Busca do equilíbrio
Em um tribunal marcado pela excessiva tolerância com denúncias do Ministério Público Federal em grandes operações da Polícia Federal — recentemente derrubadas pelo Superior Tribunal de Justiça —, a desembargadora Maria Cecília Pereira de Mello destoa. Garantista convicta, defende posições nem sempre consensuais em uma corte considerada dura.
Entre outras controvérsias, ela é favorável à concessão de pena alternativa a estrangeiro condenado por tráfico no Brasil. A postura é polêmica, já que penas substitutivas, como a prestação de serviços, dependem de documentação regular no país, o que nem sempre o detido tem. “Eles podem cumprir pena alternativa nos países de origem, havendo ou não tratado entre os países. É só viabilizar a prestação de contas do cumprimento da pena via consulado, por exemplo. O que não se pode é suprimir garantias constitucionais discriminando o estrangeiro”, diz.
Cecília é autora de inúmeras decisões contra trapalhadas da Polícia Federal chanceladas pela Justiça em primeiro grau. No ano passado, considerou ilícitas provas colhidas em clientes do escritório de advocacia Oliveira Neves durante a operação Monte Éden, que em 2005 investigou esquema de evasão de divisas via off shores. Segundo a decisão, os mandados de busca e apreensão, que visavam informações de clientes do escritório não envolvidos na investigação, foram genéricos e não específicos, gerando invasões ilegais e provas ilícitas, uma vez que violadoram sigilo profissional dos advogados. Mais de 200 empresas receberam a visita dos policiais.
Foi também relatora de decisão da 2ª Turma do tribunal que declarou inepta denúncia do MPF contra funcionários da empresa Kroll, acusados de espionar inimigos de Daniel Dantas, ex-dono do banco Opportunity. A denúncia se baseou na operação Chacal, da Polícia Federal, deflagrada em 2004. Para a Turma, os equipamentos apreendidos que, segundo a investigação, serviriam para grampear ligações, foram classificados pela perícia judicial como detectores de grampos telefônicos e, portanto, não ligavam os acusados a crimes.
“Polícia, Ministério Público e Judiciário não podem cometer ilícitos ou irregularidades na investigação, que podem levar à anulação do processo e ao descrédito”, defende Cecília. Ela recebeu a ConJur em seu gabinete para conceder entrevista para o Anuário da Justiça Federal 2012, lançado nesta quarta-feira (29/2) no STJ. “O único que não pode cometer erros é o juiz.”
Seu apego à legalidade nas investigações a levou a libertar acusados presos na operação Castelo Areia, deflagrada contra um suposto esquema de desvio de verbas públicas envolvendo executivos da construtora Camargo Corrêa. A operação foi anulada pelo STJ no ano passado devido a irregularidades nas provas. Quando o processo chegou a suas mãos, Cecília Mello constatou que tanto o MPF quanto o juiz da causa, Fausto Martins De Sanctis — hoje desembargador —, omitiram a informação de que uma delação premiada fundamentava as acusações e era objeto de procedimento diverso não revelado aos réus, e que não existia uma denúncia anônima, como constava da peça acusatória ofertada pelo MPF e recebida pelo juiz. “A omissão manteve a defesa longe da real apuração e a jurisprudência é pacífica no sentido de que o réu tem o direito, para que possa se defender, de conhecer todos os termos de eventual delação premiada que contra ele possa existir. E mais: a denúncia ofertada pelo MPF deve revelar os fatos tais como realmente existam. Uma defesa só pode se basear em uma acusação real e concreta”.
Cecília também mostrou habilidade ao costurar um acordo entre a Caixa Econômica Federal e mutuários do Conjunto Habitacional Nova Poá, em Poá, na grande São Paulo. Mudanças no Sistema Financeiro de Habitação levaram a uma revisão de dívidas que desconsiderou valores já pagos pelos mutuários, multiplicando o saldo devedor. No ano passado, uma audiência de conciliação do interesse de aproximadamente três mil moradores terminou em acordo entre o MPF e a Caixa, pelo qual os mutuários tiveram direito a nova perícia para reavaliação dos imóveis e a descontos de até 43% do valor da dívida, com refinanciamento dos imóveis.
Empossada no tribunal pela porta do quinto constitucional da advocacia, Cecília Mello fez carreira na Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo. Ainda na faculdade, estagiou no escritório Pinheiro Neto Advogados. Foi o segundo emprego na área. Antes, passou pelo escritório França Ribeiro e Almeida Advogados, em São Paulo. No Pinheiro Neto, ficou por pouco tempo. Saiu antes de terminar o curso na PUC-SP, em 1984. Um ano depois, passou no último concurso público em que os procuradores paulistas poderiam advogar de maneira privada paralelamente à função pública. Em 2003, foi escolhida pelo presidente Lula na lista tríplice de indicados pela OAB para vaga de desembargador do TRF-3.
Segundo levantamento do Anuário da Justiça Federal 2012, que traz o perfil dos desembargadores dos cinco tribunais regionais federais do país, para Cecília Mello, o conceito de participação em “organização criminosa” é aplicável no Brasil mesmo sem que essa expressão esteja especificamente conceituada na lei penal, uma vez que o Código Penal prevê os delitos de quadrilha ou bando e associação para o tráfico. Em seus julgamentos, não aplica o princípio da insignificância nos crimes de moeda falsa e apropriação indébita, sendo que, neste último, concede perdão judicial quando os valores são pequenos. Segundo ela, antes de entrar com ação penal por crime tributário, o MPF precisa esperar o término do processo administrativo na Receita Federal se o contribuinte impugnar cobranças mesmo se informar em DCTF débitos não pagos. Porém, a impugnação deve tratar do valor principal da dívida, e não apenas de acréscimos, situação em que o devedor precisa depositar em juízo o valor do principal para não ser denunciado por sonegação.
Leia a entrevista
ConJur — A Polícia e o Ministério Público têm abusado do uso de escutas telefônicas como único meio de investigação?
Cecília Mello — Sim. Em caso recente que julguei, a investigação começou com base em uma denúncia anônima que fornecia nomes, endereços, horários, todo o necessário para se fazer uma diligência, mas nenhuma foi feita. Preferiram quebrar o sigilo telefônico. O que se argumentou é que nos delitos financeiros não há outra maneira a não ser quebrar o sigilo telefônico. Mas naquele caso era ridículo. A denúncia anônima dizia que o fulano saía tal hora, todos os dias, em determinado horário, e ia para o endereço tal, encontrava-se com beltrano e voltava. Era uma diligência tranquila de ser feita. Seria até possível ter-se chegado a uma quebra de sigilo, mas já havia elementos para se fazer uma investigação preliminar. De um modo geral, isso dá a impressão de que existe comodismo. É mais fácil quebrar o sigilo, mas essa quebra apenas se justifica quando não haja outra alternativa e a partir de uma investigação já iniciada e com indícios a determinar a quebra. Do contrário, direitos constitucionais deixam de ser respeitados .
ConJur — A lei prevê que, com a devida fundamentação, interceptações telefônicas podem ser renovadas para além dos primeiros 15 dias. Mas não fala em nova renovação depois de 30 dias. Esse prazo pode se estender indefinidamente?
Cecília Mello — Indefinidamente, não, mas pode haver contextos em que se precise da escuta por mais tempo. O importante é a fundamentação, até onde já se chegou e por que ir adiante. Se uma escuta não levou a nenhuma informação e é prorrogada, se novamente nada foi descoberto, chega de escutar. É preciso fundamentar a prorrogação, não dizer simplesmente que é necessário ou que no tempo concedido nada se apurou.
ConJur — Recentemente, o STJ derrubou grandes operações da Polícia Federal que foram consideradas legais pelo TRF-3. Que conclusões é possível tirar disso?
Cecília Mello — No caso da operação Castelo de Areia, foi uma questão procedimental. O juiz não informou sequer a mim sobre a existência de uma denuncia anônima. Eu não vi, o réu também não e os advogados também não. Quando o Ministério Público Federal faz uma denúncia dizendo que a investigação se baseou em denúncia anônima e o juiz confirma essa informação, mas na verdade existe uma delação premiada, é impossível a aferição da irregularidade pelo Tribunal e o exercício do pleno direito de defesa. Qual é a credibilidade do Judiciário e das instituições nessa situação? Nenhuma. Nesse caso específico, ordenei que se desse acesso às partes à delação premiada existente em desfavor dos réus. Além dessas houve a Satiagraha, a Têmis e a Anaconda, que eu não julguei. Na minha opinião, polícia, Ministério Público e Judiciário não podem cometer ilícitos ou irregularidades na investigação, pois essa conduta pode levar à anulação do processo e ao descrédito das instituições. O único que não pode cometer erros é o juiz. Nem que tenha o apoio do Ministério Público e da polícia, ele não pode consentir com uma irregularidade.
ConJur — O TRF-3 deveria ter sido mais rigoroso com as falhas?
Cecília Mello — Existe um número elevado de denúncias ineptas recebidas, e essa postura é péssima. Quando você detecta um vício formal ou de justa causa em uma denúncia, o correto é eliminar isso rapidamente, porque, dessa forma, dá-se a chance ao Ministério Público de corrigir, se há mesmo uma ilegalidade a ser apurada. Se você tenta "salvar" uma denúncia, esse processo vai tramitar e essa denúncia vai acabar sendo anulada. Os advogados trabalham na defesa do cliente, jogam com a questão do tempo e da prescrição, até mesmo como manobra. Quem me assegura que os advogados não sabiam de uma denúncia anônima que está oculta? Por causa de erros como esse, jamais se vai apreciar o mérito da acusação. A discussão ficará na questão formal. A sociedade, que está de fora, não consegue entender isso, e com razão. Por isso, sou “antissalvamento” de denúncia. Com erros, ela vai acabar sendo anulada, só que vai levar três, quatro ou cinco anos para isso acontecer, quando não haverá mais tempo hábil para se começar o processo de novo. Não é sequer possível saber se o acusado deveria ser punido. É uma péssima estratégia.
ConJur — O que as metas do Conselho Nacional de Justiça trouxeram ao Judiciário?
Cecília Mello — Existe um enraizamento de comportamento de longa data no Judiciário. As pessoas têm resistência em mudar o comportamento e os servidores também demonstram essa resistência. Mas, com a meta, não importa se há resistência ou não, é preciso mudar a postura, mudar de rumo. Em relação a mim, as metas não fizeram muita diferença. Cheguei ao tribunal pelo quinto constitucional. Era procuradora do estado e já tinha uma disponibilidade para modificações. Só que no Judiciário não se trabalha sozinho. Se a assessoria e os funcionários resistirem à mudança, ela não acontece. Por isso, o lado bom das metas é a mudança de mentalidade. O lado ruim é que, às vezes, as pessoas se entusiasmam demais e há risco de se ter decisões equivocadas ou superficiais. Não se pode ir além do que é possível. Sempre digo aos meus filhos que o grande lance da vida chama-se equilíbrio. Passamos a vida inteira buscando equilíbrio em tudo. Aqui também tem que haver equilíbrio. Esvaziar um gabinete não pode ser igual a correr riscos. Lidamos com pessoas. O que me incomoda não são 4,5 mil processos aqui dentro, mas saber que há 4,5 mil pessoas esperando uma decisão.
ConJur — A desembargadora julga mais processos do que recebe?
Cecília Mello — Não sou uma boa gestora de gabinete, mas também não sou péssima. Estou há oito anos no mesmo gabinete, e tenho menos processos do que quando entrei. Mas, se eu bobear, a entrada fica maior do que a saída. E isso me deixa em pânico.
ConJur — As decisões monocráticas, permitidas pelo artigo 557 do Código de Processo Civil, aceleraram os julgamentos?
Cecília Mello — Certa vez fiz um cálculo sobre a quantidade de decisões para se por fim a um recurso. Mesmo decidindo monocraticamente, principalmente em matérias repetitivas, são pelo menos cinco decisões para se baixar um processo, em média. É uma decisão monocrática, outra em embargos de declaração, um acórdão em agravo, e pelo menos mais duas em embargos de declaração. E isso sem contar as liminares.
ConJur — Quais são os principais erros dos advogados?
Cecília Mello — Não acho que o advogado tenha que escrever pouco, mas tem que ser objetivo. Há peças que são verdadeiros discursos políticos. Há memoriais e sustentações orais que acabam tendo uma conotação de palanque, de discurso político e que saem do foco técnico do julgamento. Perde-se o foco do caso que está sendo julgado.
ConJur — Como deve ser a sustentação oral?
Cecília Mello — Existem matérias que são de ordem pública, que, portanto podem ser conhecidas em qualquer tempo ou grau de jurisdição. Vamos supor que o advogado sustente da tribuna uma prescrição, uma nulidade insanável, algum vício irreparável. Muitas vezes é possível, na hora, verificar aquela arguição nova. Mas se não for uma questão de ordem pública, ninguém é obrigado a verificar, naquele momento, porque não foi suscitada no recurso. De um modo geral, para evitar embargos de declaração, se eu tiver condições de responder àquilo que é arguido na tribuna, respondo, inclusive acrescentando ao voto o que foi suscitado e que não foi objeto do recurso. Ao proferir o voto, faço oralmente as ponderações acerca daquela matéria. Mas, se eu não tiver condições, porque o processo é muito volumoso ou porque o que foi arguido não tem pertinência, vou esclarecer que aquela questão não foi objeto do recurso, que não existem condições para que aquilo seja verificado naquele momento e que o advogado se valha da via adequada para suscitar aquela questão.
ConJur — Em que situações isso ocorre?
Cecília Mello — Isso é muito comum em pedidos de Habeas Corpus. Pode acontecer quando alguém entra com pedido de Habeas Corpus por excesso de prazo, por exemplo e, no dia da sustentação, quer defender a aplicação das novas medidas cautelares. Evidentemente, é possível conhecer do pedido, só que é preciso ter todos os elementos necessários nos autos, elementos que, normalmente, um pedido de Habeas Corpus não tem. Mais do que isso, o juiz provavelmente não prestou informações a respeito do novo pedido e é ele que tem contato com o réu. Seria preciso obter informações complementares do juiz para ver se há algum óbice para a aplicação de uma das novas medidas cautelares. Então, o segundo pedido deveria ser objeto de outra impetração.
ConJur — O conceito de organização criminosa só existe na Convenção de Palermo, ratificada pelo Brasil. Não há definição, no entanto, na lei interna. É possível julgar com base na definição?
Cecília Mello — Sim. Temos definida a figura da quadrilha e a figura de associação para o tráfico, com as quais é possível fazer uma identificação. A quadrilha nada mais é do que uma organização criminosa com o objetivo de praticar um delito.
ConJur — A desembargadora já aplicava pena alternativa para condenados por tráfico antes mesmo de o Supremo Tribunal Federal se posicionar a favor da possibilidade. Por quê?
Cecília Mello — Quem tem filho sabe que um jovem de 18, 19 ou 20 não tem maturidade. A lei prevê, inclusive, uma cláusula especial de diminuição da pena para réus de 18 a 21 anos. Eles também serão vulneráveis dentro do sistema penitenciário, muito mais do que uma pessoa mais velha. Dentro do razoável, uma substituição de pena é muito melhor do que o ingresso no sistema.
ConJur — O sistema prisional não cumpre a função a que se destina?
Cecília Mello — Não. É até uma barbaridade. Em qual campanha política se ouve algum candidato fazer uma promessa em relação ao sistema prisional? Isso só traz votos quando começa a haver fugas, extravaza a delinquência de dentro pra fora, as grandes facções agem. Só então se começa a fazer presídios de segurança máxima. Mas a questão é de base. Os presos não permanecerão presos para o resto da vida e não morrerão lá dentro. É isso que as pessoas não conseguem entender. Se além da punição não houver um trabalho de reeducação, de reinserção, será catastrófico. Caminhamos para uma situação muito complicada. Os presos são tratados como animais. É uma coisa desumana para o preso e perigosa para sociedade, em razão do comportamento que esse preso terá quando sair da prisão.
ConJur — Estrangeiro pode ir para a prisão?
Cecília Mello — Pode. Ele não é diferente do nacional. Mas há uma dificuldade muito grande pelo fato de ele não ter assistência nenhuma, de família, de ninguém. Há presídios, como já revelou a imprensa, que restringem a entrada de sabonetes, detergente, sabão em pó, desinfetante, comida. Só que, se as famílias levam esses itens, quer dizer que eles não são fornecidos na cadeia. Não vejo solução a curto prazo. Mas, da mesma maneira que o fato de alguém ser estrangeiro não pode motivar uma substituição de pena, também não pode ser o fator impeditivo para a aplicação de uma medida cautelar ao invés da prisão ou mesmo de uma substituição de pena. Nem uma coisa, nem outra. Ele não pode ser prejudicado nem beneficiado por ser estrangeiro. Há algumas instituições que aceitam essas pessoas para dormir, para cumprir pena alternativa. Porque a questão é: onde eles vão ficar enquanto cumprem a pena alternativa? Por isso, penso que eles podem cumprir pena alternativa no país de origem, havendo ou não tratado de cooperação penal entre os países. Há precedentes nesse sentido. É só viabilizar a prestação de contas do cumprimento da pena via consulado, por exemplo. O tratado facilita essa tramitação, mas se houver um ajuste, nada impede que seja feito mesmo sem um tratado.
ConJur – O “mula”, sujeito sem antecedentes que é pego na fronteira portando drogas, faz parte da organização criminal?
Cecília Mello — De um modo geral, não. Quando ele executa essa atividade, nem sabe quem são os chefes ou integrantes dessa organização uma organização. A avaliação dessas questões somente pode ser precisa diante do contexto do caso concreto.
ConJur — Quem engole a droga pela primeira vez para passar pela fiscalização já pode ter afastado os atenuantes?
Cecília Mello — De forma alguma. Para mim, em principio, é o contrário. O que leva uma pessoa a colocar em risco a própria vida, ingerindo cápsulas de cocaina? Parece-me ser um grau extremo de necessidade. Quando alguém engole a droga, sua disfunção social é tão grande que se põe em grave risco de vida para ganhar dinheiro.
ConJur — O juiz pode converter prisão em flagrante em prisão preventiva ou liberar o detido sem ouvir o Ministério Público?
Cecília Mello — Pode, dependendo da questão emergencial que está no contexto. Ele poderá dar ciência ao MPF na sequência, até porque ele, Juiz, pode rever, soltar ou prender de novo. Nada impede que, à vista dos argumentos do Ministério Público, ele mude novamente o seu entendimento.
ConJur — É possível, interpretando-se o artigo 26 do Código Penal, dizer que o índio é inimputável?
Cecília Mello — O fato de ser indígena não significa ser inimputável. A inimputabilidade é aferida de outra forma, de acordo com a aculturação, compreensão dos valores médios e a inserção do indígena na sociedade. Mas é preciso entender que os indígenas podem ter características culturais e valores muito diferentes dos nossos, dependendo da comunidade que integram, qual o bem jurídico que está sendo defendido. Julguei recentemente o pronunciamento, para o Tribunal do Júri, de índios que mataram policiais porque acreditavam que eles eram capangas de fazendeiros que ameaçavam constantemente a comunidade. Na verdade, eram policiais à paisana. Em resumo, existem comunidades com valores completamente diferentes dos nossose, assim, é essencial entender o grau de aculturamento que o acusado tem.
ConJur — A prisão cautelar do indígena também deve ser diferente?
Cecília Mello — Sim. Em um caso de homicídio que julgamos, havia um regime especial de prisão cautelar porque a própria Funai tomou todas as providências para criar aquele modelo. Era uma prisão mesmo, só que dentro da aldeia. Foi feita uma casa, um quartinho. Eles poderiam receber visitas, como qualquer preso recebe, mas não poderiam sair. Não é uma prisão domiciliar, porque eles não estavam na casa deles com a família. Também não se trata de privilégio por ser indígena. Eles ficam em uma prisão e não podem sair da aldeia. Também podemos aplicar as medidas cautelares novas com a de manter o réu circunscrito à área da comunidade. É até mais fácil.
ConJur — É possível substituir penas corpóreas no caso de indígenas?
Cecília Mello — Não é inviável a substituição da pena. Evidentemente, quando se determina uma prestação de serviço, é preferível que ela seja dirigida a uma entidade vinculada à própria cultura indígena, como num escritório da Funai, por exemplo. Não se pode dizer ao índio que cuide de crianças carentes, porque há diferenças culturais. Na tribo, as crianças tomam até quatro banhos diários no rio. Em relação a outras penas alternativas, por exemplo, a pecuniária é inviável, mas a prestação de serviços e a restrição, não. Porque índio também vai ao bar e bebe. Penas restritivas são fáceis de aplicar.
ConJur — Ao julgar processos envolvendo sem-terra, a questão social deve ser levada em consideração ou apenas a lei, que pune o esbulho possessório?
Cecília Mello — Há dois momentos. No primeiro, que é de decisão preliminar, é preciso levar em conta a situação posta e há quanto tempo ela está posta, ou seja, há quanto tempo os invasores ocupam a área, se estão instalados, se têm uma comunidade etc. Não é adequado se dar uma liminar para tirar mil, duas mil pessoas de um lugar onde elas já estão estabelecidas. Num primeiro momento, não se deve tentar modificar a situação posta. Agora, se determinada área foi invadida há três dias, a situação posta é a anterior, quer dizer, a área estava livre ou com o proprietário. Depois que uma situação se cristaliza, fica muito difícil revertê-la, porque o dano social pode ser muito maior. Num segundo momento, no entanto, deve-se julgar o direito. Eles podem estar lá há três anos, mas a área não é deles e deve ser devolvida, por exemplo.
ConJur — Pode ser aplicado o princípio da insignificância nos casos de apropriação indébita e moeda falsa?
Cecília Mello — Para moeda falsa não, pois o bem jurídico tutelado não permite que se considere insignificante a falsificação da moeda nacional. O mesmo ocorre com a apropriação indébita. Entretanto, nesse último caso, se o valor for pequeno, o perdão judicial pode ser concedido.
ConJur — Se o débito é informado, em DCTF [Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais], como não pago à Receita Federal, o valor já pode ser inscrito em dívida ativa, sem passar por processo administrativo. Nesse caso, como fica a necessidade de processo administrativo para que alguém responda criminalmente por crime tributário?
Cecília Mello — É preciso haver notificação do lançamento. Sua escrituração pode estar diferente da declaração, pode ter havido erro na declaração. Só é possível começar a ação penal se não tiver havido impugnação administrativa contra a cobrança. O STJ tem entendido que na hora em que se apresenta a declaração e não se paga o tributo, o contribuinte acabou com sua possibilidade de denúncia espontânea. Por isso, o contribuinte tem adotado outro procedimento: ele escritura tudo, mas se não tem o dinheiro para pagar, não declara. Paga a multa acessória pela falta de entrega de declaração, e tenta se beneficiar de uma denúncia espontânea.
ConJur — Nesses casos, o Ministério Público deve aguardar o fim do processo administrativo mesmo se o contribuinte não se insurgir contra a cobrança do valor integral da dívida, mas somente contra os acréscimos, por exemplo?
Cecília Mello — O mais certo é se examinar o procedimento administrativo, ver o que está sendo impugnando. Porque o correto, nesse caso, seria o devedor depositar aquilo que não está impugnando. A questão é polêmica, mas penso que, em princípio, a denuncia poderia ser oferecida em relação àquilo que não foi especificamente impugnado.
Entre outras controvérsias, ela é favorável à concessão de pena alternativa a estrangeiro condenado por tráfico no Brasil. A postura é polêmica, já que penas substitutivas, como a prestação de serviços, dependem de documentação regular no país, o que nem sempre o detido tem. “Eles podem cumprir pena alternativa nos países de origem, havendo ou não tratado entre os países. É só viabilizar a prestação de contas do cumprimento da pena via consulado, por exemplo. O que não se pode é suprimir garantias constitucionais discriminando o estrangeiro”, diz.
Cecília é autora de inúmeras decisões contra trapalhadas da Polícia Federal chanceladas pela Justiça em primeiro grau. No ano passado, considerou ilícitas provas colhidas em clientes do escritório de advocacia Oliveira Neves durante a operação Monte Éden, que em 2005 investigou esquema de evasão de divisas via off shores. Segundo a decisão, os mandados de busca e apreensão, que visavam informações de clientes do escritório não envolvidos na investigação, foram genéricos e não específicos, gerando invasões ilegais e provas ilícitas, uma vez que violadoram sigilo profissional dos advogados. Mais de 200 empresas receberam a visita dos policiais.
Foi também relatora de decisão da 2ª Turma do tribunal que declarou inepta denúncia do MPF contra funcionários da empresa Kroll, acusados de espionar inimigos de Daniel Dantas, ex-dono do banco Opportunity. A denúncia se baseou na operação Chacal, da Polícia Federal, deflagrada em 2004. Para a Turma, os equipamentos apreendidos que, segundo a investigação, serviriam para grampear ligações, foram classificados pela perícia judicial como detectores de grampos telefônicos e, portanto, não ligavam os acusados a crimes.
“Polícia, Ministério Público e Judiciário não podem cometer ilícitos ou irregularidades na investigação, que podem levar à anulação do processo e ao descrédito”, defende Cecília. Ela recebeu a ConJur em seu gabinete para conceder entrevista para o Anuário da Justiça Federal 2012, lançado nesta quarta-feira (29/2) no STJ. “O único que não pode cometer erros é o juiz.”
Seu apego à legalidade nas investigações a levou a libertar acusados presos na operação Castelo Areia, deflagrada contra um suposto esquema de desvio de verbas públicas envolvendo executivos da construtora Camargo Corrêa. A operação foi anulada pelo STJ no ano passado devido a irregularidades nas provas. Quando o processo chegou a suas mãos, Cecília Mello constatou que tanto o MPF quanto o juiz da causa, Fausto Martins De Sanctis — hoje desembargador —, omitiram a informação de que uma delação premiada fundamentava as acusações e era objeto de procedimento diverso não revelado aos réus, e que não existia uma denúncia anônima, como constava da peça acusatória ofertada pelo MPF e recebida pelo juiz. “A omissão manteve a defesa longe da real apuração e a jurisprudência é pacífica no sentido de que o réu tem o direito, para que possa se defender, de conhecer todos os termos de eventual delação premiada que contra ele possa existir. E mais: a denúncia ofertada pelo MPF deve revelar os fatos tais como realmente existam. Uma defesa só pode se basear em uma acusação real e concreta”.
Cecília também mostrou habilidade ao costurar um acordo entre a Caixa Econômica Federal e mutuários do Conjunto Habitacional Nova Poá, em Poá, na grande São Paulo. Mudanças no Sistema Financeiro de Habitação levaram a uma revisão de dívidas que desconsiderou valores já pagos pelos mutuários, multiplicando o saldo devedor. No ano passado, uma audiência de conciliação do interesse de aproximadamente três mil moradores terminou em acordo entre o MPF e a Caixa, pelo qual os mutuários tiveram direito a nova perícia para reavaliação dos imóveis e a descontos de até 43% do valor da dívida, com refinanciamento dos imóveis.
Empossada no tribunal pela porta do quinto constitucional da advocacia, Cecília Mello fez carreira na Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo. Ainda na faculdade, estagiou no escritório Pinheiro Neto Advogados. Foi o segundo emprego na área. Antes, passou pelo escritório França Ribeiro e Almeida Advogados, em São Paulo. No Pinheiro Neto, ficou por pouco tempo. Saiu antes de terminar o curso na PUC-SP, em 1984. Um ano depois, passou no último concurso público em que os procuradores paulistas poderiam advogar de maneira privada paralelamente à função pública. Em 2003, foi escolhida pelo presidente Lula na lista tríplice de indicados pela OAB para vaga de desembargador do TRF-3.
Segundo levantamento do Anuário da Justiça Federal 2012, que traz o perfil dos desembargadores dos cinco tribunais regionais federais do país, para Cecília Mello, o conceito de participação em “organização criminosa” é aplicável no Brasil mesmo sem que essa expressão esteja especificamente conceituada na lei penal, uma vez que o Código Penal prevê os delitos de quadrilha ou bando e associação para o tráfico. Em seus julgamentos, não aplica o princípio da insignificância nos crimes de moeda falsa e apropriação indébita, sendo que, neste último, concede perdão judicial quando os valores são pequenos. Segundo ela, antes de entrar com ação penal por crime tributário, o MPF precisa esperar o término do processo administrativo na Receita Federal se o contribuinte impugnar cobranças mesmo se informar em DCTF débitos não pagos. Porém, a impugnação deve tratar do valor principal da dívida, e não apenas de acréscimos, situação em que o devedor precisa depositar em juízo o valor do principal para não ser denunciado por sonegação.
Leia a entrevista
ConJur — A Polícia e o Ministério Público têm abusado do uso de escutas telefônicas como único meio de investigação?
Cecília Mello — Sim. Em caso recente que julguei, a investigação começou com base em uma denúncia anônima que fornecia nomes, endereços, horários, todo o necessário para se fazer uma diligência, mas nenhuma foi feita. Preferiram quebrar o sigilo telefônico. O que se argumentou é que nos delitos financeiros não há outra maneira a não ser quebrar o sigilo telefônico. Mas naquele caso era ridículo. A denúncia anônima dizia que o fulano saía tal hora, todos os dias, em determinado horário, e ia para o endereço tal, encontrava-se com beltrano e voltava. Era uma diligência tranquila de ser feita. Seria até possível ter-se chegado a uma quebra de sigilo, mas já havia elementos para se fazer uma investigação preliminar. De um modo geral, isso dá a impressão de que existe comodismo. É mais fácil quebrar o sigilo, mas essa quebra apenas se justifica quando não haja outra alternativa e a partir de uma investigação já iniciada e com indícios a determinar a quebra. Do contrário, direitos constitucionais deixam de ser respeitados .
ConJur — A lei prevê que, com a devida fundamentação, interceptações telefônicas podem ser renovadas para além dos primeiros 15 dias. Mas não fala em nova renovação depois de 30 dias. Esse prazo pode se estender indefinidamente?
Cecília Mello — Indefinidamente, não, mas pode haver contextos em que se precise da escuta por mais tempo. O importante é a fundamentação, até onde já se chegou e por que ir adiante. Se uma escuta não levou a nenhuma informação e é prorrogada, se novamente nada foi descoberto, chega de escutar. É preciso fundamentar a prorrogação, não dizer simplesmente que é necessário ou que no tempo concedido nada se apurou.
ConJur — Recentemente, o STJ derrubou grandes operações da Polícia Federal que foram consideradas legais pelo TRF-3. Que conclusões é possível tirar disso?
Cecília Mello — No caso da operação Castelo de Areia, foi uma questão procedimental. O juiz não informou sequer a mim sobre a existência de uma denuncia anônima. Eu não vi, o réu também não e os advogados também não. Quando o Ministério Público Federal faz uma denúncia dizendo que a investigação se baseou em denúncia anônima e o juiz confirma essa informação, mas na verdade existe uma delação premiada, é impossível a aferição da irregularidade pelo Tribunal e o exercício do pleno direito de defesa. Qual é a credibilidade do Judiciário e das instituições nessa situação? Nenhuma. Nesse caso específico, ordenei que se desse acesso às partes à delação premiada existente em desfavor dos réus. Além dessas houve a Satiagraha, a Têmis e a Anaconda, que eu não julguei. Na minha opinião, polícia, Ministério Público e Judiciário não podem cometer ilícitos ou irregularidades na investigação, pois essa conduta pode levar à anulação do processo e ao descrédito das instituições. O único que não pode cometer erros é o juiz. Nem que tenha o apoio do Ministério Público e da polícia, ele não pode consentir com uma irregularidade.
ConJur — O TRF-3 deveria ter sido mais rigoroso com as falhas?
Cecília Mello — Existe um número elevado de denúncias ineptas recebidas, e essa postura é péssima. Quando você detecta um vício formal ou de justa causa em uma denúncia, o correto é eliminar isso rapidamente, porque, dessa forma, dá-se a chance ao Ministério Público de corrigir, se há mesmo uma ilegalidade a ser apurada. Se você tenta "salvar" uma denúncia, esse processo vai tramitar e essa denúncia vai acabar sendo anulada. Os advogados trabalham na defesa do cliente, jogam com a questão do tempo e da prescrição, até mesmo como manobra. Quem me assegura que os advogados não sabiam de uma denúncia anônima que está oculta? Por causa de erros como esse, jamais se vai apreciar o mérito da acusação. A discussão ficará na questão formal. A sociedade, que está de fora, não consegue entender isso, e com razão. Por isso, sou “antissalvamento” de denúncia. Com erros, ela vai acabar sendo anulada, só que vai levar três, quatro ou cinco anos para isso acontecer, quando não haverá mais tempo hábil para se começar o processo de novo. Não é sequer possível saber se o acusado deveria ser punido. É uma péssima estratégia.
ConJur — O que as metas do Conselho Nacional de Justiça trouxeram ao Judiciário?
Cecília Mello — Existe um enraizamento de comportamento de longa data no Judiciário. As pessoas têm resistência em mudar o comportamento e os servidores também demonstram essa resistência. Mas, com a meta, não importa se há resistência ou não, é preciso mudar a postura, mudar de rumo. Em relação a mim, as metas não fizeram muita diferença. Cheguei ao tribunal pelo quinto constitucional. Era procuradora do estado e já tinha uma disponibilidade para modificações. Só que no Judiciário não se trabalha sozinho. Se a assessoria e os funcionários resistirem à mudança, ela não acontece. Por isso, o lado bom das metas é a mudança de mentalidade. O lado ruim é que, às vezes, as pessoas se entusiasmam demais e há risco de se ter decisões equivocadas ou superficiais. Não se pode ir além do que é possível. Sempre digo aos meus filhos que o grande lance da vida chama-se equilíbrio. Passamos a vida inteira buscando equilíbrio em tudo. Aqui também tem que haver equilíbrio. Esvaziar um gabinete não pode ser igual a correr riscos. Lidamos com pessoas. O que me incomoda não são 4,5 mil processos aqui dentro, mas saber que há 4,5 mil pessoas esperando uma decisão.
ConJur — A desembargadora julga mais processos do que recebe?
Cecília Mello — Não sou uma boa gestora de gabinete, mas também não sou péssima. Estou há oito anos no mesmo gabinete, e tenho menos processos do que quando entrei. Mas, se eu bobear, a entrada fica maior do que a saída. E isso me deixa em pânico.
ConJur — As decisões monocráticas, permitidas pelo artigo 557 do Código de Processo Civil, aceleraram os julgamentos?
Cecília Mello — Certa vez fiz um cálculo sobre a quantidade de decisões para se por fim a um recurso. Mesmo decidindo monocraticamente, principalmente em matérias repetitivas, são pelo menos cinco decisões para se baixar um processo, em média. É uma decisão monocrática, outra em embargos de declaração, um acórdão em agravo, e pelo menos mais duas em embargos de declaração. E isso sem contar as liminares.
ConJur — Quais são os principais erros dos advogados?
Cecília Mello — Não acho que o advogado tenha que escrever pouco, mas tem que ser objetivo. Há peças que são verdadeiros discursos políticos. Há memoriais e sustentações orais que acabam tendo uma conotação de palanque, de discurso político e que saem do foco técnico do julgamento. Perde-se o foco do caso que está sendo julgado.
ConJur — Como deve ser a sustentação oral?
Cecília Mello — Existem matérias que são de ordem pública, que, portanto podem ser conhecidas em qualquer tempo ou grau de jurisdição. Vamos supor que o advogado sustente da tribuna uma prescrição, uma nulidade insanável, algum vício irreparável. Muitas vezes é possível, na hora, verificar aquela arguição nova. Mas se não for uma questão de ordem pública, ninguém é obrigado a verificar, naquele momento, porque não foi suscitada no recurso. De um modo geral, para evitar embargos de declaração, se eu tiver condições de responder àquilo que é arguido na tribuna, respondo, inclusive acrescentando ao voto o que foi suscitado e que não foi objeto do recurso. Ao proferir o voto, faço oralmente as ponderações acerca daquela matéria. Mas, se eu não tiver condições, porque o processo é muito volumoso ou porque o que foi arguido não tem pertinência, vou esclarecer que aquela questão não foi objeto do recurso, que não existem condições para que aquilo seja verificado naquele momento e que o advogado se valha da via adequada para suscitar aquela questão.
ConJur — Em que situações isso ocorre?
Cecília Mello — Isso é muito comum em pedidos de Habeas Corpus. Pode acontecer quando alguém entra com pedido de Habeas Corpus por excesso de prazo, por exemplo e, no dia da sustentação, quer defender a aplicação das novas medidas cautelares. Evidentemente, é possível conhecer do pedido, só que é preciso ter todos os elementos necessários nos autos, elementos que, normalmente, um pedido de Habeas Corpus não tem. Mais do que isso, o juiz provavelmente não prestou informações a respeito do novo pedido e é ele que tem contato com o réu. Seria preciso obter informações complementares do juiz para ver se há algum óbice para a aplicação de uma das novas medidas cautelares. Então, o segundo pedido deveria ser objeto de outra impetração.
ConJur — O conceito de organização criminosa só existe na Convenção de Palermo, ratificada pelo Brasil. Não há definição, no entanto, na lei interna. É possível julgar com base na definição?
Cecília Mello — Sim. Temos definida a figura da quadrilha e a figura de associação para o tráfico, com as quais é possível fazer uma identificação. A quadrilha nada mais é do que uma organização criminosa com o objetivo de praticar um delito.
ConJur — A desembargadora já aplicava pena alternativa para condenados por tráfico antes mesmo de o Supremo Tribunal Federal se posicionar a favor da possibilidade. Por quê?
Cecília Mello — Quem tem filho sabe que um jovem de 18, 19 ou 20 não tem maturidade. A lei prevê, inclusive, uma cláusula especial de diminuição da pena para réus de 18 a 21 anos. Eles também serão vulneráveis dentro do sistema penitenciário, muito mais do que uma pessoa mais velha. Dentro do razoável, uma substituição de pena é muito melhor do que o ingresso no sistema.
ConJur — O sistema prisional não cumpre a função a que se destina?
Cecília Mello — Não. É até uma barbaridade. Em qual campanha política se ouve algum candidato fazer uma promessa em relação ao sistema prisional? Isso só traz votos quando começa a haver fugas, extravaza a delinquência de dentro pra fora, as grandes facções agem. Só então se começa a fazer presídios de segurança máxima. Mas a questão é de base. Os presos não permanecerão presos para o resto da vida e não morrerão lá dentro. É isso que as pessoas não conseguem entender. Se além da punição não houver um trabalho de reeducação, de reinserção, será catastrófico. Caminhamos para uma situação muito complicada. Os presos são tratados como animais. É uma coisa desumana para o preso e perigosa para sociedade, em razão do comportamento que esse preso terá quando sair da prisão.
ConJur — Estrangeiro pode ir para a prisão?
Cecília Mello — Pode. Ele não é diferente do nacional. Mas há uma dificuldade muito grande pelo fato de ele não ter assistência nenhuma, de família, de ninguém. Há presídios, como já revelou a imprensa, que restringem a entrada de sabonetes, detergente, sabão em pó, desinfetante, comida. Só que, se as famílias levam esses itens, quer dizer que eles não são fornecidos na cadeia. Não vejo solução a curto prazo. Mas, da mesma maneira que o fato de alguém ser estrangeiro não pode motivar uma substituição de pena, também não pode ser o fator impeditivo para a aplicação de uma medida cautelar ao invés da prisão ou mesmo de uma substituição de pena. Nem uma coisa, nem outra. Ele não pode ser prejudicado nem beneficiado por ser estrangeiro. Há algumas instituições que aceitam essas pessoas para dormir, para cumprir pena alternativa. Porque a questão é: onde eles vão ficar enquanto cumprem a pena alternativa? Por isso, penso que eles podem cumprir pena alternativa no país de origem, havendo ou não tratado de cooperação penal entre os países. Há precedentes nesse sentido. É só viabilizar a prestação de contas do cumprimento da pena via consulado, por exemplo. O tratado facilita essa tramitação, mas se houver um ajuste, nada impede que seja feito mesmo sem um tratado.
ConJur – O “mula”, sujeito sem antecedentes que é pego na fronteira portando drogas, faz parte da organização criminal?
Cecília Mello — De um modo geral, não. Quando ele executa essa atividade, nem sabe quem são os chefes ou integrantes dessa organização uma organização. A avaliação dessas questões somente pode ser precisa diante do contexto do caso concreto.
ConJur — Quem engole a droga pela primeira vez para passar pela fiscalização já pode ter afastado os atenuantes?
Cecília Mello — De forma alguma. Para mim, em principio, é o contrário. O que leva uma pessoa a colocar em risco a própria vida, ingerindo cápsulas de cocaina? Parece-me ser um grau extremo de necessidade. Quando alguém engole a droga, sua disfunção social é tão grande que se põe em grave risco de vida para ganhar dinheiro.
ConJur — O juiz pode converter prisão em flagrante em prisão preventiva ou liberar o detido sem ouvir o Ministério Público?
Cecília Mello — Pode, dependendo da questão emergencial que está no contexto. Ele poderá dar ciência ao MPF na sequência, até porque ele, Juiz, pode rever, soltar ou prender de novo. Nada impede que, à vista dos argumentos do Ministério Público, ele mude novamente o seu entendimento.
ConJur — É possível, interpretando-se o artigo 26 do Código Penal, dizer que o índio é inimputável?
Cecília Mello — O fato de ser indígena não significa ser inimputável. A inimputabilidade é aferida de outra forma, de acordo com a aculturação, compreensão dos valores médios e a inserção do indígena na sociedade. Mas é preciso entender que os indígenas podem ter características culturais e valores muito diferentes dos nossos, dependendo da comunidade que integram, qual o bem jurídico que está sendo defendido. Julguei recentemente o pronunciamento, para o Tribunal do Júri, de índios que mataram policiais porque acreditavam que eles eram capangas de fazendeiros que ameaçavam constantemente a comunidade. Na verdade, eram policiais à paisana. Em resumo, existem comunidades com valores completamente diferentes dos nossose, assim, é essencial entender o grau de aculturamento que o acusado tem.
ConJur — A prisão cautelar do indígena também deve ser diferente?
Cecília Mello — Sim. Em um caso de homicídio que julgamos, havia um regime especial de prisão cautelar porque a própria Funai tomou todas as providências para criar aquele modelo. Era uma prisão mesmo, só que dentro da aldeia. Foi feita uma casa, um quartinho. Eles poderiam receber visitas, como qualquer preso recebe, mas não poderiam sair. Não é uma prisão domiciliar, porque eles não estavam na casa deles com a família. Também não se trata de privilégio por ser indígena. Eles ficam em uma prisão e não podem sair da aldeia. Também podemos aplicar as medidas cautelares novas com a de manter o réu circunscrito à área da comunidade. É até mais fácil.
ConJur — É possível substituir penas corpóreas no caso de indígenas?
Cecília Mello — Não é inviável a substituição da pena. Evidentemente, quando se determina uma prestação de serviço, é preferível que ela seja dirigida a uma entidade vinculada à própria cultura indígena, como num escritório da Funai, por exemplo. Não se pode dizer ao índio que cuide de crianças carentes, porque há diferenças culturais. Na tribo, as crianças tomam até quatro banhos diários no rio. Em relação a outras penas alternativas, por exemplo, a pecuniária é inviável, mas a prestação de serviços e a restrição, não. Porque índio também vai ao bar e bebe. Penas restritivas são fáceis de aplicar.
ConJur — Ao julgar processos envolvendo sem-terra, a questão social deve ser levada em consideração ou apenas a lei, que pune o esbulho possessório?
Cecília Mello — Há dois momentos. No primeiro, que é de decisão preliminar, é preciso levar em conta a situação posta e há quanto tempo ela está posta, ou seja, há quanto tempo os invasores ocupam a área, se estão instalados, se têm uma comunidade etc. Não é adequado se dar uma liminar para tirar mil, duas mil pessoas de um lugar onde elas já estão estabelecidas. Num primeiro momento, não se deve tentar modificar a situação posta. Agora, se determinada área foi invadida há três dias, a situação posta é a anterior, quer dizer, a área estava livre ou com o proprietário. Depois que uma situação se cristaliza, fica muito difícil revertê-la, porque o dano social pode ser muito maior. Num segundo momento, no entanto, deve-se julgar o direito. Eles podem estar lá há três anos, mas a área não é deles e deve ser devolvida, por exemplo.
ConJur — Pode ser aplicado o princípio da insignificância nos casos de apropriação indébita e moeda falsa?
Cecília Mello — Para moeda falsa não, pois o bem jurídico tutelado não permite que se considere insignificante a falsificação da moeda nacional. O mesmo ocorre com a apropriação indébita. Entretanto, nesse último caso, se o valor for pequeno, o perdão judicial pode ser concedido.
ConJur — Se o débito é informado, em DCTF [Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais], como não pago à Receita Federal, o valor já pode ser inscrito em dívida ativa, sem passar por processo administrativo. Nesse caso, como fica a necessidade de processo administrativo para que alguém responda criminalmente por crime tributário?
Cecília Mello — É preciso haver notificação do lançamento. Sua escrituração pode estar diferente da declaração, pode ter havido erro na declaração. Só é possível começar a ação penal se não tiver havido impugnação administrativa contra a cobrança. O STJ tem entendido que na hora em que se apresenta a declaração e não se paga o tributo, o contribuinte acabou com sua possibilidade de denúncia espontânea. Por isso, o contribuinte tem adotado outro procedimento: ele escritura tudo, mas se não tem o dinheiro para pagar, não declara. Paga a multa acessória pela falta de entrega de declaração, e tenta se beneficiar de uma denúncia espontânea.
ConJur — Nesses casos, o Ministério Público deve aguardar o fim do processo administrativo mesmo se o contribuinte não se insurgir contra a cobrança do valor integral da dívida, mas somente contra os acréscimos, por exemplo?
Cecília Mello — O mais certo é se examinar o procedimento administrativo, ver o que está sendo impugnando. Porque o correto, nesse caso, seria o devedor depositar aquilo que não está impugnando. A questão é polêmica, mas penso que, em princípio, a denuncia poderia ser oferecida em relação àquilo que não foi especificamente impugnado.
Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico
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