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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

SURGIMENTO DO REGULAMENTO DISCIPLINAR MILITAR NO BRASIL

O regulamento disciplinar militar ocupa a função, no ordenamento jurídico, de ordenar as condutas dos militares prejudiciais aos fundamentos da hierarquia e disciplina sem que estas condutas alcance status de crime militar, os quais estão obrigatoriamente tipificados no Código Penal Militar, ou seja, os regulamentos disciplinares militares preveem as condutas tidas como transgressão disciplinar, cominando-lhes penas que vai de advertência, passando pela detenção, prisão até a pena mais grave que é a exclusão a bem da disciplina, bem como estabelece regras para o desenvolvimento do processo disciplinar militar e a correta aplicação da pena.
Até 1865 o Brasil adotou o Regulamento disciplinar de Portugal, o qual fora criado pelo inglês Schaumburg-Lippe durante o período  que redigiu “artigos de guerra” os quais foram transladados para o Brasil, vigorando por muito tempo.
Marcelo Weitzel Rabello de Souza[1] em sua tese de mestrado relata que em 1762 Marquês de Pombal nomeou Schaumburg-Lippe, também conhecido como Conde de Lippe, ao posto de Marechal General dos Exércitos de Portugal, dando-lhe o cargo de governo das armas de todas as tropas de infantaria, cavallaria, dragões e artilharia, além de diretor geral de todas elas. Durante esse tempo Conde de Lippe escreveu os Regulamentos para Infantaria, Cavalaria e os chamados Artigos de Guerra os quais foram aplicados em Portugal e no Brasil até a entrada em vigor dos Códigos afetos a área criminal militar.
O regimento de Lippe regulava várias áreas da atividade militar, além da questão disciplinar.: O regimento tratava entre outros assuntos da formação e educação dos militares, composição do exércitos e das companhias, manuseio do armamento, regulamentação das condutas das autoridades, organização para os dias de festas, dos pagamentos,  da carreira militar, do aspecto moral e religioso, da saúde dos militares, etc. Transcrevemos parte um fragmento do estudo de Marcelo W. de Souza[2]. Vejamos:

“Seu Regimento que continha vinte e sete capítulos inicia-se determinando a quantidade e composição de cada companhia. Em capítulos seguintes (II a VI), preocupa-se com formação do exército português e dedica-se a detalhadas explicações quanto a orientação dos exercícios envolvendo a formação das tropas em diversas situações e manuseio do armamento. No capítulo VIII, informava o proceder e a autoridade contida no sentinela, circunstância ao qual retornou nos Capítulos XX e XXI. Registrava nos Capítulos IX, XIV e XXV, a organização para os dias de festas e pagamento. A carreira, o aspecto moral e religioso que deveria dirigir sempre a vida do militar, a saúde e segurança do Soldado, ao ponto de inscrever no seu Regimento um capítulo referente a ―Escolha dos Cirurgiões e do cuidado, que deve haver dos Soldados enfermos.‖. A responsabilidade que deveria haver não apenas sobre o Soldado, mas sobre todos que compunham a Cadeia de Comando, conforme nos demais capítulos. Em tudo o Regulamento distribuindo responsabilidades e obrigações.
Já no primeiro capítulo, no item 14, afirma: ―Todos os Soldados serão medidos exactamente fem çapatos todos os annos: e o Coronel não confentirá que no feu Regimento haja nem hum fó Soldado, que não tenha de altura feffenta e duas pollegadas.‖ Essa preocupação não era isolada, pois nos itens seguintes instrui a formação e distribuição da tropa por altura dos integrantes, onde cada um saberia sempre exatamente o seu lugar na formação seja em que situação adversa se vingasse.
Compenetrado com o aspecto dos militares, e sua repercussão junto ao moral da tropa e o relacionamento com os civis, escreveu diversas passagens sobre o asseio, a aparência e postura dos militares, como por exemplo, páginas 8 e 9, item 28, do prefalado Regimento quando ―(...)O Capitão mandará metter as varetas as efpingardas, e as baionetas nas bocas das armas, e examinará com os Officiais, fe as armas, as munições, e todas as fuas pertenças eftão em bom eftado, e fe os Soldados eftão bem veftidos, penteados, &c.‖”.

Todavia, é pela severidade das penas impostas que Conde de Lippe é lembrado. Era comum além das prisões os castigos corporais com açoites, chicotas, pranchadas, e até mesmo a pena de morte. Vejamos algumas das tipificações das transgressões e a cominação de sua pena, baseando no trabalho acadêmico de Marcelo Weitzel Rabello de Souza:
“Qualquer Soldado, que desamparar a sua guarda sem licença, será logo prezo, e no outro dia castigado com cinquenta pancadas com a espada de prancha[3]”.

“Todo o Soldado, que logo que se tocar a rebate, não estiver no lugar indicado para a Assembleia da sua Companhia, será prezo, e no outro dia castigado com cinquenta  pancadas de espada de prancha”

“Proíbe-se aos Oficiais, e Oficiais inferiores, o altercarem razões com os Soldados, que estiverem bêbados, e muito menos dar-lhes pancadas no tempo de sua bebedice; porque talvez (por conta dela) se lhe atreverão de maneira, que sejam condenados em pena capital. Quando suceder que hum Soldado naquele estado cometa algumas faltas, no dia seguinte, quando estiver em jejum, se punirá com dobrado castigo pelas faltas cometidas no dia antecedente”.‖

Há de argumentar ainda que, desde aquela época os já estavam sujeitos a uma pena menos severa por suas condutas. Vejamos a transgressão, porém cometida por um oficial:

“Todo o Oficial, que se ausentar do seu posto por tempo de meia hora, será prezo em uma Praça de guerra, e o seu soldo se dará á Caixa dos Inválidos”.

A discriminação entre praças e oficiais era tão grande que a pena do oficial negligente era ser tratado como soldado. Vejamos:

A qualquer Oficial Inferior, negligente em suas revistas, incapaz de com exatidão dar a parte do ocorrido servirá, e será pago por tempo de três meses como simples soldado[4].‖

Sobre as formas de punição Marcelo Weitzel Rabello de Souza[5] relata que os delitos maiores, entre eles, o motim, o homicídio, a traição tinham como sanção a pena de morte pelas armas, por enforcamento ou outra morte mais severa, os delitos graves se punia com trabalho forçados por meses ou ano. Vejamos

Os delitos maiores, e sobre tudo, o Motim, o Homicídio premeditado, e a Traição há de ter pena de morte. O Réu  passará pelas armas, será enforcado, ou padecerá morte mais severa nos casos extraordinariamente atrozes, conforme julgar o Conselho de Guerra, em consequência dos Artigos Militares. Os delitos graves, que não forem com tudo capitais,  se castigarão mandando-se trabalhar os Réus nas Fortificações por meses, ou por anos, conforme a gravidade do delito. Estes criminosos trabalharão com grilhão no pé, e na mão direita, e hum rótulo nas costas, que declare o seu delito.É de boa lembrança, que durante o cumprimento dos trabalhos, de acordo com o item segundo: ―(...) se conservarão em estreita prisão, e não receberão de pão, e paga mais que o precisamente necessitaria para sustentar a vida”.‖

Os crimes tidos como leves recebiam como sanção as pranchadas. Transcrevemos:
“E as culpas leves cometidas por descuido, ou inadvertência, serão castigadas com vinte, trinta, ou cinquenta pancadas, dadas com a espada de prancha; ou metido o Réu em prisão a pão, e agua: ou fazendo-lhe montar guarda sem lhe competir: ou carregando-o de armas, huma, ou muitas horas, os quais os castigos leves se darão sem Conselho de Guerra”.

Souza relata que em 1767, por pedido do Rei de Portugal, o Conde de Lippe chega ao Brasil Colônia com intuito de incluir os Artigos de Guerra no Regimento de Artilharia do Rio de Janeiro, a fim de padronizar a tropa brasileira a forma dos moldes europeus, impondo os mesmos treinamentos, formaturas, estudos, etc.
Na época o Brasil vivia a era do ouro, propiciando um grande êxodo para o interior do país principalmente para as regiões de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, motivo pelo qual atraiu a atenção de Portugal que buscou meio para melhor se aproveitar das riquezas e se proteger de futuras invasões, principalmente dos vizinhos espanhóis.
Os Regulamentos do Conde de Lippe perdurou integralmente até a independência do Brasil, sofrendo algumas atenuações até a entrada em vigor do Código Penal da Armada em 1891, todavia se tem notícia que as penas corporais no âmbito militar somente teve fim após a Revolta da Chibata em 1910.
Houve algumas tentativas de se desvincular dos regulamentos do Conde de Lippe. Em 1862 Duque de Caxias, o qual havia sido formado sob o Regulamento Disciplinar do Conde de Lippe, criou o Regulamento Correcional das Transgressões Disciplinares, porém se continuou a aplicação das penas nos antigos moldes. A história tradicional alega de Duque de Caxias preocupado com a violência dos castigos a pranchachos de espadas, mas não podendo aboli-los, por serem regulamentares, ordenou ao Arsenal de Guerra que fabricasse espadas especiais para tais castigos, segundo modelo que forneceu alegando:[6].
"Por mais apropriadas e menos prejudiciais à saúde do pasciente, para ao menos atenuar suas conseqüências, tanto quando possíveis, sem torná-lo ilusório, até que outras disposições substituam os regulamentos que os estabeleceram."

Todavia, nem mesmo Duque de Caxias com todo o prestígio e poder que gozava, conseguiu promover a revogação dos Regulamentos de Conde de Lippe, os quais perdurou integralmente até a independência do Brasil, sofrendo algumas atenuações até a entrada em vigor do Código Penal da Armada em 1891, todavia se tem notícia que as penas corporais no âmbito militar somente teve fim após a Revolta da Chibata em 1910.
A Constituição brasileira de 1824, outorgada por D. Pedro I, aboliu-se, juridicamente, as torturas, acoites e outras as penas cruéis, porém continuaram sendo aplicada as escravos fugitivos e ao militares transgressores.
Com efeito, mesmo após a abolição da escravatura em 1888, as praças[7] quando incidiam em transgressão disciplinar eram levadas ao “tronco” como forma de punição. Assim regia o código:

"Para as faltas leves, prisão a ferro na solitária, por um a cinco dias, a pão e água; faltas leves repetidas, idem, por seis dias, no mínimo; faltas graves, vinte e cinco chibatadas, no mínimo.”[8]

Neste sentido, o professor Eliezer Pereira Martins[9] assevera que do ponto de vista legal, as penas consistentes em castigos corporais aplicadas contra militares do Exercito foram abolidas pela lei nº 2556, de 26 de setembro de 1874, enquanto que na Armada pelo Decreto nº 3 de 1889, porém apenas do ponto de vista legal, visto que na prática tais excessos perduraram e continua o eminente professor:
Tanto é verdade que o Decreto nº 3 de 16 de novembro de 1889 não aboliu o acoite na Armada, que o decreto nº 328, criando a Companhia Correcional, subscrito pelo Marechal Deodoro da Fonseca e referendado por Rui Babosa dispunha: ‘... Considerando, ainda, que o castigo severo, abolido por ocasião do advento da República e aplicável, unicamente, às praças arroladas na referida Companhia, dentro de um limite restrito, é uma necessidade reconhecida e reclamada por todos os que exerciam autoridade sobre o marinheiro...”
As penas cruéis e de caráter corporal aplicadas aos militares de baixa patente continuaram sendo aplicada mesmo após a Proclamação da República (1889) e o fim da República da Espada (1894).
O primeiro grande marco da evolução das penas por transgressão disciplinar ocorreu com a deflagração da Revolta da Chibata (1910) a qual visava amenizar o sofrimento dos militares de baixa patente nos navios brasileiros, já que além das penas corporais que podiam chegar a 250 (duzentas e cinqüenta) chibatadas - como foi o caso do marinheiro Marcelino Rodrigues – os militares de baixa patentes trabalhavam em verdadeiro regime de escravidão, sem os devidos cuidados médicos, longa escala de serviço, alimentando, muitas vezes, de carnes podres ou cruas. Vejamos:
Marcada para dez dias depois da posse do Presidente Hermes da Fonseca ocorrida em 15 de Novembro de 1910, o que precipitou o ápice da revolta acabou sendo a punição aplicada ao marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes do Encouraçado Minas Gerais. Por ter trazido cachaça para bordo e, em seguida, ter ferido com uma navalha o cabo que o denunciou, foi punido, não com as vinte e cinco chibatadas máximas regulamentares, e sim com duzentos e cinquenta, na presença da tropa formada, ao som de tambores, num dia da semana seguinte à posse do presidente. O exagero dessa punição, considerada desumana, provocou uma indignação da tripulação muito superior à que já vinham sentindo durante a conspiração da revolta[10].
No dia 26 de novembro de 1910, o Predidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, aceitou as reivindicações dos marinheiros, declarando pôr fim, legalmente, aos castigos físicos e prometendo anistiar os revoltosos, promessa essa que não cumpriu, já que alguns marinheiros, sob a alegação de “inconvenientes à disciplina” foram expulsos da Marinha. 
O segundo grande marco, deu-se com o advento da Constituição Federal de 1988 a qual garantiu, entre outros princípios, a ampla defesa e o contraditório, o devido processo legal, a inafastabilidade do poder judiciário, a dignidade da pessoa humana, a isonomia material, etc.
Para o mencionado professor Eliesier, a evolução que teve o direito disciplinar militar brasileiro com advento da Constituição Federal de 1988 resume-se no abrandamento das espécies de sanções aplicadas aos militares, de castigos corporais a medidas restritivas da liberdade individual.
Com efeito, hoje pouca coisa mudou, uma praça pode ser condenada até trinta dias de prisão por estar com mero coturno sujo, por chegar atrasado, por criticar publicamente a política de governo, por contrair dívida, ou até mesmo por requerer seus direitos ao judiciário sem autorização, entre outros.[11]
Significa dizer que as praças ainda são formadas pela classe menos favorecida da população e são majoritariamente o sujeito passivo das penas impostas pelos oficiais por meio do Regulamento Disciplinar Militar, o qual, em regra, tem sido utilizado como meio de perseguições à satisfação pessoal do aplicador do Regulamento Disciplinar. Neste sentido, transcrevemos fragmento da monografia Liberdade de Expressão dos Policiais e Bombeiros Militares[12]:

“As ocupações nos cargos de praças continuam sendo por militares advindos da classe mais pobre da população, entrando no serviço militar como soldados. Já os oficiais, também em regra, são aqueles que tiveram a oportunidade de passar em concurso em que o nível educacional exigido só se é alcançável pela classe mais elitizada do país, sem contar que por muito tempo ficou ao encargo das instituições militares a elaboração dos concursos e recrutamento para o preenchimento dos cargos de oficiais, ocasionando diversas denúncias de fraudes e nepotismo. 
(...)
Há uma diferença gritante entre os direitos dos oficiais e a das praças, só a título de exemplo, um oficial apenas perderá sua patente após decisão judicial transitado em julgado, enquanto que para se exonerar uma praça faz-se necessário apenas processo administrativo. Os refeitórios, banheiros, alojamentos e outras dependências dos quartéis são divididos pela “hierarquia”, de um lado os oficiais do outro as praças. Existe todo um ritual quando a praça se dirige a um oficial, continências, apresentações, etc.”



BIBLIOGRAFIA
PAIN, Paulo. Pronunciamento sobre o a anistia do herói negro, João Cândido, disponível em http://www.senado.gov.br/paulopaim/pages/pronunciamentos /2008/15052008II.htm acessado em 15/02/09

MARTINS, Elieser Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e Sua Processualidade. São Paulo: Editora de Direito LTDA, 1996.

SILVA, Júlio César Lopes da Silva. Monografia: Liberdade de Expressão dos Policiais e Bombeiros Militares. Cuiabá-MT, 2009.

SOUZA, Marcelo Weitzel Rabello de.  Conde de Lippe (e seus Artigos de Guerra), quando passou por aqui, também chegou lá. Monografia (mestrado em História) 1999. Disponível em http://www.jusmilitaris.com.br /uploads/docs/mestrado.historia _do_direito_ii.pdf. Acesso em 20/09/2010



[1] SOUZA, Marcelo Weitzel Rabello de.  Conde de Lippe (e seus Artigos de Guerra), quando passou por aqui, também chegou lá. Disciplina História. 1999. Disponível em http://www.jusmilitaris.com.br/uploads/docs/mestrado.historia_do_direito_ii.pdf. Acesso em 20/09/2010
[2] Idem. pp 100
[3] Capítulo VIII, Artigo II, item 8 do Regulamento de Lippe – texto adequado para o português moderno pelo autor.
[4] SOUZA pp 109
[5] Idem pp 115

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