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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Direito, política e igualdade constitucional


O financiamento público de campanha não acarretará o fim do caixa dois. Seria muita ingenuidade ou má-fé fazer tal afirmação. Mas ele é necessário.

Marthius Sávio Cavalcante Lobato (*)
José Cruz / ABr
“Há que se pôr de acordo: quem financiou a minha campanha? Os submarinos paquistaneses, o senhor Kadaffi ou a senhora Bettencourt?” Esta foi a pergunta que Nicolas Sarkozy se fez, em abril de 2012, quando estava prestes a sofrer inúmeros processos judiciais decorrentes de sua campanha presidencial com caixa dois.
 
A legislação eleitoral francesa fixa o financiamento público das campanhas eleitorais desde 1995. Proíbe qualquer forma de doações por pessoas jurídicas, estabelecendo o reembolso de 50% do limite dos custos eleitorais aos partidos que tenham, no mínimo, 5% dos votos do eleitorado. Em outras palavras, fixa-se o valor limite do gasto eleitoral. Ultrapassado este limite, está configurado crime eleitoral.
 
Iniciados os processos contra Sarkozy e seu partido, a UMP, o Conselho Constitucional Francês, órgão competente para julgar as contas de campanhas do legislativo e executivo, “chumbou” – para utilizar uma expressão francesa – as suas contas de campanhas, condenando-o a reembolsar aos cofres públicos mais de 500 mil euros, além de condenar o partido UMP a devolver cerca de 11 milhões de euros, referentes aos valores que recebeu de subsídios do Estado.
 
Sarkozy e a UMP fizeram, então, uma grande “recolha de fundos”, para utilizar outra expressão francesa. Jean-François Copé, presidente e líder do partido, afirmou em público: “Peço a todos os franceses, mesmo àqueles que não partilham os nossos ideais, mas consideram essencial o papel do centro-direita na preparação do futuro das nossas crianças, que respondam a esta recolha de fundos que vou lançar, a nível nacional”.
 
A situação de Sarkozy, ex-presidente da França, de um partido de “centro-direita”, apoiado pela grande elite francesa, nos leva à reflexão da atual situação do sistema político brasileiro. Vou me limitar a mencionar apenas duas questões: os julgamentos de financiamento público de campanha versus o financiamento privado e os julgamentos de Nicolas Sarkozy e a Ação Penal nº 470.
 
No primeiro, constatamos que no momento em que uma entidade civil como a Ordem dos Advogados do Brasil teve a coragem de ir ao Supremo Tribunal Federal para debater o que a maioria da classe dominante brasileira sempre apoiou, o financiamento privado, deparamos- nos com julgadores em discurso eloquente e recheado de preconcepções político-partidárias, acusando a entidade de querer beneficiar o partido do governo. Mas não disseram qual o partido e de qual governo. O partido do governo federal que está tão somente há dois mandatos e meio no exercício democrático do governo por ter sido eleito, ou o partido do governo do Estado e dos Estados que está há mais de 20 anos no Poder?
 
Tal digressão não faz a mínima diferença. O que estava em causa era a tentativa de esconder a real intenção, que é a afirmação da defesa do financiamento privado de campanha. Como ser contra o financiamento público, depois que durante mais de 50 sessões no ano de 2012 foi dito, afirmado e reafirmado, que este sempre foi o ponto de corrupção eleitoral a partir do caixa dois? A saída foi usar fundamentos vazios e retóricos de perpetuação de poder. Enfim, aumentar o conflito social de classe (PT x PSDB) para justificar a hipocrisia.
 
De fato, o financiamento público de campanha, não acarretará o fim do caixa dois eleitoral. Seria muita ingenuidade ou má-fé fazer tal afirmação. A condenação de Sarkozy pelo Conselho Constitucional Francês é um exemplo. A diferença é que, com o financiamento público de campanha, o Poder Judiciário não poderá tratar situações iguais de forma diferente. Não poderá, por exemplo, colocar um processo em primeiro plano, como o fez com a Ação Penal nº 470, para bajular setores da classe dominante, e deixar outro processo, a Ação Penal nº 536, o mensalão tucano, para que a prescrição penal tome conta da situação.
 
O financiamento público obrigará não só os partidos políticos a se adequarem ao sistema de gasto previamente debatido e deliberado, de forma igualitária e limitada, como também, obrigará que o Poder Judiciário julgue de forma igualitária todas as situações eleitorais. Não poderá um juiz, por exemplo, escolher o momento do julgamento de um processo eleitoral sem a devida justificativa do porque o mais antigo não será julgado, na medida em que uma eleição vinculará a seguinte. E a caracterização criminal resultado da comprovação da existência de um caixa dois também não poderá ser objeto de “escolha” das instituições, seja o Ministério Público no momento da denúncia, sejam os juízes no momento do julgamento. Só ocorrerá um tipo penal: crime eleitoral.
 
Uma pergunta que fica é por que, com raras exceções, a mídia e as demais instituições do sistema político não fizeram nada ante um julgamento com tais características de exceção. A resposta é simples. Exatamente por fazerem parte daquele sistema político-eleitoral viciado, movido pelo financiamento privado e que beneficiava tão somente uma classe que estava acostumada a ocupar as esferas de poder, é que permitiram ou endossaram a privatização do Ministério Público, como foi feito com a Ação Penal nº 470, e a escolha político-eleitoral/partidária, por parte daquele que tem o dever de não prejulgar.
 
A lição da condenação de Sarkozy, na França, pelo Conselho Constitucional Francês, nos ensina que crime eleitoral deve ser analisado e punido como crime eleitoral. Jamais poderá ser utilizado para criminalizar um partido ou mesmo uma concepção política para a obtenção de uma ruptura democrática e obtenção de poder. Não precisamos ser pós-modernos para percebermos que tal ato e fato é golpe de Estado.
 
 
(*) Advogado, Professor Universitário, Doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB.


Créditos da foto: José Cruz / ABr



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