De todas as antigas potências coloniais, Portugal continua a ser um dos países colonialistas onde o debate sobre o racismo é ainda dos menos clarificadores, porque está instalado numa quimera histórica em que o luso-tropicalismo, também construído na base de um embuste histórico, segundo o qual o colonialismo português teria sido, em comparação com as restantes violações coloniais, o mais generoso e menos violento. Esta premissa assente numa falácia histórica, minada por um misto de hipocrisia e cinismo políticos, vai ganhando sedimentação ideológica e dificultando um debate sério e frontal sobre o racismo. Em Portugal, o racismo e a sua negação são estruturais no confronto ideológico sobre o lugar da diferença numa sociedade potencial e estruturalmente racista, porque estrutural e historicamente coloniais.
Por Mamadou Ba, do Buala
Na presente edição da agenda 2015 do SOS pretende discutir a diversidade e pluralidade de eixos temáticos, não apenas para analisar a cultura do racismo, mas também e sobretudo, como o racismo cultural se socorre de outros instrumentos teóricos e políticos para ganhar legitimidade social e política.
Da convicção que o racismo não é nem fatalidade nem característica natural imutável contra a qual nada se pode fazer, parte o nosso compromisso de o combater em todas as suas formas de expressão.
Sabemos que o racismo é o resultado social, cultural e político do eurocentrismo que construiu a necessidade de marcar, distinguir e afastar grupos étnicos racializados da comunidade humana, na base da sua cor de pele e/ou cultura. A alavanca principal desta empresa de desumanização dos grupos étnicos racializados assentou no poder de construir os mitos que justificaram sempre o racismo. Portanto, longe de constituir um mero repositório de preconceitos inconscientes e inofensivos, como muitas vezes se procura fazer crer, a análise da situação política, com o fortalecimento dos fascismos e a ascensão da extrema-direita um pouco em toda parte na Europa, não deixa de mostrar que o racismo permanece uma conjugação das práticas políticas institucionais contemporâneas com a ideologia esclavagista, imperial e colonial. O racismo ciganófobo e negrófobo bem como a islamofobia declarada ou difusa são uma instituição que resulta da tradição filosófica e política que sempre considerou, e ainda considera, os negros, os ciganos e todos os outros povos “não europeus” como inferiores.
Ao longo destes séculos, em Portugal e por todo o ocidente, o racismo ideológico consolidou-se e aprofundou-se no racismo institucional que legitimou e ainda legitima o racismo sociológico, ou melhor, o racismo cultural. Antes, durante e depois das violações esclavagistas e coloniais, o racismo manteve sempre um traço característico idêntico, a negação da humanidade a uma substancial parte da humanidade. E durante muito tempo, a fronteira entre cultura e política na construção do racismo institucional foi muito ténue. Ora era a cultura que justificava a política, ora era o contrário. A organização política e catalogação cultural sustentaram sempre o racismo de Estado, eufemisticamente chamado racismo institucional. Por exemplo, podia ler-se em 1926, no Estatuto do Indigenato: Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não submetemos a sua vida individual, doméstica e pública, […] às nossas leis políticas, aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais e penais, à nossa organização judiciária.Três anos depois, em 1929, o segundo artigo deste estatuto revisto dizia taxativamente: os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nas colónias, não possuíssem ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses.
O substrato cultural da ciganofobia actual é igualmente tão velho que, num decreto real de 1649 sobre os ciganos, podia ler-se: Eu El Rey ….. por se ter entendido o grande prejuízo e inquietação que se padece no Reino com huma gente vagamunda que cõ o nome de siganos andam em quadrilhas vivendo de roubos enganos e imbustes contra o serviço de Deus e meu. Demais das ordenações do Reino, por muitas leis e provisões se precurou extinguir este nome e modo de gente vadia de siganos com prizoens e penas de asoutes, degredos e galés, sem acabar de conseguir; e ultimamente querendo Eu desterrar de todo o modo de vida e memoria desta gente vadia, sem asento, nem foro nem Parochia, sem vivenda propria, nem officio mais que os latrocinios de que vivem, mandey que em todo Reino fossem prezos e trazidos a esta cidade [Lisboa], onde serão embarcados e levados para servirem nas comquistas divididos…
Os ciganos eram punidos com açoites e degredados por dez anos para as colónias por apenas serem ciganos, como atesta um decreto real do século dezoito que rezava: Hei por bem, e mando que não haja neste Reino pessoa alguma de um, ou de outro sexo, que use de traje, língua, ou giringonça de ciganos, nem de impostura das suas chamadas buenas dichas; e outrosim, que os chamados Ciganos, ou pessoas que como tais se tratarem, não morem juntos mais, que até duas casas em cada rua, nem andarão 37 juntos pelas estradas, nem pousarão juntos, por elas, ou pelos campos, nem tratarão em vendas, e compras, ou troca de bestas, senão que no traje, língua e modo de viver usem do costume da outra gente das Terras; e o que contrário fizer, por este mesmo fato, ainda que outro delito não tenha, incorrerá na pena de açoites, e será degredado por tempo de dez anos; o qual degredo para os homens será de galés, e para as mulheres, para o Brasil.
O fortalecimento da extrema-direita na Europa em geral e todos os episódios racistas dos últimos tempos em Portugal, o mais recente dos quais, a actuaçao racista da PSP no centro comercial Vasco de Gama contra jovens negros, leva objetivamente a que, infelizmente, ainda não se possa falar do racismo no passado. Porque o racismo, não só não passou, como continua bem presente. E porque infelizmente, por detrás de cada ato administrativo, de cada iniciativa legislativa e de cada decisão política sobre as minorias étnicas, está “o racismo como albergue selvagem do humanismo europeu, a sua besta” e está coberto com “o sombrio véu da cor” da pele ou da diferença cultural.
O iluminismo e o universalismo são-nos geralmente apresentados como sendo momentos históricos, políticos e culturais de catarse com pretensão de elevar a exigência de um humanismo radical e intransigente contra a barbárie e o atraso civilizacional. Nada mais falso! De todos os clássicos destes períodos, ou seja, de Kant a Hume, Hegel, Tocqueville, Montesquieu, Comte, Durkheim e tantos outros em cujo pensamento assentam hoje os modelos políticos, nenhum deles escapa ao mais ordinário dos racismos. Todos eles acreditavam na superiodade civilizacional e cultural dos europeus. “Suspeito que os Negros e, em geral, as outras espécies humanas de serem inferiores à raça branca. Não houve nunca nenhuma outra nação civilizada que a de cor branca….” dia Hume.
E Kant por sua vez, nas Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (1764), dizia: “Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas.”
Em setembro de 1956, no Primeiro Congresso dos Escritores e Artistas Negros em Paris,
Frantz Fanon abria assim a sua intervenção precisamente intitulada, “Racismo e Cultura”: “A reflexão sobre o valor normativo de certas culturas, decretado unilateralmente, merece que lhe prestemos atenção. Um dos paradoxos que mais rapidamente encontramos é o efeito de ricochete de definições egocentristas, sociocentristas. Em primeiro lugar, afirma-se a existência de grupos humanos sem cultura; depois, a existência de culturas hierarquizadas; por fim, a noção da relatividade cultural. Da negação global passa-se ao reconhecimento singular e específico. É precisamente esta história esquartejada e sangrenta que nos falta esboçar ao nível da antropologia cultural. Podemos dizer que existem certas constelações de instituições, vividas por homens determinados, no quadro de áreas geográficas precisas, que num dado momento sofreram o assalto direto e brutal de esquemas culturais diferentes. O desenvolvimento técnico, geralmente elevado, do grupo social assim aparecido, autoriza-o a instalar uma dominação organizada. A doutrina da hierarquia cultural não é, pois, mais do que uma modalidade da hierarquização sistematizada, prosseguida de maneira implacável. Estudar as relações entre o racismo e a cultura é levantar a questão da sua ação recíproca. Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com racismo e culturas sem racismo.”
O racismo biológico para justificar a violência esclavagista e colonialista nasceu nas “luzes” do iluminismo e do universalismo. Isso mesmo comprovavam as tiradas filosóficas de Hegel, entre muitas outras inanidades, ao dizer: “a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência […] O negro representa, como já foi dito o homem natural, selvagem e indomável. Devemo-nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano[…] A carência de valor dos homens chega a ser inacreditável. A tirania não é considerada uma injustiça, e comer carne humana é considerado algo comum e permitido […] Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato, inexistentes.”
Augusto Comte, num dos seus clássicos trabalhos intelectuais, Curso de Filosofia Positiva, chegou a perguntar: “Por que a raça branca possui, de modo tão pronunciado, o privilégio efetivo do principal desenvolvimento social e porque a Europa tem sido o lugar essencial dessa civilização preponderante?” O próprio Comte responde sem pestanejar: “Sem dúvida já se percebe, quanto ao primeiro aspecto, na organização característica da raça branca, e sobretudo quanto ao aparelho cerebral, alguns germes positivos de sua superioridade”
O racismo é também uma evidencia em Tocqueville que na sua obra, “A democracia na América”, se lança numa caracterização racista da América . Analisando “o futuro provável das três raças que habitam o território dos Estados Unidos”, ele disse: “o primeiro que atrai os olhares, o primeiro em saber, em força, em felicidade, é o homem branco, o europeu, o homem por excelência; abaixo dele surgem o negro e o índio. Essas duas raças infelizes não têm em comum nem o nascimento, nem a fisionomia, nem a língua, nem os costumes. Ocupam ambas uma posição igualmente inferior no país onde vivem…” E mais adiante continua dizendo “O escravo moderno não difere do senhor apenas pela liberdade. Mas ainda pela origem. Pode-se tornar livre o negro, mas não seria possível fazer com que não ficasse em posição de estrangeiro perante o europeu. E isso ainda não é tudo: naquele homem que nasceu na degradação, naquele estrangeiro introduzido entre nós pela servidão, apenas reconhecemos os traços gerais da condição humana. O seu rosto parece-nos horrível, a sua inteligência parece-nos limitada, os seus gostos são vis, pouco nos falta para que o tomemos por um ser intermediário entre o animal e o homem”.
De facto, à luz destes pequenos excertos de alguns dos mais importantes pensadores europeus, e por necessidade de uma economia de espaço, percebemos a ligação intrínseca entre a política do racismo de Estado, mais conhecido por racismo institucional e a cultura de racismo na sociedade europeia. Há um cordão umbilical que liga o racismo contemporâneo à cultura europeia. Desse facto, queixou-se Edward Said quando disse: “os filósofos podem conduzir suas discussões sobre Locke, Hume e o empirismo sem nunca levar em consideração o fato de que há uma conexão explícita, nesses escritores clássicos, entre as suas doutrinas “filosóficas” e a teoria racial, as justificações da escravidão e a defesa da exploração colonial”. E Said de acrescentar na mesma ordem de ideias que “muitos humanistas de profissão são, em virtude disso, incapazes de estabelecer a conexão entre, por um lado, a longa e sórdida crueldade de práticas como a escravidão, a opressão racial e colonialista, o domínio imperial e, por outro, a poesia, a ficção e a filosofia da sociedade que adota tais práticas”. O que consequentemente levou a que humanidade fosse dividida na base de “uma hierarquia de raças que desumanizou“ outros povos e suas culturas.
Em meados da década 50 do século passado, muitos antes de Edward Said e com a clareza e a frontalidade que lhe eram característicos, Fanon já havia dito: “a realidade é que um país colonial é um país racista. Se na Inglaterra, na Bélgica ou em França, apesar dos princípios democráticos afirmados respectivamente por estas nações, ainda há racistas, são esses racistas que, contra o conjunto do país, têm razão.” Ou seja, apesar do circunstancial cinismo e da hipocrisia das convenções emanada da retórica da democracia, subsiste o racismo, porque ele é constituinte da matriz ideológica do regime vigente.
Portanto, revela-se evidente que as as discriminações são construções políticas que operam como mecanismos de controlo social, por via da diminuição, da estigmatização e da homogeneização normalizadora e castradora do direito à diferença.
Contra grupos étnicos “não europeus”, com uma agenda homogeneizadora hegemónica e contra a diferença, assistimos a uma diabolização dos valores culturais, das formas e modelos de vida, como linguagem, o vestuário, as técnicas e formas de relação com o mundo. As culturas “não europeias” são desvalorizados e ameaçadas de destruição e, muitas vezes, destruidas mesmo. E outra vez Fanon dizia justamente a este respeito: “A acusação de inércia que constantemente se faz ao “indígena” é o cúmulo da má-fé. Como se fosse possível que um homem evoluísse de modo diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir”. O facto é que toda a retórica acusatória de inadequação cultural manifesta numa suposta “recusa” e/ou “incapacidade de integração social” das comunidades de origem estrangeira, resulta de uma estratégia de ostracização da diferença. A frequente acusação de falta de urbanidade e de civilidade contra as minorias étnicas, nomeadamente, contra as comunidades ciganas, contra os imigrantes e seus descendentes de cultura africana, asiática, e/ou de religião muçulmana, é o albergue da estigmatização essencialista cultural.
Da biologização à essencialização, o racismo foi-se adaptando aos tempos e às suas narrativas, socorrendo-se de múltiplos instrumentos e campo de expressão. A situação de vulnerabilidade económica, social e política acaba por agudizar a exclusão cultural: é como se as comunidades vivessem numa “clandestinidade identitária”. A sua presença no espaço público é quase nula e, sempre ou quando ocorre, é claramente num registo subalterne. A este propósito e mais genericamente sobre a marginalização cultural e a luta pelo direito ao reconhecimento cultural, Stuart Hall dizia por exemplo, ao falar do papel da música na afirmação das comunidades que a música é símbolo do “som do que não pode ser” – the sound of what cannot be.
A verdade é que a retórica da diversidade do ponto de vista político, não só não corresponde à realidade, como esconde uma outra coisa: a maior parte dos países europeus mantém uma relação colonial e racista com as suas comunidades imigrantes e de origem “estrangeira”.
Por exemplo quando, de forma arrogante e impositiva, os países europeus insistem que os imigrantes têm de aprender as línguas dos países de acolhimento, o que sugerem é que são aquelas as únicas que lhes permitem não só apreender os códigos sociais e políticos dos seus novos contextos e habitas, mas sobretudo, que as suas línguas nativas não permitem nem conseguem construir tais linguagens. O que é falso porque, não só estas línguas podem (e têm-no feito) criar estes códigos, como demonstram poder reapropriar-se deles e os adequar aos seus valores culturais de origem. A prova desta capacidade de reapropriação e reciclagem cultural é a forma como as segundas gerações constroem um espaço de reivindicação política e cultural de uma pertença cosmopolita, através da música, da arte urbana e dos desportos alternativos. Aliás, não é por acaso que o incómodo que a cultura urbana e suburbana cria pela recusa da homogeneidade cultural hegemónica está patente nos sermões sobre urbanidade e civilidade e na retórica sobre identidade nacional. Pois, “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza.”
Na verdade, a crise de identidade de que tanto se fala na Europa quando se fala das comunidades de origem estrangeira e imigrantes, é tão só o medo da diferença e particularmente, o medo da possibilidade de condividir em igualdade de circunstância e dignidade a partilha do espaço. Efectivamente, a língua, as diversas formas de expressão cultural, a diversidade étnica e cultural são hoje espaços de narrativas racistas através de uma cultura de essencialização das diferenças. Estas dimensões têm–se materializado no discurso político como sendo emanações legítimas da vontade popular, ou seja, como correspondentes com a cultura e o desejo do povo.
Algumas reconfigurações políticas redundaram num consenso político tácito entre as forças tradicionalmente progressistas e as forças conservadoras propósito de uma agenda mínima sobre a diversidade cultural, a capitulação dos sectores progressistas face às retóricas normativas da “identidade nacional” e da pertença cultural com declinações e transmutação semânticas do racismo, e colocaram a cultura no epicentro de todas as fobias contra a diferença.
Quem pensou que a abolição da escravatura, o fim do colonialismo com as independências das ex-colónias e a derrota militar do nazismo teriam significado a derrota lato sensus do racismo, estava muito enganado. A verdade é que nem as derrotas militar e política do nazismo e do colonialismo,respectivamente, nem as suas “derrotas morais” significaram a derrota do racismo porque, ideologicamente, este manteve-se estruturalmente enraizado na cultura política.
O racismo cultural é estruturalmente uma espécie de regresso ao passado, tal como, quando o suposto “recuo” ou “atraso civilizacional” era a sua justificação. De novo, todos os campos de todos os saberes e modalidades de ser e estar no mundo passaram a ser mobilizáveis para legitimar a mutação do racismo biológico para o racismo cultural.
Os vários temas da agenda 2015 do SOS Racismo, para além da polissemia temática, ilustram a complexidade e a multiplicidade dos campos de afirmação do racismo cultural. Já tudo pode servir de pretexto para marcar, separar, afastar e discriminar desde a forma de vestir, de comer, até aos sabores e aos cheiros. A forma de ocupar o espaço, a disputa pela memória, os campos de apresentação e representação simbólica, real e/ou fictícia da diferença, a classe e o género, a produção cultural e artística, tudo isto está em jogo e é fortemente instrumentalizado para sustentar a cultura do racismo. Do cinema ao teatro, da história à literatura, da filosofia à antropologia, da sociologia às ciências políticas, da academia à política, o racismo é ainda a expressão de um passado que se mantém presente, de um passado que teima em não passar e de um futuro, não apenas adiado, mas também comprometido. Na questão do racismo, o cinema, a literatura, os media, a música, as artes plásticas e outros saberes não académicos têm uma importância estratégica. A cultura ocupa e ocupará, por muito tempo, uma centralidade sem precedentes na afirmação do racismo. Face a isto, a pergunta que se impõe entre muitas outras como é evidente, é: saber onde acaba a cultura e onde começa o racismo.
A verdade é que, através da pluralidade temática, esta agenda desafia-nos para um debate aprofundado sobre o racismo cultural e as suas muitas formas de expressão.
4/2/2015
Leia a matéria completa em: O racismo começa onde acaba a cultura? - Geledés
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