Publicado por João Paulo Orsini Martinelli
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Notícias recentes sobre a prisão cautelar de pessoas envolvidas em manifestações públicas levantam algumas questões sobre o crime de associação criminosa (anteriormente denominado quadrilha ou bando), especialmente sobre sua legitimidade e a fundamentação das decisões judiciais. O presente artigo não entrará no mérito das decisões que ordenaram as prisões cautelares – sob aparente falta de fundamentação – e sim tentará levantar as dificuldades de sustentar os mandados mediante a necessidade dos indícios do crime e do perigo ao bem jurídico tutelado.
Segundo o art. 288 do Código Penal, constitui infração penal “associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. Associar significa reunir com intenção de permanência, ou seja, não é uma mera reunião temporária. Tradicionalmente, a doutrina faz a distinção entre a associação criminosa, com caráter de longevidade, e o concurso de pessoas destinado a fato determinado. Essa diferenciação traz um dos problemas do crime, pois a prova do dolo de permanência é muito difícil. No Direito Penal da responsabilidade subjetiva, deve-se provar o intuito dos agentes em se reunirem – e não apenas se juntarem eventualmente – para o fim específico de cometer crimes. O STF, no julgamento da AP 470, confirmou a necessidade de que a “affectio societatis deveria ser qualificada pela intenção específica de delinquir ou o dolo de participar de associação criminosa e autônoma para praticar crimes indeterminados” (Informativo STF 737).
Ademais, a associação criminosa não se confunde com organização criminosa. Conforme explica SILVEIRA, esta “construção tem lastro em aspectos criminológicos. (…) Ao simplesmente misturar conceitos criminológicos e dogmáticos, sem pretender idealmente defini-los, aclara-se a confusão e dificuldade de esclarecimento” (2013). A distinção já era visível na revogada Lei 9.034/1995, que regulamentava a investigação de “ações praticadas por quadrilha ou bando ouorganizações ou associações criminosas de qualquer tipo”. Mesmo com as definições de organização criminosa previstas nas Leis 12.694/2012 e 12.850/2013 as dificuldades de conceituar associação criminosa persistem. Basicamente, a legislação atribui três características às organizações criminosas: relação de subordinação hierárquica, a divisão de tarefas e a finalidade de lucro ilícito. Há, portanto, uma estrutura semelhante à de uma empresa que funciona visando certa produção para atingir o lucro. Em relação à associação criminosa, não há qualquer referência quanto à sua estrutura, o que dificulta ainda mais a prova de sua existência.
Adiciona-se a esse empecilho os requisitos para a decretação da prisão preventiva. Por ser uma medida cautelar, a prisão preventiva requer indícios da prática de um crime (fumus comissi delicti) e o perigo de o acusado permanecer em liberdade durante o processo (periculum libertatis) (LOPES JR., 2014). Esses requisitos devem ser devidamente demonstrados na decisão que autoriza a prisão preventiva, pois os acusados ainda gozam de presunção de inocência. E daí surge o dilema: se após o devido processo legal, com contraditório, ampla defesa e produção de provas, há grandes dificuldades em demonstrar a existência de uma associação criminosa, muito mais difícil é levantar indícios do crime em fase preliminar, sem provas concretas, especialmente porque o crime pretendido não precisa ser praticado. Além disso, na dúvida entre a associação criminosa (crime autônomo) e o eventual concurso de pessoas, deve prevalecer o entendimento mais favorável ao acusado (in dubio pro reo).
Outro ponto importante é o bem jurídico tutelado. A quadrilha ou bando estão entre os crimes contra a paz pública, conceito muito vago e passível de manipulação a favor de quem interpreta o caso concreto. Nem mesmo a Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal define a paz pública e a extensão do perigo causado pelos comportamentos criminalizados. Hungria afirmava que paz pública é “o sentimento coletivo de paz que a ordem jurídica assegura”. Diz, ainda, que os crimes ali previstos buscam evitar uma situação de “alarma no seio da coletividade, isto é, a quebra do sentimento geral de tranquilidade” (HUNGRIA, 1958). Esse sentimento coletivo de tranquilidade corre um grande risco, segundo o legislador, quando um grupo de três ou mais pessoas se reúne com o fim de praticar crimes. Quer dizer, é crime ter o dolo de praticar crimes em associação (leia-se, em caráter duradouro), mesmo que tais crimes pretendidos nunca sejam praticados.
Deve-se discutir com maior profundidade o conceito e a extensão dos bens jurídicos difusos, especialmente aqueles relacionados a um sentimento coletivo. Inquestionável a existência de certo receio de parte da população ao saber que existem associações de pessoas que pretendem praticar crimes. No entanto, considerar a associação por si só um crime autônomo é duvidoso. A mera associação está mais próxima de um ato preparatório – que pode influenciar na pena, caso o crime pretendido seja praticado – que de um ato criminoso independente. A proteção de sentimentos coletivos não deve ser ignorada, porém, o uso da lei penal deve ser o mais restrito possível para essa tarefa.
Muito comum doutrina e jurisprudência defenderem a legitimidade do tipo penal sem maiores considerações. O crime de associação criminosa, por ser de perigo abstrato, basta-se. Neste ilícito nota-se a “impaciência do legislador ao incriminar fato que consistiria apenas ato preparatório de crimes” (MIRABETE, 2010). A falta de críticas construtivas leva a opiniões que induzem a atos autoritários, como, por exemplo, a possibilidade de prisão em flagrante a qualquer momento, enquanto durar a associação, até que esta se desfaça, por ser crime permanente (CAPEZ, 2007). Nesse sentido, a desconfiança sobre determinada pessoa fazer parte de uma associação criminosa autorizaria, sob este argumento, a prisão em flagrante a critério da autoridade policial, mesmo que a pessoa presa estivesse parada, quieta e sem armas. Um entendimento que remete ao Direito Penal do autor e se afasta do Direito Penal do fato.
O crime de associação criminosa está repleto de problemas de ordem material e processual. A prova de sua consumação e do dolo específico, a extensão do conceito de paz pública e a duvidosa tutela de sentimentos coletivos demandam maiores reflexões sobre a legitimidade do crime. Ademais, as questões processuais também exigem cuidados nas decisões, principalmente quando implicar privação de liberdade antes de um processo com o devido processo legal. Sempre é bom lembrar que arbitrariedades não combinam com o Estado democrático de Direito, nem resolvem os problemas de criminalidade.
Referências bibliográficas:
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, vol. 03. São Paulo: Saraiva. 2007.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. IX. Rio de Janeiro: Forense. 1958.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva. 2014.
MIRABETE, Julio Fabbrini; FABRRINI, Renato N. Manual de Direito Penal, vol. III. São Paulo: Atlas. 2010.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Os limites da imputação do crime de formação de quadrilha ou bando. Boletim IBCCRIM, n. 242, janeiro 2013.
Originalmente publicado no portal Justificando.
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