QUESTÃO EXISTENCIAL
'Importância da Justiça Militar não se apura em números'
Quando criou uma comissão para avaliar a relevância da Justiça Militar dos estados, em abril do ano passado, o presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Joaquim Barbosa, sugeriu um debate ainda mais abrangente: com tão poucos processos julgados e por julgar, o Judiciário castrense como um todo é realmente necessário? A pergunta envolveu o próprio Superior Tribunal Militar, corte mais antiga do país, com 205 anos, e foi feita em comparação com a produção dos demais tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal. Em 2011, com um custo de manutenção anual de R$ 300 milhões, o STM apreciou apenas 54 casos, segundo o autor da proposta de extinguir esse ramo da Justiça, conselheiro Bruno Dantas.
A comissão ainda não terminou seu trabalho, mas o relatório Justiça em Números divulgado pelo CNJ em novembro trouxe dados concretos, pelo menos em relação aos tribunais estaduais de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul: em 2012, as cortes militares custaram R$ 107,5 milhões, diante dos R$ 52 bilhões gastos por todo o Judiciário brasileiro. A carga de trabalho por juiz militar foi de 345 casos, enquanto cada um dos juízes das demais esferas teve em média 5.618 para julgar. Ao todo, os três estados somaram 13 mil processos na Justiça Militar, mais da metade sobre questões disciplinares.
Esses números, no entanto, não respondem à pergunta feita em abril, na opinião de uma das mais incisivas defensoras da Justiça Militar no país, a ministra do STM Maria Elizabeth Rocha. Primeira e única mulher a ter assento na corte em toda a história do tribunal, Maria Elizabeth foi nomeada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2007 para vaga destinada à advocacia pelo quinto constitucional. Desde então tem representado o STM em palestras em todo o mundo sobre o funcionamento e a importância da Justiça Militar brasileira.
Segundo ela, justificar a existência desse Judiciário com estatísticas é distorcer a função para a qual ele foi criado e que nenhuma outra vertente da Justiça poderia dar conta: manter a disciplina nos quartéis e a ordem no Estado.
O raciocínio é simples: se houvesse processos militares em número proporcional aos gastos com a estrutura das cortes militares, estaria havendo uma crise no Estado, já que os casos analisados tratam de crimes cometidos contra agentes e contra as Forças Armadas e de punições por indisciplina. Por outro lado, se essa Justiça fosse extinta, atentados contra o Estado e desafios à hierarquia seriam entregues à Justiça comum e demorariam para ser julgados. A inefetividade judicial resultaria em caos no setor que mais depende de disciplina.
Em entrevista exclusiva concedida ao Anuário da Justiça Brasil 2014, que a ConJur adianta aos leitores do site, a constitucionalista sopesa valores para mostrar por que manter as forças de defesa do país sob controle, função principal do Judiciário castrense, é crítico para a democracia. “A defesa da pátria e dos Poderes da República é valor mais elevado do que o da própria vida, já que, sob determinadas circunstâncias, impõe-se aos militares o dever de matar ou morrer”. Em outras palavras, a Constituição permite até mesmo o homicídio, crime capital, em situações específicas como as de guerra, mas não autoriza ameça ao Estado em nenhuma hipótese.
Casada com um general da reserva, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha fez carreira na Advocacia-Geral da União antes de entrar no STM. Como procuradora federal, foi assessora do Ministério da Cultura, do Tribunal Superior Eleitoral e da Casa Civil. Formou-se em Direito pela PUC-MG e tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em Direito Constitucional, respectivamente pela Universidade Católica Portuguesa, pela Universidade Federal de Minas Gerais e pela Universidade Clássica de Lisboa. Dá aulas de Direito Constitucional no UniCeub, em Brasília, desde 2006.
Leia a entrevista:
ConJur — Devido ao baixo número de processos, os tribunais militares devem ser extintos?
Maria Elizabeth — A proposta é temerária, para dizer o mínimo. A importância da jurisdição não se mede com base em estatísticas. Aliás, causa estranheza esse posicionamento, já que tanto o constituinte derivado quanto o próprio Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado, têm buscado mecanismos para restringir o número de processos e tornar a Justiça mais célere, eficiente e enxuta. O instituto da repercussão geral, a súmula vinculante e a inserção da razoável duração do processo como direito fundamental do indivíduo são exemplos veementes do esforço legislativo e judicial.
ConJur — A relação entre o custo e a produtividade da Justiça Militar não devem preocupar?
Maria Elizabeth — É importante esclarecer que os dados apresentados pelo o autor da proposta estão incorretos. No ano de 2012, o Superior Tribunal Militar julgou 1.081 casos, e a primeira instância, 1.217 processos. Em 2013, o STM apreciou 1.115 ações, e a primeira instância, 1.090. Isso está longe dos 54 mencionados e, a despeito de ser um quantitativo infinitamente menor do que o dos demais tribunais superiores, relembro que a Justiça Militar da União é um foro exclusivamente criminal; que os processos penais não podem ser julgados em lista, mas discutidos e votados caso a caso; que a corte só funciona em Pleno, o que demanda tempo em cada votação; que a presteza e a eficiência da jurisdição é fundamental para a preservação dos bens constitucional tutelados, e que o militares são homens e mulheres valorosos, dedicados a servir à pátria, e não meliantes contumazes. Aqueles que julgamos são a exceção à regra.
ConJur — E a Justiça Militar é célere?
Maria Elizabeth — A celeridade é imperiosa para a preservação do comando hierárquico. Em se tratando do Direito Penal Castrense, a demora processual pode ser fatal para a integridade das Forças Armadas. Conforme afirmei, não se pode valorar a importância das instituições numericamente. Se assim o fosse, a América do Norte deveria extinguir a Suprema Corte, que julga uma média de 60 processos por ano.
ConJur — No Brasil, todas as Justiças têm um elevado número de processos...
Maria Elizabeth — A Justiça Militar da União, que tem competência para processar e julgar os crimes militares definidos em lei, cometidos contra as Forças Armadas e a administração castrense, não poderia ter o mesmo número de processos dos demais tribunais superiores por ser uma jurisdição unicamente criminal, que não julga questões cíveis, trabalhistas, previdenciárias, do consumidor ou de outras áreas extremamente judicializadas.
ConJur — O que aconteceria se houvesse maior número de casos?
Maria Elizabeth — A clientela da Justiça Militar é, na grande maioria, de réus militares. Se a Justiça Militar da União tivesse distribuição semelhante à do STF, do STJ ou do TST, haveria sérios problemas no regime político. Afinal, os militares, ao contrário dos civis, detêm as Armas da Nação. Seu contingente é de aproximadamente 310 mil jurisdicionados, sendo 220 mil no Exército, 55 mil na Aeronáutica e 55 mil na Marinha. A democracia se desestabilizaria se paradigmas rígidos de conduta para a atuação desses agentes não fossem observados, já que, quando as Forças Armadas se desorganizam, tornam-se impotentes para cumprir sua missão constitucional de defender a pátria, pondo em risco o Estado e a nação. Elas são as únicas que têm por finalidade a defesa da pátria e dos Poderes da República, valor mais elevado do que a própria vida, já que, sob determinadas circunstâncias, impõe-se aos militares o dever de matar ou morrer. Por isso, a tal valor especialíssimo correspondem regras especialíssimas de conduta, que devem ser rigorosamente observadas, sob pena de comprometimento do próprio Estado Democrático de Direito.
ConJur — A Justiça Militar é branda com os militares?
Maria Elizabeth — Por lidarmos com valores singulares, tutelados pelo constituinte maior e pelo legislador como bens jurídicos a serem resguardados pela ordem normativa e social, é grande o rigor dos julgamentos e há grande número de condenações, ao contrário do que pensam os incautos. Além disso, a Justiça Militar é a única a ter a característica da mobilidade, impensável para a Justiça comum, de poder se deslocar para teatros de operações de guerra, onde o poder disciplinar é mais premente. Afinal, crimes cometidos em situação tão dramática determinam uma pronta, ativa e ágil estrutura judiciária, que permita apurar os delitos e punir os culpados com a maior brevidade possível.
ConJur — Os juízes militares têm sido ouvidos no debate quanto à necessidade dessa Justiça?
Maria Elizabeth — O que desequilibra a discussão não é o confronto de ideias divergentes, importante e saudável para repensar as instituições públicas, mas o fato de a Justiça Militar da União, por não deter assento no CNJ, não participar do debate. Ou seja, discute-se sobre os novos rumos dessa jurisdição sem a nossa participação. O Superior Tribunal Militar é a mais antiga Justiça do país, contando com mais de dois séculos de existência. Mesmo assim, é profundo o desconhecimento, por parte da sociedade e dos operadores do Direito, sobre sua competência e composição. Atribuo a esse lamentável desconhecimento o fato de a Emenda Constitucional 45/2004 não ter dado a essa Justiça assento no CNJ, omissão que a PEC 358/2005 busca reparar. As consequências desse esquecimento têm nos afetado sensivelmente.
ConJur — Por quê?
Maria Elizabeth — Estivesse a sociedade civil e jurídica ciente da atuação da Justiça Militar, saberia que ela preenche todos os princípios projetados pelas Nações Unidas para as jurisdições militares no mundo. Ela foi instituída pela Constituição Federal e regulamentada por lei, integrando a estrutura do Poder Judiciário desde a Carta de 1934. Ora, a Justiça Militar da União não foi criada após o regime militar de 1964 e não guarda qualquer correlação com ele. Ela foi instituída em 1808 por Alvará do então Príncipe Regente D. João VI. Seus julgamentos observam rigorosamente o devido processo legal, imposição máxima do artigo 5º, inciso LIV, da Constituição. Em períodos de paz ou durante os conflitos armados, as normas e os Tratados Internacionais, em especial os de Direito Humanitário e a Convenção de Genebra sobre o tratamento dos prisioneiros de guerra, são aplicados. Menores de 18 anos não são processados e julgados nessa Justiça em acatamento à Convenção Internacional dos Direitos Humanos e às regras de Pequim para a administração da Justiça da Infância, bem como por vedação expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente. O Código Penal Militar não exclui de responsabilização os crimes sobre os quais se invoca o dever de obediência legal quando resultem em violação aos Direitos Humanos, à prática de genocídio ou crimes contra a humanidade. É bom lembrar que o Brasil é signatário do Tratado de Roma e prevê a Constituição, no parágrafo 4º do seu artigo 5º, que o Estado se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Habeas Corpus e Mandados de Segurança podem ser impetrados na Jurisdição Militar e se, denegados, cabe recurso ao Supremo Tribunal Federal. Suas decisões são igualmente recorríveis ao Supremo quando versam sobre matéria constitucional ou tenham repercussão geral. As audiências e os processos são públicos e as decisões judiciais, fundamentadas. Os magistrados e promotores são servidores públicos que entram na carreira por meio de concurso de provas e títulos. Os ministros do STM são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal. Quaisquer vítimas podem denunciar os crimes contra elas cometidos tanto ao comandante da Força quanto ao Ministério Público castrense, e são representadas pelos promotores e subprocuradores da instituição. Para encerrar, a pena de morte só é admitida em caso de guerra declarada, como previsto no artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a”, da Constituição — dispositivo, aliás, que a Comissão de Reforma do Código Militar, instituída pelo Superior Tribunal Militar, está tentando abolir junto ao Congresso Nacional.
ConJur — A Procuradoria-Geral da República ajuizou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental no STF pedindo que se reconheça a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz, e que eles sejam julgados pela Justiça comum. Civis devem ser retirados da jurisdição do STM?
Maria Elizabeth — Não. E digo isso por não existir impeditivo constitucional para o julgamento de civis pela jurisdição penal especial. A Justiça Militar da União, tal qual as demais Justiças, integra o Poder Judiciário desde 1934, e os processos submetidos ao seu crivo obedecem todos os mandamentos magnos, tais como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Acontece que, para os leigos, essa Justiça seria constituída por militares para julgar somente militares. É o momento de pôr fim a essa incompreensão. Para começar, os juízes-auditores são cidadãos civis, que ingressaram na magistratura por concurso público de provas e títulos, como todos os magistrados. Além disso, a Justiça castrense não tem por objetivo julgar os integrantes das Forças Armadas. Sua competência não é definida em razão da pessoa. A finalidade é proteger as instituições militares e, por consequência, a soberania estatal e o Estado nacional. Por isso, o poder constituinte originário, atento às peculiaridades de bens especialíssimos que são a hierarquia e a disciplina, entendeu não restringir a competência da Justiça Militar apenas aos agentes militares, abarcando igualmente os civis. O artigo 124 da Constituição disse competir à Justiça Militar da União processar e julgar os crimes militares definidos em lei, sem impor distinções ao agente. Além disso, a Justiça Militar da União julga civis assim como a Justiça Eleitoral processa e julga não somente os políticos ou candidatos a mandato eletivo, mas todo e qualquer cidadão.
ConJur — O que a Justiça Eleitoral tem em comum com a Militar?
Maria Elizabeth — O Código Eleitoral, da mesma forma que o Código Penal Militar, define os crimes ali elencados em razão de sua especialidade, e não em face da pessoa que esteja cometendo o ilícito. A título ilustrativo, cito o artigo 339 do Código Eleitoral, que pune aquele que destrua, suprima ou oculte urna contendo votos ou documentos relativos à eleição, independentemente do status do agente. Ora, a Justiça penal castrense é uma Justiça especializada e não uma corte marcial ou administrativa. Qual seria o impeditivo para o julgamento de civis por uma Justiça especializada se a Constituição não obsta?
ConJur — Réus civis são julgados com o mesmo rigor que os militares?
Maria Elizabeth — O rigor no julgamento dependerá do crime. É sempre bom lembrar que os civis que julgamos não são apenas pequenos estelionatários, como crê a maioria. Julgamos indivíduos de alta periculosidade para o Estado e para a sociedade. São narcotraficantes das Farc que invadem nossa fronteira e atacam o Exército brasileiro; civis que aliciam soldados conscritos e invadem os quartéis para roubar munição e armas, como fuzis e granadas; marginais que metralham comboios de soldados. E tais julgamentos não podem ser postergados infinitamente em razão da sobrecarga judicial. A resposta estatal deve ser rápida e rigorosa de forma a salvaguardar a legitimidade do Estado de Direito. Não obstante isso, a Justiça Militar da União sempre deu exemplos de independência, coragem, imparcialidade e isenção, em decisões memoráveis, como a prolatada em 1936, quando o então Supremo Tribunal Militar reformou as sentenças condenatórias proferidas pelo Tribunal de Salvação Nacional instituído pelo Estado Novo, concedendo ordem de Habeas Corpus a Luís Carlos Prestes e João Mangabeira, ou quando deferiu medida liminar no mesmo caso, assinada pelo brilhante jurista Arnoldo Wald. Essa decisão serviu de precedente ao próprio Supremo Tribunal Federal. Há ainda outros julgamentos, como o caso dos presos proibidos de manter contato com seus advogados sob a égide da Lei de Segurança Nacional. A histórica decisão da Representação 985 foi a solução, ao observar os princípios do direito de defesa. Do mesmo modo decidiu o STM ao entender, na década de 1970, que a greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse melhoria salarial, não era, segundo o Recurso Criminal 5.385-6, um crime contra a segurança nacional. No Recurso Criminal 38.628, a corte disse ainda que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora feita em linguagem censurável, não configurava crime contra a segurança do Estado, resguardando a liberdade de imprensa e de expressão. Todas essas decisões, dentre outras, mostram uma jurisprudência dignificante que, ao sobrepor-se a pressões políticas, deixou significativo legado. Lembro ainda que os defensores públicos, quando atuaram pela primeira vez no Judiciário brasileiro, o fizeram no Superior Tribunal Militar.
ConJur — E o que os advogados dizem sobre isso?
Maria Elizabeth — Vale lembrar o discurso do ilustre advogado Técio Lins e Silva, em 15 de fevereiro de 1973, quando da instalação do Superior Tribunal Militar em Brasília, acerca do julgamento de civis. Disse ele: “Após ver a Justiça Militar ampliada em sua competência jurisdicional, quando passou a processar e julgar civis acusados da prática de delitos atentatórios à Segurança Nacional, foi como ter recebido um oneroso encargo que desafiava a eficiência, a celeridade e a capacidade de trabalho da tradicional e pacata Justiça castrense. Entretanto, os anos se passaram e esta corte não só se afirmou no setor judiciário, como se impôs perante toda a nação como um tribunal de invejável sensibilidade, atento, seguro, digno e sobretudo independente. Os processos trazidos a esta corte, tantas vezes envolvendo questão política — nos casos de Segurança Nacional — não abalaram, não afastaram o sentimento de Justiça e equilíbrio que fez com que este tribunal merecesse de todo o povo a admiração e o respeito”. São palavras de um dos maiores defensores de presos políticos e da liberdade no Brasil, absolutamente isentas e imparciais.
ConJur — A PGR também ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a lei que dá às Forças Armadas competência para garantir a ordem pública. Qual a sua opinião?
Maria Elizabeth — A ADI que analisa a constitucionalidade da lei complementar que versa sobre a atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem merece a improcedência. A própria Constituição estatui, em seu artigo 142, destinarem-se as Forças Armadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Portanto, a Lei Complementar 97/1999, ao prever que o exercício dessa função configura atividade militar para os fins do artigo 124 da Constituição, não afronta o texto. Ao contrário, reafirma-o. Os militares empregados na garantia da lei e da ordem, quando legitimamente convocados para isso, exercem função tipicamente castrense, em observância à própria destinação conferida às Forças Armadas, prevista pelo artigo 142 da Constituição. Além disso, o texto constitucional, adotando o critério ratione legis, deferiu ao legislador ordinário a atribuição de definir os delitos castrenses. O artigo 9º, inciso III, alínea “d”, do Código Penal Militar, muito antes da vigência da citada lei complementar, já previa serem militares as infrações cometidas contra militar no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, quando legalmente requisitado para esse fim, ainda que fora do lugar sujeito à administração castrense. Desse modo, não há que se falar em inconstitucionalidade da lei complementar.
ConJur — Outra ADPF, também da PGR, quer a descriminalização do sexo dentro de quartel, se envolver militar que não esteja no exercício da função. O argumento é que não se pode restringir a sexualidade humana. A ministra concorda?
Maria Elizabeth — A ADPF que questiona o artigo 235 do Código Penal Militar trata da prática de relações sexuais dentro da caserna, nos alojamentos, quando o militar não estiver no exercício da função, o que me parece absurdo. O tipo legal impugnado pune a prática sexual em lugar sujeito à administração castrense, e não na residência do militar, mesmo que ela se encontre dentro da vila ou do quartel, pois como se sabe, a casa é o asilo inviolável do indivíduo, independentemente de onde se localize. Por acaso a lei autoriza o servidor público civil ou empregado celetista a praticar ato libidinoso na repartição ou na empresa onde trabalham? É evidente que não! Isso seria causa de exoneração ou demissão. É óbvio dizer que o local de trabalho não é o apropriado para o sexo e que permiti-lo causaria grandes constrangimentos aos colegas de trabalho ou à chefia. E isso está longe de afrontar a sexualidade humana. Trata-se de regra social de convivência. Ainda mais em se tratando de lugar sujeito à administração do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica, onde as condutas dos militares são pautadas por um rigor maior, diante da necessidade de manutenção da hierarquia e da disciplina. Mesmo não estando no exercício da função, eles devem estar sempre prontos a atender o chamamento de seus superiores, para garantir a segurança e o bom desenvolvimento da instituição em casos de emergência ou de necessidade. Por isso, a restrição à sexualidade me parece insuficiente para a descriminalização. Amor no quartel, só à pátria.
ConJur — A ministra foi a primeira a cogitar, no STM, que para que uma ação penal por deserção possa tramitar, é necessário que o desertor ainda esteja na ativa, o que obriga conscritos que terminaram o serviço militar obrigatório a serem reintegrados à Força. A corte não concordou. Ainda mantém essa opinião?
Maria Elizabeth — Fui a primeira na corte a levantar essa questão, na Apelação 25-46.2012.7.01.0301, julgada em 11 de dezembro de 2012, na qual fiquei vencida. Entendi na ocasião, e permaneço com a mesma compreensão, que é condição de procedibilidade nos delitos de deserção a reinclusão do desertor, para fins de oferecimento da denúncia. Esse requisito, a despeito de ter como resultado a concessão ao desertor do status de militar, com ele não se confunde e é a única exigência feita pela norma, não havendo necessidade de o réu mantê-la para o processo continuar, por não configurar pressuposto de prosseguibilidade. A reinclusão justifica-se diante da necessidade de a administração castrense tomar conhecimento do motivo que levou o desertor a se ausentar, haja vista a possibilidade de estar ele acobertado por alguma causa de exclusão de ilicitude ou de culpabilidade, ou encontrar-se acometido de doença grave ou mesmo ter morrido. Trata-se, na realidade, de medida de política criminal adotada pelo legislador que não se imiscui com o tipo penal e nele não interfere. Desse modo, perpetrado o agravo por quem é detentor da condição de militar, não se cogita ilegitimatio ad partem por perda desta qualidade, porquanto a superveniência da condição de civil do denunciado não afeta o crime consumado.
ConJur — Tendo entrado no STM pelo quinto constitucional — porta criticada publicamente pelo presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Joaquim Barbosa —, qual sua resposta a quem diz que o instituto é uma forma de driblar o concurso público?
Maria Elizabeth — O quinto é uma previsão constitucional legítima que visa arejar o Poder Judiciário, porque propicia uma visão multifacetada e dialética da Justiça e do Direito. Com isso, ganha não apenas o jurisdicionado, mas o sistema jurisdicional como um todo, na medida em que visões de mundo diferenciadas democratizam e aprimoram as instituições estatais. Além disso, não é correto afirmar que todos os advogados que integram o quinto constitucional não prestaram concurso público. Eu ocupo, no Superior Tribunal Militar, a cadeira destinada aos advogados, mas sou egressa da Advocacia-Geral da União, onde prestei concurso público de provas e títulos e fui aprovada em primeiro lugar. Da mesma forma, os demais ministros do STM que ocupam a vaga destinada à advocacia eram, anteriormente à nomeação, procuradores federais concursados. E isso também ocorre em outros tribunais superiores.
ConJur — Ter vindo da advocacia ajuda na relação com os advogados?
Maria Elizabeth — Trato os advogados com respeito e cordialidade, como sempre fui tratada quando exercia a advocacia. Não tenho dias específicos para recebê-los. Faço conforme a demanda. Acato fielmente o Estatuto dos Advogados, que enumera entre os direitos do profissional dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada. Além disso, a lei assegura a inexistência de hierarquia entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, colocando-os em idêntico patamar para administração e indispensabilidade da Justiça. Sigo à risca esses postulados, por exigência legal e convicção pessoal, pois como filha e neta de advogados, e eu mesma tendo sido advogada no início da minha carreira profissional, tenho plena consciência do quão fundamental e importante é a atuação desses valorosos operadores do Direito.
ConJur — Quais são suas referências no Direito?
Maria Elizabeth — São muitos os nomes a serem destacados no universo de juristas brilhantes e respeitáveis que admiro. Então, para não ser injusta ao fazer escolhas, destacarei os professores que influenciaram minha vida e a quem eu devo muito. Inicio com o decano dos constitucionalistas brasileiros, o eminente professor doutor Paulo Bonavides, que tanto me incentivou e auxiliou no início da minha trajetória acadêmica. Menciono também dois magníficos juristas que foram meus orientadores do mestrado e doutorado, respectivamente: os professores doutores Jorge Miranda e José Alfredo de Oliveira Baracho, com os quais tanto aprendi e a quem sou eternamente grata. Cito, ainda, o ilustre professor doutor Friedrich Müller, grande pensador da atualidade, filósofo e amigo, que tem influenciado, com a profundidade de seu pensamento, o meu olhar sobre as Ciências Jurídicas.
Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
Hylda Cavalcanti é jornalista.
Revista Consultor Jurídico
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