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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

A INFLUÊNCIA ESCRAVISTA NA REGULAMENTAÇÃO DISCIPLINAR


A escravidão negra influenciou enormemente na regulamentação disciplinar em nossas Forças Armadas, especificamente no Exército, devido a constante interação social com os escravos. Sobreleva ressaltar que não se trata de segregação as referências à raça negra; tão merecedora de respeito, como as demais. Todavia, aos “castigos” que eram impostos aos escravos, a título de disciplina, os quais eram públicos conforme dispunha o Código Penal de 1830. (grifo nosso)
É notório que os senhores de engenho, para manter a obediência e a disciplina supostamente devida pelos escravos negros, se utilizavam, como costumavam dizer, dos três “pês”: pau, pão e pano. Cabendo-lhes, também, julgá-los, quando acusados de transgressão disciplinar. Ouvindo testemunhas normalmente forjadas pelos feitores, decidiam o castigo que seria imposto aos indefesos escravos. Nessa circunstância, era indispensável o “pau”, materializado na palmatória, no vira-mundo, na gargalheira, no tronco e no bacalhau – chicote de couro cru. Para a conduta transgressional considerada leves, impunha a palmatória; para as mais graves, desde a multidão, até mesmo a morte.
Ao mercenário Conde de Lippe, contratado por Portugal em 1762, coube a reorganização e preparação do exército português nos moldes prussiano. E por ordem de D. José I, criou e instituiu em 1763, o “Regulamento para o exercício, e disciplina dos regimentos de infantaria dos exércitos”.
Artigos de guerra inspirados na legislação castrense alemã, que pelo expressivo medievalismo impunha aos transgressores da disciplina militar severas punições, dentre as quais a pena de morte, o arcabuzamento e a expulsão com infâmia, sanção que ultrapassava a pessoa do punido, refletindo nas futuras gerações da sua linhagem familiar. Já “no período colonial no Brasil, os excessos praticados contra os soldados chegaram a constituir óbice para o recrutamento, pois os militares eram submetidos a penalidades severas, castigos corporais, verdadeiros suplícios que levaram os de baixa patente a um estado próximo ao da escravidão”.36 Esse regulamento era assaz desumano, a ponto de em 1776, o furriel Manoel Luís, ascendente do Marechal-de-Exército Manuel Luís Osório, patrono da arma de cavalaria, insubordina-se devido a ato disciplinar perverso imposto a um soldado, por ordem de seu superior hierárquico. Ao assumir o Ministério da Guerra em 1861, o próprio Duque de Caxias reconheceu o desvirtuamento da disciplina, pois “coibiu os processos arbitrários de castigar os soldados (...)”37 previsto naquele regulamento draconiano. Embora os
castigos físicos fossem abolidos pela Lei nº 2.556, de 26 de setembro de 1874, na prática era simples “mentira legal”. Sendo posteriormente revogado pela vigência do primeiro Regulamento Disciplinar do Exército, através do Decreto nº 5.884, de 8 de março de 1875. Estranhamente, o Decreto nº 328, da lavra de RUI BARBOSA, instituindo a Companhia Correicional, previa para as faltas leves, prisão e ferro na solitária a pão e água; nas graves, 25 chibatadas. Medidas punitivas destinadas exclusivamente ás praças de má conduta habitual, à evidência da parcialidade que sempre motivou a regulamentação disciplinar no seio das Forças Armadas.
O Militarismo era simples segmento daquela sociedade escravocrata e cavilosa, donde se constituía a maioria da oficialidade do exército imperial, “cujos postos superiores eram reservados aos nobres”.38 Na realidade, a origem da oficialidade do Exército é de duas classes sociais antagônicas entre si: os científicos e os tarimbeiros. Aqueles, saídos da alta aristocracia: estes, filhos de militares, funcionários civis e pequenos proprietários de terra. Os científicos atingiam precocemente o generalato e nalguns casos, como o do Duque de Saldanha, aos 28 anos de idade. Alguns de forma inusitada, como a promoção do científico Benjamin Constant Botelho de Magalhães ao posto de General-de-Brigada, ocorrida durante um comício político
(Noticiário do Exército – Especial de 08 Fev 89, p 04). Já os tarimbeiros, atingiam no máximo o posto de capitão, e somente por ato de notória bravura podiam galgar outros postos. O Coronel do Exército CLÁUDIO MOREIRA BENTO, mostra-nos o exato entendimento dessa divisão repleta de ressentimentos acumulados no fragor da Questão Militar:
“Segundo Edmundo Campos Coelho, os científicos defendiam a tese do cidadão soldado ‘com direito de livre manifestação e de pensamento e crítica, e uma disciplina militar inteligente e pensante’. Os tarimbeiros eram orgulhosos, cultivavam seus feitos militares e ostentavam, orgulhosos, suas medalhas conquistadas em defesa do Brasil. Os científicos, sob influência da religião da humanidade, segundo Tasso Fragoso, aluno das escolas Militar da Praia Vermelha e Superior de Guerra, até a proclamação, questionavam as glórias do passado militar do Brasil e debochavam dos veteranos da Guerra do Paraguai ‘que desfilavam com o peito coberto de medalhas’. O científico Visconde de Taunay registra que, quando um civil queria humilha-lo, o
chamava por Major e, se queria prestigia-lo, o chamava de doutor. Benjamin Constant, líder dos científicos, que gozava de certo prestígio na sociedade, preferia ser chamado de doutor a tenente coronel.”39
Embora essas divergências aparentemente significassem uma tendência na reformulação dos conceitos de disciplina militar preestabelecidos, em verdade ocultavam interesses menores, pois as praças de pré jamais foram vistas senão como “lacaicos” e “janízaros”, objeto de severos castigos físicos pelos impiedosos verdugos militares. Isso explica a semelhança entre as punições disciplinares e os castigos impostos aos escravos. Segundo o abatizado GORDON WILLARD ALLPORT, “a cultura é muito importante na formação da personalidade (...). O impacto da cultura é tão indiscutível que alguns autores a consideram o
fator decisivo”.40 (destacou-se)
Inegavelmente, todas as atrocidades aplicadas na disciplina dos escravos influenciaram sobremaneira na regulamentação disciplinar em nossas Forças Singulares da época. Ainda hoje, persistem essas mazelas; porquanto, “os costumes e valores de um povo não se formam da noite para o dia, mas constituem a estratificação lenta de sua vida pretérita.
O hoje nada mais é do que o somatório do passado (...)”.41 As legiões romanas também não ficaram isentas do sistema cultural escravagista da época. A sentinela que abondonava o seu posto ou desertava, era-lhe aplicada a pena capital, sanção igual à imposta aos escravos. (destacou-se).
Durante a Guerra do Paraguai, devido à escassez de soldado, foram criados os corpos de “voluntários da pátria”, formados basicamente pela burguesia, tomada de aparente sentimento pátrio, já que, em sua maioria, se eximia do direito-dever de defender a Pátria, oferecendo até dez escravos em substituição, que, segundo Duque de Caxias, eram “escravos de má conduta que os senhores se queriam ver livres deles (...)”.42 Daí, a inevitável interação social mais estreita entre os militares e os escravos. Embora dessa convivência tenha surgido pontos positivos, como as idéias abolicionistas, não obstante, por comandarem escravos, travestidos de cidadãos-militares, as punições disciplinares eram extremamente severas. Em despacho privado de 18 de novembro de 1867, destinado ao imperador D. Pedro II, Duque de Caxias, atestando o fato, assim descreveu:
“Nossas topas, virtualmente opostas à milícia e à carreira militar, em face aos sofrimentos, disciplina e perigo que lhes são inerentes (...).”
Ao término da Guerra do Paraguai em 1870, os bravos escravos foram libertos do jugo desumano dos escravocratas, recebendo a merecida “carta de alforria”, que no anedotário militar é a atual “guia de licença”, prevista apenas Às praças – os escravos – e prescindível aos oficiais – os nobres. Entretanto, mesmo alforriados, se mantiveram escravos da miséria social. De conseguinte, impende enfatizar que no esforço de guerra e “a fim de conseguir o maior número possível de voluntários, o Governo Imperial, a par das vantagens oferecidas aqueles que se apresentassem espontaneamente, prometia ainda aos que se distinguissem no curso da campanha o direito de serem declarados oficiais honorários do Exército Nacional” (art. 12, do Dec. nº 3.371, de 7 de janeiro de 1865).43 Malgrado, nenhum escravo negro foi declarado oficial honorário do Exército, honra destinada exclusivamente à nobreza, pressupondo que aqueles heróis anônimos, despojados de interesses escusos, em nada se destinguiram no curso da campanha . Evidentemente, jamais um nenhum negro alforriado seria “oficial”, senão pela ficção do absurdo ou nas calendas gregas. Ao depois, o Exército era desviado de sua destinação constitucional e empregado na captura de escravos fugitivos. Os oficiais, reduzidos a simples capitães-de-mato, protestaram pela vil
missão. Nessas capturas, eram utilizados instrumentos punitivos desumanos, como o vira-mundo e a gargalheira.
Ora, essa relação humana entre militares e escravo influenciou na formação de suas personalidades, retratada na elaboração do primeiro Regulamento Disciplinar do Exército, aprovado em 1875. Ainda hoje, existe algumas mazelas daquele sistema cultural. O atual regulamento, instituído em 1984, é o único dentre as Forças Singulares a não assegurar o “direito de defesa”, pois os superiores hierárquicos, em afrontoso desrespeito ao artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal vigente, pune sumariamente o militar supostamente transgressão, estribado unicamente na palavra probante do oficial comandante de companhia. Um retrospecto histórico à escravidão negra, que não os ouviam e se baseavam apenas nas palavras dos
feitores, demonstra o influxo daquela época, ainda nos dias atuais, onde vige o Estado Democrático de Direito. As palavras de JOHN DEWEY, comprovam a realidade desse comportamento derivante:
“Honestidade, caridade, malícia, mau humor, coragem, vulgaridade, esforço e irresponsabilidade não são posses particulares de uma pessoa. São adaptações ativas de capacidades pessoais a forças ambientais (...). Nada existe de pessoal que não seja, ao mesmo tempo, um reflexo de ambientes físicos, sociais e culturais.”44
Exemplo irrefutável do ranço da escravidão negra na regulamentação disciplinar, temos na “Revolta da Chibata”. É sabido que o Código Penal de 1830 previa que os açoites destinados aos escravo transgressores deviam ser aplicados em praça pública. Daí, temos a origem daquela sanção disciplinar imposta aos marinheiros. Não mais se conformando com as perversidades de que eram vítimas em nome de uma disciplina militar malsã, os marinheiros, comandados por João Cândido, se amotinaram no porto do Rio de Janeiro, a bordo dos navios “Minas Gerais”, “Deodoro” , “São Paulo” e “Bahia”, de 22 para 23 de novembro de 1910, reivindicando a extinção do “castigo da chibata”, que foi aceito pelo Marechal Hermes da Fonseca, então Presidente da República, que igualmente os anistiou. Em conseqüência desse movimento, foi elaborado pelo saudoso jurista CLÓVIS BEVILÁCQUA, o Código Disciplinar para a Armada Nacional. Se as ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas sofreram remarcada influência da Igreja Católica, dúvidas não restam que a disciplina militar adotada nas Forças Armadas seja produto social da escravidão negra. (grifo nosso)
Até mesmo as características da arquitetura brasileira correspondem às causas-grandes da época da escravidão negra. Nessa esteira, o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, esclarece:
“O brasileiro raramente se dá conta disso, mas a herança da escravidão aind se apresenta aqui por todo o lado.”45
De cresto, a disciplina militar presente deve ser caracterizada pelo respeito mútuo, e não somente pela obediência devida. Que os princípios emanados da Educação Militar, como se depreende do artigo 3º, do Regulamento Disciplinar do Exército, sejam exercitados e sem distinção para florescências futuras. O subordinado é, sobretudo, um cidadão-militar.

(36) MARTINS, Eliezer Pereira. “O militar vítima do abuso de autoridade”. 2ª ed. Leme, Editora de Direito, 1996, p.24.

(37) Id. Ibid., p. 41.

(38) CHIAVENATO, Júlio José. Genocídio americano: A Guerra do Paraguai. 27ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.

(39) BENTO, Cláudio Moreira. “Controvérsias sobre a proclamação da República”. Ver. A Defesa Nacional, Rio de Janeiro, 1990, p. 26-27
(40) ALLPORT, Gordon Willard. “Personalidade: Padrões e desenvolvimento”. Trd. Dante Moreira Leite, 4ª reimp., São Paulo, EPU, 1973, p. 213.

(41) SILVA, Alberto José T.V. da. “A pena de morte e a codificação penal brasileira”. R. Trib. Reg. Fed. 1ª Reg., Brasília, vol. 5, nº 2, jul/dez., 1993, p.23.

(42) HERMES, Mário Jorge da Fonseca. “Os militares e os políticos no império”. Ver. A Defesa Nacional, Rio de Janeiro, 1990, p. 96.

(43) DUARTE, Paulo de Queiroz. “Os voluntários da pátria na Guerra do Paraguai”. Rio de Janeiro, Bibliex, V. II, t. II, 1983, p.39.

(44) ALLPORT, Gordon Willard. Op. Cit., p. 226.

(45) TOLEDO, Roberto Pompeu de. “Casa-grande e beira do fogão”. Revista Veja, São Paulo, 1403ª ed., nº 31, ago/1995, p.142.


APRAFA – ASSOCIAÇÃO DE PRAÇAS DAS FORÇAS ARMADAS
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