“A apropriação da renda básica como uma bandeira de luta pelos movimentos sociais daria a ela um grande impulso, tornando sua implementação mais factível”, assinala o sociólogo.
“Precisamos de uma noção de igualdade básica que nos permita ‘viver juntos’, ou nas palavras de Alain Caillé, ‘se opor sem se massacrar’”. É a partir dessa definição queJosué Pereira da Silva, autor do livro “Por que renda básica?”, propõe a instituição estatal de uma renda mínima àpopulação , a qual tem por princípio diminuir os efeitos de “um mundo marcado por profundas desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas”. Para ele, “a instituição da renda básica seria um passo importante para garantir a todos ‘o direito a ter direitos’, ou seja, autonomia e dignidade humana”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o sociólogo enfatiza que a destinação de uma renda básica à população é não só uma “forma de garantir o direito que todos temos de partilhar a riqueza socialmente produzida”, mas uma possibilidade de as pessoas lutarem “contra outras formas de desigualdade em situação mais confortável do que sem dispor de tal renda”. Sem o objetivo de resolver todas as desigualdades sociais que permeiam a sociedade, a proposta tem a pretensão de “eliminar ou pelo menos reduzir os estigmas a que as pessoas beneficiárias das políticas de transferência de renda condicionadas estão sujeitas”. Silva acentua que “por ser universal, incondicional e permanente, a renda básica, como um direito de cidadania, garantiria às pessoas a dignidade e a autonomia que as políticas focadas, condicionais e provisórias não são capazes de garantir”, por estarem condicionadas ao jogo político.
No emaranhado de disputa em relação ao que vem a ser e quais são as propostas da esquerda hoje, não só noBrasil, mas no mundo, o pesquisador frisa que “podemos nos contentar com uma noção menos ambiciosa”, se compararmos ao que se definia por esquerda no século XIX, “e dizer que são preocupações de esquerda a superação de todas as formas de opressão e exploração”. Nestes termos, conclui, “a renda básica pode ser vista como uma proposta de esquerda, embora ela não seja a única”.
Desde 2005, a Lei nº 10.835 garante o direito de todos os brasileiros receberem, anualmente, o benefício monetário. Contudo, a legislação não foi implementada na prática.
Josué Pereira da Silva é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Sociologia pela New School For Social Research, nos EUA. De sua produção bibliográfica, destacamos André Gorz. Trabalho e política (São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002); André Gorz e seus críticos (São Paulo: Annablume, 2006); e Por uma sociologia do século XX (São Paulo: Annablume, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - André Gorz[1], ao defender uma proposta de renda de cidadania, o fez em dois períodos diferentes: nos anos 80, onde propunha uma renda básica para assegurar a redução da jornada de trabalho e possibilitar mais emprego e, nos anos 90, ao propor uma quebra do vínculo entre trabalho e renda. Hoje, na atual condição em que o mundo se encontra, que circunstâncias justificam uma renda básica?
Josué Pereira da Silva - Há várias razões que justificam a renda básica. Uma delas é garantir a todo cidadão e toda cidadã recursos que lhes permitam desfrutar da igualdade básica, suposta pela própria noção de cidadania. Em um mundo marcado por profundas desigualdades sociais, econômicas, culturais e políticas, que se alimentam mutuamente, a instituição da renda básica seria um passo importante para garantir a todos “o direito a ter direitos”, ou seja, autonomia e dignidade humana. Além disso, ela também é uma forma de garantir o direito que todos temos de partilhar a riqueza socialmente produzida. Isto vale para o momento atual, como valia para os períodos referidos na pergunta acima.
"A renda básica deve interessar, sobretudo, aos movimentos sociais" |
IHU On-Line - Que conceito e entendimento de igualdade fundamenta a sua proposta de uma renda básica?
Josué Pereira da Silva - Creio que já toquei no assunto na resposta à questão anterior, mas vale dizer mais algumas palavras. As principais teorias contemporâneas de justiça, a despeito das muitas diferenças entre elas, são quase todas de alguma forma permeadas pela noção de igualdade, mesmo que o foco aparente não seja a igualdade. Não dá para entender, por exemplo, a noção de “liberdade real para todos”, de Philippe Van Parijs, sem considerar que ela contém implicitamente uma ideia de igualdade básica, a qual também pode ser traduzida pela expressão “a cada um segundo suas necessidades”. Da mesma forma, também não seria possível entender o que Axel Honneth denomina “direitos da liberdade”, cujo fundamento é uma ideia de reconhecimento mútuo que supõe a igual dignidade de todo ser humano, cuja violação tem consequências negativas para a integridade da pessoa. Enfim, pode-se ainda acrescentar que, num mundo caracterizado por tantas diferenças culturais e políticas, precisamos de uma noção de igualdade básica que nos permita “viver juntos” ou, nas palavras de Alain Caillé, “se opor sem se massacrar”. Todas essas formulações assentam-se numa noção de igualdade para cuja realização a renda básica tem muito a contribuir.
IHU On-Line - Conforme aponta no seu novo livro “Por que renda básica?”, o objetivo da renda básica é garantir à população uma igualdade básica. Como a renda básica pode ser um instrumento para resolver as desigualdades sociais e até mesmo a desigualdade econômica, tendo em vista que cada indivíduo receberá uma quantidade em dinheiro? Qual é o salto que acontece entre ele receber a renda básica e isso implicar em que a desigualdade seja superada?
Josué Pereira da Silva - Não creio que a renda básica irá sozinha resolver as desigualdades, sejam as econômicas ou as demais. Mas creio que ela contribuirá muito para eliminar ou pelo menos reduzir os estigmas a que as pessoas beneficiárias das políticas de transferência de renda condicionadas estão sujeitas. Por ser universal, incondicional e permanente, a renda básica, como um direito de cidadania, garantiria às pessoas a dignidade e a autonomia que as políticas focadas, condicionais e provisórias não são capazes de garantir. Estas últimas, como sabemos, dependem dos humores da disputa política e, portanto, de quem estiver no governo em dado momento. Por isso, a renda básica deve ser uma política de Estado, para além de qualquer grupo ou partido que estiver no governo. Talvez aí esteja a dificuldade em se fazer, no Brasil, com que uma lei já aprovada e sancionada há dez anos seja colocada em prática. Pela mesma razão é que a renda básica deve interessar, sobretudo, aos movimentos sociais. Porque, da mesma forma que a renda básica pode servir como uma bandeira comum aos movimentos sociais, a apropriação da renda básica como uma bandeira de luta pelos movimentos sociais daria a ela um grande impulso, tornando sua implementação mais factível.
"Não há uma única proposta capaz de eliminar as desigualdades" |
IHU On-Line - Resolvendo a questão da renda a partir de uma renda básica, como é possível sanar as demais desigualdades?
Josué Pereira da Silva - O que dá para se dizer aqui é que, ao se partir de um patamar no qual todas as pessoas disponham de uma renda básica, deve ficar mais fácil colocar em questão outras formas de desigualdade; ou seja, dispondo de autonomia financeira, as pessoas podem lutar contra outras formas de desigualdade em situação mais confortável do que sem dispor de tal renda. Isto não quer dizer que se deva estabelecer hierarquia temporal ou de qualquer outro tipo na luta contra as desigualdades, mas sim de deixar claro que a renda básica não conflita com as demandas de qualquer outro movimento social progressista; na verdade, ela ajuda a união de vários movimentos em torno de uma demanda comum que unifica, sem prejudicar as demandas específicas de cada um dos movimentos envolvidos. Nisto, a renda básica pode ajudar a eliminar as outras formas de desigualdades.
IHU On-Line - Na proposta de renda básica, quem deve fornecer essa renda à população? Os Estados têm condições de oferecê-la diante das constantes dívidas públicas e na atual situação econômica em que se encontram?
Josué Pereira da Silva - Por certo é o Estado, quando se tratar de instituir a renda básica em determinado país, porque ele é o gestor da renda e da riqueza nacionais. Mas é preciso deixar claro que o Estado não é proprietário, mas apenas a instituição que deve administrar a implementação e gestão da renda básica, como o faz com outros direitos de cidadania. No que se refere a se o Estado tem “condições de oferecê-la”, creio que este problema está relacionado, primeiro, com as prioridades que determinado governo dá ou não ao bem-estar dos cidadãos e cidadãs do país; segundo, é sempre possível administrar a relativa escassez de recursos com a vontade política de implementar uma política de renda básica no curto, médio e longo prazos. Se há, de fato, a intenção de instituir a renda básica, pode-se pensar numa estratégia adequada às condições, mas com o claro objetivo, de médio prazo, de torná-la universal, incondicional e permanente. Afinal, e isto é importante, trata-se de distribuir a toda população uma parte da riqueza coletivamente produzida; o que poderia perfeitamente começar a partir de uma porcentagem, razoavelmente pensada, do PIB (Produto Interno Bruto). Se, conforme dados de 2013, o Programa Bolsa Família (BF)atinge cerca de um quarto da população com 0,5% (meio por cento) do PIB, com 2% (dois por cento) daria para universalizá-lo, estendendo os benefícios a toda população. Isto reduziria fortemente os custos de gestão do programa, liberando mais recursos para sua universalização. É de se imaginar então o que seria possível fazer, num horizonte de médio prazo, como, por exemplo, 5% (cinco por cento) do PIB!
"A renda básica não conflita com as demandas de qualquer outro movimento social progressista" |
IHU On-Line - Depois de garantida a renda básica, que outras medidas seriam necessárias? Hoje, entre as críticas feitas ao Programa Bolsa Família, está a de que o Programa, que parecia ter uma proposta progressista de distribuição de renda, ao destinar apenas um percentual baixo da renda a algumas famílias, não resolveu nem o problema da distribuição de renda nem o da desigualdade econômica. Como o senhor avalia essa crítica? Há risco de uma proposta de renda básica receber os mesmos apontamentos?
Josué Pereira da Silva - As críticas ao BF têm motivações diversas, e são, no jargão tradicional, tanto de esquerda quanto de direita. Algumas das críticas são procedentes, outras nem tanto. As críticas de esquerda de que se trata de uma política compensatória e que pouco contribui para a emancipação cidadã é em parte verdadeira, mas sua compreensão desse tipo de política é muito limitada, pois em geral só veem alternativa naquilo que se convencionou denominar “porta de saída”, isto é, o mercado de trabalho. Ou seja, procura-se o futuro no passado. As críticas tidas como de direita são bem conhecidas e em geral apoiam-se na crença de que é o mercado que deve resolver o problema da distribuição de riqueza. No mais das vezes esse tipo de crítica traduz o preconceito segundo o qual não se deve dar dinheiro aos que mais necessitam dele, sob a alegação de que desestimularia o esforço; ora, seja de procedência religiosa ou secular, há nisto um implícito desejo de controle sobre aqueles que, supõe-se, não sabem o que é bom para eles próprios. O pior de tudo isto é o pacto perverso, embora involuntário, que resulta da junção desses dois tipos de crítica, já que as duas contribuem para dificultar a universalização de políticas como a do BF, ainda que por motivos distintos. Por outro lado, não dá para saber se esse tipo de crítica continuaria após a implementação de um programa de renda básica, mas podemos apostar na possibilidade de a renda básica desempenhar também um papel pedagógico , esclarecendo, e quiçá até convencendo, muitos dos críticos atuais.
IHU On-Line - Qual é a relação entre a renda e a riqueza produzidas e a distribuição no Brasil? O grande problema em relação à renda e às desigualdades é a concentração de renda? Que políticas seriam fundamentais para resolver essa questão?
Josué Pereira da Silva - Que há concentração e má distribuição de renda e de riqueza no Brasil, é sabido; sabe-se também que as desigualdades, sobretudo no Brasil, não são apenas de renda. Pode-se, então, deduzir daí que uma política de renda básica não resolveria todos esses problemas; aliás, a proposta de renda básica não tem tal ambição. Mas creio que seria um bom início para se começar a resolvê-los.
IHU On-Line - Thomas Piketty propõe, como solução das desigualdades, a tributação de grandes fortunas. Essa lhe parece uma proposta adequada?
Josué Pereira da Silva - Não há uma única proposta capaz de eliminar as desigualdades, mesmo porque há desigualdades de vários tipos. Mesmo no caso das desigualdades econômicas extremas, não sei se a tributação de grandes fortunas seria por si só a solução; mas creio que ajudaria muito, liberando mais recursos para tal. Por isso, acho-a uma medida adequada, embora não suficiente.
IHU On-Line - Quais são as propostas das esquerdas em relação ao enfrentamento das desigualdades e o que o atual cenário aponta quanto às propostas implementadas pelas esquerdas e pela social democracia?
Josué Pereira da Silva - Esta é uma questão difícil de responder, por várias razões. Uma delas diz respeito ao próprio entendimento do que significa esquerda diante da miríade de movimentos sociais com pautas específicas de reivindicações. Em tais circunstâncias, não dá para dizer que a noção clássica de esquerda associada com omovimento socialista dos séculos XIX e XX seja hegemônica entre muitos movimentos, com suas variadas demandas. Ainda assim não dá para se abrir mão da distinção entre esquerda e direita, mesmo porque os problemas que fizeram emergir tal distinção continuam existindo. Dessa forma, podemos nos contentar com uma noção menos ambiciosa e dizer que são preocupações de esquerda a superação de todas as formas de opressão e exploração. Nestes termos, a renda básica pode ser vista como uma proposta de esquerda, embora ela não seja a única.
(Por Patricia Fachin)
NOTA
[1] André Gorz (1923-2007): filósofo austríaco. Escreveu inúmeros livros, vários deles traduzidos para o português, entre eles Adeus ao proletariado (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982), Metamorfoses do trabalho. Crítica da razão econômica (São Paulo: Annablume, 2003) e Misérias do Presente, Riqueza do Possível (São Paulo: Annablume, 2004). Realizamos uma entrevista com André Gorz, publicada parcialmente na 129ª edição da revista IHU On-Line, de 02-01-2005, e na íntegra no número 31 dos Cadernos IHU Idéias, com o título A crise e o êxodo da sociedade salarial, disponível para download em http://migre.me/BizH. Sobre André Gorz também pode ser lido o texto Pelo êxodo da sociedade salarial. A evolução do conceito de trabalho em André Gorz, de autoria de André Langer, pesquisador do Cepat. O texto está publicado nos Cadernos IHU n.º 5, de 2004, disponível para download emhttp://migre.me/BiAI. O site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU deu ampla repercussão à morte de Gorz. Para acessar o material, acesse as Notícias do Dia 26-09-2007. (Nota da IHU On-Line)
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