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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O crime de associação criminosa, a paz pública e o Direito Penal

Publicado por João Paulo Orsini Martinelli

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Notícias recentes sobre a prisão cautelar de pessoas envolvidas em manifestações públicas levantam algumas questões sobre o crime de associação criminosa (anteriormente denominado quadrilha ou bando), especialmente sobre sua legitimidade e a fundamentação das decisões judiciais. O presente artigo não entrará no mérito das decisões que ordenaram as prisões cautelares – sob aparente falta de fundamentação – e sim tentará levantar as dificuldades de sustentar os mandados mediante a necessidade dos indícios do crime e do perigo ao bem jurídico tutelado.
Segundo o art. 288 do Código Penal, constitui infração penal “associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. Associar significa reunir com intenção de permanência, ou seja, não é uma mera reunião temporária. Tradicionalmente, a doutrina faz a distinção entre a associação criminosa, com caráter de longevidade, e o concurso de pessoas destinado a fato determinado. Essa diferenciação traz um dos problemas do crime, pois a prova do dolo de permanência é muito difícil. No Direito Penal da responsabilidade subjetiva, deve-se provar o intuito dos agentes em se reunirem – e não apenas se juntarem eventualmente – para o fim específico de cometer crimes. O STF, no julgamento da AP 470, confirmou a necessidade de que a “affectio societatis deveria ser qualificada pela intenção específica de delinquir ou o dolo de participar de associação criminosa e autônoma para praticar crimes indeterminados” (Informativo STF 737).
Ademais, a associação criminosa não se confunde com organização criminosa. Conforme explica SILVEIRA, esta “construção tem lastro em aspectos criminológicos. (…) Ao simplesmente misturar conceitos criminológicos e dogmáticos, sem pretender idealmente defini-los, aclara-se a confusão e dificuldade de esclarecimento” (2013). A distinção já era visível na revogada Lei 9.034/1995, que regulamentava a investigação de “ações praticadas por quadrilha ou bando ouorganizações ou associações criminosas de qualquer tipo”. Mesmo com as definições de organização criminosa previstas nas Leis 12.694/2012 e 12.850/2013 as dificuldades de conceituar associação criminosa persistem. Basicamente, a legislação atribui três características às organizações criminosas: relação de subordinação hierárquica, a divisão de tarefas e a finalidade de lucro ilícito. Há, portanto, uma estrutura semelhante à de uma empresa que funciona visando certa produção para atingir o lucro. Em relação à associação criminosa, não há qualquer referência quanto à sua estrutura, o que dificulta ainda mais a prova de sua existência.
Adiciona-se a esse empecilho os requisitos para a decretação da prisão preventiva. Por ser uma medida cautelar, a prisão preventiva requer indícios da prática de um crime (fumus comissi delicti) e o perigo de o acusado permanecer em liberdade durante o processo (periculum libertatis) (LOPES JR., 2014). Esses requisitos devem ser devidamente demonstrados na decisão que autoriza a prisão preventiva, pois os acusados ainda gozam de presunção de inocência. E daí surge o dilema: se após o devido processo legal, com contraditório, ampla defesa e produção de provas, há grandes dificuldades em demonstrar a existência de uma associação criminosa, muito mais difícil é levantar indícios do crime em fase preliminar, sem provas concretas, especialmente porque o crime pretendido não precisa ser praticado. Além disso, na dúvida entre a associação criminosa (crime autônomo) e o eventual concurso de pessoas, deve prevalecer o entendimento mais favorável ao acusado (in dubio pro reo).
Outro ponto importante é o bem jurídico tutelado. A quadrilha ou bando estão entre os crimes contra a paz pública, conceito muito vago e passível de manipulação a favor de quem interpreta o caso concreto. Nem mesmo a Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal define a paz pública e a extensão do perigo causado pelos comportamentos criminalizados. Hungria afirmava que paz pública é “o sentimento coletivo de paz que a ordem jurídica assegura”. Diz, ainda, que os crimes ali previstos buscam evitar uma situação de “alarma no seio da coletividade, isto é, a quebra do sentimento geral de tranquilidade” (HUNGRIA, 1958). Esse sentimento coletivo de tranquilidade corre um grande risco, segundo o legislador, quando um grupo de três ou mais pessoas se reúne com o fim de praticar crimes. Quer dizer, é crime ter o dolo de praticar crimes em associação (leia-se, em caráter duradouro), mesmo que tais crimes pretendidos nunca sejam praticados.
Deve-se discutir com maior profundidade o conceito e a extensão dos bens jurídicos difusos, especialmente aqueles relacionados a um sentimento coletivo. Inquestionável a existência de certo receio de parte da população ao saber que existem associações de pessoas que pretendem praticar crimes. No entanto, considerar a associação por si só um crime autônomo é duvidoso. A mera associação está mais próxima de um ato preparatório – que pode influenciar na pena, caso o crime pretendido seja praticado – que de um ato criminoso independente. A proteção de sentimentos coletivos não deve ser ignorada, porém, o uso da lei penal deve ser o mais restrito possível para essa tarefa.
Muito comum doutrina e jurisprudência defenderem a legitimidade do tipo penal sem maiores considerações. O crime de associação criminosa, por ser de perigo abstrato, basta-se. Neste ilícito nota-se a “impaciência do legislador ao incriminar fato que consistiria apenas ato preparatório de crimes” (MIRABETE, 2010). A falta de críticas construtivas leva a opiniões que induzem a atos autoritários, como, por exemplo, a possibilidade de prisão em flagrante a qualquer momento, enquanto durar a associação, até que esta se desfaça, por ser crime permanente (CAPEZ, 2007). Nesse sentido, a desconfiança sobre determinada pessoa fazer parte de uma associação criminosa autorizaria, sob este argumento, a prisão em flagrante a critério da autoridade policial, mesmo que a pessoa presa estivesse parada, quieta e sem armas. Um entendimento que remete ao Direito Penal do autor e se afasta do Direito Penal do fato.
O crime de associação criminosa está repleto de problemas de ordem material e processual. A prova de sua consumação e do dolo específico, a extensão do conceito de paz pública e a duvidosa tutela de sentimentos coletivos demandam maiores reflexões sobre a legitimidade do crime. Ademais, as questões processuais também exigem cuidados nas decisões, principalmente quando implicar privação de liberdade antes de um processo com o devido processo legal. Sempre é bom lembrar que arbitrariedades não combinam com o Estado democrático de Direito, nem resolvem os problemas de criminalidade.
Referências bibliográficas:
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, vol. 03. São Paulo: Saraiva. 2007.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. IX. Rio de Janeiro: Forense. 1958.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva. 2014.
MIRABETE, Julio Fabbrini; FABRRINI, Renato N. Manual de Direito Penal, vol. III. São Paulo: Atlas. 2010.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Os limites da imputação do crime de formação de quadrilha ou bando. Boletim IBCCRIM, n. 242, janeiro 2013.

Originalmente publicado no portal Justificando.
João Paulo Orsini Martinelli
Professor de Direito Penal na Universidade Federal Fluminense (graduação/pós-graduação). Pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP. Especializado em Direito Penal Internacional pelo International Institut...

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