O que é violência? Violência, palavra derivada do latim “violentia”, que significa “veemência, impetuosidade”. Também está relacionada ao termo “violação”, de violare.
Na maioria dos meios de comunicação e em setores sociais, o simbolismo da violência é tratado de forma generalizada. Costuma-se classificar como violência tudo aquilo que perturba uma aparente ordem de paz (ainda que o conceito de paz possa ser também problematizado), tais como: atentados de grupos armados, destruição de patrimônios públicos e privados, manifestações políticas (à esquerda) e agressões em geral.
Porém, é necessário que problematizemos a questão de violência e suas circunstâncias. Faz-se necessário que a arranquemos da narrativa colonizadora da mídia hegemônica e de outros meios que incidem diretamente na opinião pública. Descolonizar a violência é desconstruí-la e encontrar no meio de seus destroços o que é de fato violência, quem a pratica e o que é a reação. Por exemplo, diariamente mulheres são aviltadas por homens, seja no espaço privado ou no público (transporte, por exemplo). Quando uma mulher reage, tal fato é tratado com alarde e como algo “violento”. Mas, como bem frisou Malcom X, é necessário “não confundir a reação do oprimido com a violência do opressor”.
O oprimido tem identidade, classe, cor, gênero e orientação sexual. Especificamente, podemos entender enquanto classe de oprimidos os/as negros/as, mulheres, bichas, lésbicas, drogados, transexuais, indígenas, imigrantes em condições de clandestinidade e outros marginalizados. Estes grupos vivem toda a sorte de violência por parte de um sistema/Estado que está organizado para normatizar, classificar e homogeneizar as experiências. A partir do momento em que estes corpos se tornam dissidências das regras sociais, passam a viver cotidianamente a violência perpetrada pelos códigos padronizadores. As violências são inúmeras: desde a exclusão dos espaços sociais até mesmo a eliminação. Estes corpos, perante o sistema branco-ocidental (que se pressupõe hegemônico/sem fronteiras/colonizador), são elimináveis.
E onde estaria o agente opressor? De maneira direta, podemos identificar a opressão no sistema judiciário, que possui a mão pesada para com os oprimidos; as forças militares que, invariavelmente, reprimem ações populares e os sujeitos marginalizados; o Estado, quando nega a existência de algumas identidades e não quando retira direitos e, quando isto ocorre, sempre atinge o lado mais fraco da corda… Portanto, compreender a violência opressora é entender que ela é fragmentada, manipuladora e que, muitas vezes, coopta o oprimido e faz com que este invista opressão contra os seus parceiros oprimidos.
“Viado não é bagunça”
Circula pela rede um vídeo em que um homem homossexual reage a uma difamação homofóbica com socos e chutes contra o seu agressor, que vai ao chão. Muita gente aplaudiu e outras reprovaram. De um lado, reconhecia-se o fato de que sujeitos sexodiversos cansaram de serem humilhados em silêncio e que estariam reagindo; do outro lado, de que se tratava de um fato triste: uma opressão sendo respondida com violência. Eis aqui o X da questão: quem, de fato, pratica violência?
A reação da bicha deve ser entendida como uma reação frente a uma gama de opressões que LGBT, mulheres, negros, índios e outros marginalizados sofrem ao longo dos séculos diante de um silêncio complacente de boa parte da sociedade e da classe política. Afirmar que se trata de “violência” a reação de um sujeito frente a uma agressão que ocorre por décadas é reforçar/reafirmar toda a estrutura da violência opressora. Os sujeitos marginalizados são sistematicamente violentados e, no limite, se organizam e vão às ruas protestar; quando um sujeito, sozinho, reage, ele não está cometendo violência, ele está reagindo uma violação que o persegue, e não apenas a ele, mas a seus amigos e, consequentemente, familiares.
O discurso “pacifista” quase sempre surge quando o oprimido reage. Esta observação é feita pertinentemente por Fanon em Os Condenados da Terra ao tratar da intelectualidade colonizada e da possibilidade de diálogo entre colono e colonizado quando este resolve se levantar contra o sistema de poder imposto pela colonização. O intelectual colonizado e o colono logo se aproximam do oprimido revoltado para lhe dizer que não é assim que as coisas devem ser, que devem conversar, ter calma e que tudo ficará melhor. Esta sistemática se repete com os marginalizados quando se rebelam em nossa contemporaneidade.
Em outro momento, Fanon afirma que, quando o colonizador se dá conta de que não poderá mais controlar a revolta, ele se utiliza do “terreno da cultura, dos valores, das técnicas” para manter o seu poder. E o que significa a retomada do Estatuto da Família, que apenas reconhece a família normativa, senão um chamado pelos valores frente ao avanço do movimento LGBT? E as campanhas contra o aborto, senão uma convocação para a criminalização do corpo da mulher? Sempre que a rebelião se fortalece, fala-se na “dignidade humana” e na “paz”, mas, bem sabemos que estes dois valores têm endereço: na heteronormatividade classe-média e nos setores detentores de poder, que sentem seus privilégios e dominação ameaçados quando a bicha e outros marginalizados reagem.
Quando a bicha nocauteia o seu opressor e lhe diz com todas as letras que “viado não é bagunça” e que ele não veio a este mundo “para ser tirado”, no momento do fato, ele pode estar “sozinho”, mas a sua atitude pode ser interpretada simbolicamente como os passos necessários para a transformação do social, pois, e novamente nos apoiamos em Fanon, a prática dos crimes de ódio por identidade de gênero e orientação sexual acontece há tanto tempo que foram naturalizadas e, consequentemente, o oprimido passou a apanhar em silêncio, visto que a dominação sistêmica o programou para pensar desta forma. Quando o sujeito reage a séculos de dominação, ele está reagindo contra toda uma estrutura de violência que sempre, direta ou indiretamente, lhe informou que não deveria reagir, mas sim permanecer em silêncio e manter a ordem das coisas.