa é a doutrina que cuida especificamente do tema. Normalmente os manuais ou estudos que tratam de todos os temas do processo penal não são minuciosos e criteriosos, ou seja, não emprestam a profundidade e reflexão crítica suficiente, no trato do tema. A busca por precedentes jurisprudenciais alinhados com o rigor aqui proposto no exame da validade ou não do flagrante, que pode se dar de modo completo ou parcial, também é exercício difícil, o que somente exorta a necessidade de maior reflexão crítica sobre o tema, tanto no plano dogmático, quanto no que tocante à constante necessidade de revisão e aprimoramento normativo.
Tanto a matéria é esquecida que não raras vezes confunde-se a possibilidade justificada de não-lavratura de prisão da autoridade policial com a postura de relaxamento total ou parcial do flagrante de parte do juiz, não sendo difícil de se encontrar situações em que magistrados cometem o equivoco crasso de confundir relaxamento do flagrante (medida pautada na ilegalidade da custódia) com concessão de liberdade provisória, medidas que apesar de terem o mesmo efeito prático possuem distintos significados jurídicos.
Ao contrário do que se pensa, nas “regras do jogo” de um Estado Democrático de Direito ocupado na restrição e limitação dos abusos estatais, o flagrante “não prende por si só”, mas somente pode prender validamente se houver controle e homologação fundamentado do ato pela autoridade judicial. Não se trata de questão pessoal, mas de de acordar e não se deixar levar para o “sempre foi assim”. Despertar esta consciência e entender que o comunicado da prisão em flagrante ao Ministério Público e Poder Judiciário somente tem sentido se sucedido de exame da facticidade do caso concreto de acordo com o cumprimento dos requisitos formais e materiais de ordem constitucional e legal é o objetivo a que se propôs o presente estudo, firme na compreensão de que a constrição da liberdade, especialmente na modalidade de uma prisão inicialmente administrativa que posteriormente torna-se validada pelo Juízo, precisa ser alvo de efetivo controle jurisdicional.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Márcio Soares Berclaz é promotor de Justiça no Ministério Público do Paraná
Revista Consultor Jurídico
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