O ex-presidente responde pelos crimes de genocídio e de lesa-humanidade cometidos durante seu mandato (1982-83)
A história recente da Guatemala não deixa de gerar uma sensação de nó na garganta, devido ao limbo entre passado e futuro; entre a necessidade imperativa de seguir adiante e a lembrança de uma história de violência, repressão e violação sistemática de direitos humanos como política de Estado, que não pode, nem deve, ser esquecida.
Para o jurista Edgar Pérez, membro da Associação Justiça e Reconciliação e advogado das vítimas do grande conflito armado interno (1960-1996) que sofreram as atrocidades cometidas pelos governos ditatoriais e pelas juntas militares durante as décadas de 1970 e 1980, na Guatemala haverá uma verdadeira reconciliação “apenas e quando se julgarem os responsáveis por esses crimes”
Pérez disse em entrevista ao Opera Mundi que o julgamento contra o ex-presidente e general aposentado José Efraín Ríos Montt pelos crimes de genocídio e de lesa-humanidade cometidos durante seu mandato (1982-83) não apenas abre um precedente histórico, mas faz parte de uma estratégia muito mais ampla, iniciada depois da assinatura dos Acordos de Paz (1996). Estratégia que conquistou importantes resultados quanto ao combate à impunidade e à recuperação da memória histórica em um país que sofreu mais de 600 massacres, o assassinato e desaparecimento de mais de 200 mil pessoas e o desaparecimento forçado de um milhão de gualtemaltecos.
Opera Mundi - Em que ponto está o julgamento do ex-presidente José Efraín Ríos Montt?
Edgar Pérez - No último dia 26 de janeiro, foi emitido um indiciamento por genocídio e crimes contra a humanidade. Agora estamos na fase de investigação do processo penal e, no dia 27 de março, o Ministério Público deverá apresentar seu ato conclusivo, isto é, seu informe sobre essa fase de investigação.
São crimes que, além de estarem regulamentados no Código Penal da Guatemala, têm respaldo internacional porque remetem à Convenção de Genebra e, como consequência, à toda a jurisprudência internacional sobre o Direito Humanitário Internacional. No entanto, tem sido um processo muito complicado.
OM - O que ocorreu nestes dois meses?
EP - A defesa do general aposentado Ríos Montt empreendeu uma série de ações e já expôs várias exceções e incidentes para garantir a ele a impunidade. Apresentaram um recurso de inconstitucionalidade dizendo que ele deveria ser julgado por um tribunal militar e tentaram aplicar a anistia de 1986, que era apenas para os responsáveis ou autores de crimes políticos, ou crimes comuns associados aos políticos.
Até a Lei de Reconciliação Nacional – aprovada logo depois dos Acordos de Paz – foi muito explícita ao dizer que a anistia não poderia ser aplicada a casos de genocídio, desaparecimentos forçados e tortura, tampouco para crimes que sejam imprescritíveis em conformidade com as convenções e tratados internacionais em matéria de direitos humanos.
Finalmente, conseguimos que o tribunal indeferisse todas essas tentativas da defesa para que o sistema judicial rompesse com os compromissos internacionais do Estado guatemalteco em matéria de direitos humanos.
OM - Como fundamentaram a acusação de genocídio?
EP - Quando falamos de genocídio, não entendemos com isso apenas a ação de matar, mas também a ideia intrínseca de destruir algo em sua essência, e o bem jurídico que se protegem são os grupos humanos, entre eles, os grupos étnicos.
No chamado triângulo ou área Ixil – constituído pelos municípios de Nebaj, San Juan Cotzal y San Gaspar Chajul, departamento de Quiché –, consideramos que existe evidência suficiente para sustentar que, durante o mandato de Ríos Montt, houve a intenção de destruir de forma parcial o grupo étnico Ixil. Temos registrados um mínimo de 11 massacres, 1.771 mortes, o desaparecimento forçado de, pelo menos, 29 mil pessoas nas chamadas Comunidades de População em Resistência (MPR) em Santa Clara, uma remota comunidade na Serra de Chamá, ao norte de Quiché.
Essas comunidades foram cercadas e o exército impediu a entrada de comida e elementos básicos, como água e medicamentos. No final, as pessoas foram submetidas a condições que puderam acarretar a morte de outros membros do grupo. Mesmo assim, o exército concentrou uma grande quandidade de pessoas em condições de campo de concentração nas chamadas Aldeias Modelo, e obrigou os cidadãos a integrarem as Patrulhas de Autodefesa Civil.
Durante o mandato de Ríos Montt, uma parte da população Ixil foi deslocada até a montanha, outra foi reconcentrada nas Aldeias Modelo e o terceiro grupo foi massacrado. Isso demonstra que sim, houve intenção de destruir esse grupo étnico.
OM - No entanto, o atual presidente Otto Pérez Molina declarou recentemente que na Guatemala nunca houve genocídio
EP - Ele é um ex-militar e esteve na área Ixil com a Força Tarefa Gumarcaj, que foi uma das forças tarefas responsáveis pelos crimes cometidos contra a população civil. Ao emitir uma opinião desse tipo, o presidente está cometendo uma irresponsabilidade, porque compete ao órgão judicial, depois de um julgamento, dizer se houve ou não genocídio. Essa atitude do presidente Pérez Molina gera pressão e coação sobre o sistema judicial do país.
Há circunstâncias que poderíamos qualificar como de pressão, como por exemplo questionar e recusar os juízes, obstruir e estender o processo. Nós respeitamos essa estratégia, porque a lei outorga a possibilidade de recorrer a qualquer ação e resolução que aconteça dentro do processo. O que não podemos aceitar é quando autoridades nacionais, como o Presidente da República ou o titular da Secretaria da Paz (Sepaz), proferem declarações que de fato formam uma pressão sobre o órgão judicial.
OM - Há setores da sociedade guatemalteca que estão interessados em criar pressão em cima desse julgamento?
EP - Claro que sim, e são os que, de alguma maneira, tiveram responsabilidades nos crimes cometidos durante o conflito armado interno. Nesse julgamento, é preciso estar ciente de uma coisa: nós somos advogados daquela parte da população civil que não assumiu um papel de protagonista durante o conflito armado e que foi a que se viu como vítima. O presidente deveria estar trabalhando para que esses julgamentos garantam o devido processo, a independência judicial, que sejam justos e imparciais, e que impliquem a busca de verdade e justiça. Somente assim poderá haver reconciliação na Guatemala.
OM - O que esse julgamento simboliza para a Guatemala?
EP - Tudo isso vai mais além do julgamento de Ríos Montt e faz parte de um percurso ao lado das vítimas cujos sentimentos foram calados por décadas. Temos mais de 15 anos de trabalho e conseguimos resultados importantes quanto à possibilidade de julgar as estratégias das polícias militares daqueles anos.
Conseguimos duas sentenças pelo massacre de Río Negro (1982) no qual foram assassinadas 107 crianças e 70 mulheres, a condenação do comissionado militar do Quiché, Cándido Noriega, por seis homicídios e dois assassinatos, assim como a condenação a 6.060 anos para os responsáveis pelo massacre da comunidade Dos Erres, onde foram assassinadas 250 pessoas.
Também conquistamos a primeira condenação por desaparecimento forçado na Guatemala no caso da comunidade de Choatalum. Foi um caso histórico, porque a Corte de Constitucionalidade resolveu que enquanto não fosse conhecido o paradeiro da vítima, o crime de desaparecimento forçado não termina, pelo contrário, se continua cometendo dia após dia. Isso permitiu iniciar uma grande quantidade de julgamentos por desaparecimento forçado.
Paralelamente ao julgamento do general aposentado Ríos Montt, estamos levando adiante processos pelos mesmos crimes contra outras altas patentes do exército durante aqueles anos, como por exemplo os generais Oscar Humberto Mejía Victores, Hector Mario López Fuentes e José Mauricio Rodríguez Sánchez. A partir desses resultados, as vítimas viram que existe a possibilidade de julgar os responsáveis pelos massacres, conseguindo que se reconheça a verdade, se faça justiça, se retifiquem suas histórias através do sistema judicial guatemalteco, e se abra um camino para a verdadeira reconciliação.
OM - o Sr. confia no sistema judicial guatemalteco?
EP - Não posso conduzir casos que não acredito que possam prosperar e, até o momento, os atuais membros da Suprema Corte de Justiça, e particularmente a Câmara Penal, têm demonstrado que têm uma cota de vontade política para fazer mudanças significativas no sistema judicial.
Para o jurista Edgar Pérez, membro da Associação Justiça e Reconciliação e advogado das vítimas do grande conflito armado interno (1960-1996) que sofreram as atrocidades cometidas pelos governos ditatoriais e pelas juntas militares durante as décadas de 1970 e 1980, na Guatemala haverá uma verdadeira reconciliação “apenas e quando se julgarem os responsáveis por esses crimes”
Pérez disse em entrevista ao Opera Mundi que o julgamento contra o ex-presidente e general aposentado José Efraín Ríos Montt pelos crimes de genocídio e de lesa-humanidade cometidos durante seu mandato (1982-83) não apenas abre um precedente histórico, mas faz parte de uma estratégia muito mais ampla, iniciada depois da assinatura dos Acordos de Paz (1996). Estratégia que conquistou importantes resultados quanto ao combate à impunidade e à recuperação da memória histórica em um país que sofreu mais de 600 massacres, o assassinato e desaparecimento de mais de 200 mil pessoas e o desaparecimento forçado de um milhão de gualtemaltecos.
Opera Mundi - Em que ponto está o julgamento do ex-presidente José Efraín Ríos Montt?
Edgar Pérez - No último dia 26 de janeiro, foi emitido um indiciamento por genocídio e crimes contra a humanidade. Agora estamos na fase de investigação do processo penal e, no dia 27 de março, o Ministério Público deverá apresentar seu ato conclusivo, isto é, seu informe sobre essa fase de investigação.
São crimes que, além de estarem regulamentados no Código Penal da Guatemala, têm respaldo internacional porque remetem à Convenção de Genebra e, como consequência, à toda a jurisprudência internacional sobre o Direito Humanitário Internacional. No entanto, tem sido um processo muito complicado.
OM - O que ocorreu nestes dois meses?
EP - A defesa do general aposentado Ríos Montt empreendeu uma série de ações e já expôs várias exceções e incidentes para garantir a ele a impunidade. Apresentaram um recurso de inconstitucionalidade dizendo que ele deveria ser julgado por um tribunal militar e tentaram aplicar a anistia de 1986, que era apenas para os responsáveis ou autores de crimes políticos, ou crimes comuns associados aos políticos.
Até a Lei de Reconciliação Nacional – aprovada logo depois dos Acordos de Paz – foi muito explícita ao dizer que a anistia não poderia ser aplicada a casos de genocídio, desaparecimentos forçados e tortura, tampouco para crimes que sejam imprescritíveis em conformidade com as convenções e tratados internacionais em matéria de direitos humanos.
Finalmente, conseguimos que o tribunal indeferisse todas essas tentativas da defesa para que o sistema judicial rompesse com os compromissos internacionais do Estado guatemalteco em matéria de direitos humanos.
OM - Como fundamentaram a acusação de genocídio?
EP - Quando falamos de genocídio, não entendemos com isso apenas a ação de matar, mas também a ideia intrínseca de destruir algo em sua essência, e o bem jurídico que se protegem são os grupos humanos, entre eles, os grupos étnicos.
No chamado triângulo ou área Ixil – constituído pelos municípios de Nebaj, San Juan Cotzal y San Gaspar Chajul, departamento de Quiché –, consideramos que existe evidência suficiente para sustentar que, durante o mandato de Ríos Montt, houve a intenção de destruir de forma parcial o grupo étnico Ixil. Temos registrados um mínimo de 11 massacres, 1.771 mortes, o desaparecimento forçado de, pelo menos, 29 mil pessoas nas chamadas Comunidades de População em Resistência (MPR) em Santa Clara, uma remota comunidade na Serra de Chamá, ao norte de Quiché.
Essas comunidades foram cercadas e o exército impediu a entrada de comida e elementos básicos, como água e medicamentos. No final, as pessoas foram submetidas a condições que puderam acarretar a morte de outros membros do grupo. Mesmo assim, o exército concentrou uma grande quandidade de pessoas em condições de campo de concentração nas chamadas Aldeias Modelo, e obrigou os cidadãos a integrarem as Patrulhas de Autodefesa Civil.
Durante o mandato de Ríos Montt, uma parte da população Ixil foi deslocada até a montanha, outra foi reconcentrada nas Aldeias Modelo e o terceiro grupo foi massacrado. Isso demonstra que sim, houve intenção de destruir esse grupo étnico.
OM - No entanto, o atual presidente Otto Pérez Molina declarou recentemente que na Guatemala nunca houve genocídio
EP - Ele é um ex-militar e esteve na área Ixil com a Força Tarefa Gumarcaj, que foi uma das forças tarefas responsáveis pelos crimes cometidos contra a população civil. Ao emitir uma opinião desse tipo, o presidente está cometendo uma irresponsabilidade, porque compete ao órgão judicial, depois de um julgamento, dizer se houve ou não genocídio. Essa atitude do presidente Pérez Molina gera pressão e coação sobre o sistema judicial do país.
Há circunstâncias que poderíamos qualificar como de pressão, como por exemplo questionar e recusar os juízes, obstruir e estender o processo. Nós respeitamos essa estratégia, porque a lei outorga a possibilidade de recorrer a qualquer ação e resolução que aconteça dentro do processo. O que não podemos aceitar é quando autoridades nacionais, como o Presidente da República ou o titular da Secretaria da Paz (Sepaz), proferem declarações que de fato formam uma pressão sobre o órgão judicial.
OM - Há setores da sociedade guatemalteca que estão interessados em criar pressão em cima desse julgamento?
EP - Claro que sim, e são os que, de alguma maneira, tiveram responsabilidades nos crimes cometidos durante o conflito armado interno. Nesse julgamento, é preciso estar ciente de uma coisa: nós somos advogados daquela parte da população civil que não assumiu um papel de protagonista durante o conflito armado e que foi a que se viu como vítima. O presidente deveria estar trabalhando para que esses julgamentos garantam o devido processo, a independência judicial, que sejam justos e imparciais, e que impliquem a busca de verdade e justiça. Somente assim poderá haver reconciliação na Guatemala.
OM - O que esse julgamento simboliza para a Guatemala?
EP - Tudo isso vai mais além do julgamento de Ríos Montt e faz parte de um percurso ao lado das vítimas cujos sentimentos foram calados por décadas. Temos mais de 15 anos de trabalho e conseguimos resultados importantes quanto à possibilidade de julgar as estratégias das polícias militares daqueles anos.
Conseguimos duas sentenças pelo massacre de Río Negro (1982) no qual foram assassinadas 107 crianças e 70 mulheres, a condenação do comissionado militar do Quiché, Cándido Noriega, por seis homicídios e dois assassinatos, assim como a condenação a 6.060 anos para os responsáveis pelo massacre da comunidade Dos Erres, onde foram assassinadas 250 pessoas.
Também conquistamos a primeira condenação por desaparecimento forçado na Guatemala no caso da comunidade de Choatalum. Foi um caso histórico, porque a Corte de Constitucionalidade resolveu que enquanto não fosse conhecido o paradeiro da vítima, o crime de desaparecimento forçado não termina, pelo contrário, se continua cometendo dia após dia. Isso permitiu iniciar uma grande quantidade de julgamentos por desaparecimento forçado.
Paralelamente ao julgamento do general aposentado Ríos Montt, estamos levando adiante processos pelos mesmos crimes contra outras altas patentes do exército durante aqueles anos, como por exemplo os generais Oscar Humberto Mejía Victores, Hector Mario López Fuentes e José Mauricio Rodríguez Sánchez. A partir desses resultados, as vítimas viram que existe a possibilidade de julgar os responsáveis pelos massacres, conseguindo que se reconheça a verdade, se faça justiça, se retifiquem suas histórias através do sistema judicial guatemalteco, e se abra um camino para a verdadeira reconciliação.
OM - o Sr. confia no sistema judicial guatemalteco?
EP - Não posso conduzir casos que não acredito que possam prosperar e, até o momento, os atuais membros da Suprema Corte de Justiça, e particularmente a Câmara Penal, têm demonstrado que têm uma cota de vontade política para fazer mudanças significativas no sistema judicial.
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