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segunda-feira, 5 de março de 2012

"Ficha limpa é uma roleta russa", diz Gilmar Mendes

Anseios populares


A Lei da Ficha Limpa terá de ser revista e alterada pelo Congresso depois das eleições, afirma o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, em entrevista ao jornalista Felipe Recondo publicada neste domingo (4/3) no jornal Estado de S. Paulo. Para Mendes, a lei é ampla demais e vai causar danos indiscriminadamente. "É uma roleta russa com todas as balas no revólver, feita pelos partidos", diz o ministro.
A pressão pública para aprovação da lei que impede políticos condenados por colegiados de concorrer a eleições é vista criticamente pelo ministro. "O papel do tribunal não é bater palmas para maluco dançar. Nós estamos na rota errada quando um juiz diz que tem que atender a anseios populares."
Mendes defende, ainda, enxugar os benefícios do Ministério Público que hoje são demanda do Judiciário, como licença-prêmio e auxílio-moradia, critica a falta de critério para os pagamentos de atrasados e afirma que a lei não permite a venda de férias por juízes e desembargadores. 
Outra polêmica levantada é a possível punição de militares que, após investigações da Comissão da Verdade, tenham sua participação em crimes durante a ditadura militar comprovados. Gilmar Mendes dá a entender que, depois de o STF já ter decidido sobre a Lei da Anistia, nenhuma punição será possível.
Leia, abaixo, a íntegra da entrevista.
O Congresso deveria mudar a Lei da Ficha Limpa?
Me parece que a Lei da Ficha Limpa vai causar vítimas em todos os partidos com essa amplitude. É uma roleta russa feita pelos partidos com todas as balas no revólver. Ainda vamos ouvir falar muitas vezes da Lei da Ficha Limpa. Vamos ter muitas peripécias. Acredito que o Congresso, passado o momento eleitoral, terá que rever essa lei, porque são muitas as perplexidades. O Congresso terá de assumir a responsabilidade em face da opinião pública. O Congresso talvez venha a se conscientizar de que não pode ficar aprovando leis simbólicas.

Que problemas o senhor vê na lei?
Por exemplo, os prazos de inelegibilidade são elásticos e infindáveis. A inelegibilidade pela rejeição de contas de prefeitos, por exemplo, pelos tribunais de contas. Será que isso é bom? Nós sabemos que temos problemas hoje nos tribunais de contas. Há uma excessiva politização e partidarização dos tribunais de contas. Ou nós não sabemos disso?

O senhor considera que possa haver julgamentos direcionados?
Não devemos ser ingênuos a ponto de não imaginarmos que pode haver manipulação. Imaginemos que um político importante seja condenado em primeiro grau numa ação de improbidade. Alguém desconhece a pressão que haverá sobre o tribunal para julgar também nesse sentido e torná-lo inelegível? Pressão eventualmente política, inclusive. Quem conhece a estrutura de alguns tribunais sabe que isso pode ocorrer e vem ocorrendo. 

O senhor citaria exemplos disso?
Lembre-se de episódios que foram revelados sobre a antiga composição do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro foi o primeiro a sustentar a necessidade da Lei da Ficha Limpa. À falta de critérios, o tribunal ia os inventando. O que se diz hoje? Que determinados escritórios de advocacia conseguiam limpar a ficha das pessoas no TRE. Isso é objeto hoje de investigação no CNJ. Será que queremos reproduzir esse quadro?

O tribunal pode se deixar contaminar pela opinião pública no julgamento do mensalão?
Tenho a impressão de que não. A minha expectativa é de que isso não vai afetar, embora alguns discursos sugerindo esse tipo de atendimento da opinião pública, como no caso específico da Ficha Limpa, quase levariam no caso do mensalão a um tipo de juízo condenatório prévio. Tenho impressão de que todos nós estaremos conscientes de nossas responsabilidades.

O mensalão será julgado neste ano?
Tenho a impressão de que deveríamos julgar este caso. É um caso que onera o tribunal. Não temos mais justificativa para atrasos. O relator já apresentou o processo, o gabinete do ministro Lewandowski, que é o revisor, é um dos mais organizados do tribunal. Ele dispõe de condições inequívocas de trazer esse processo ainda neste semestre. Todos os ministros estão se debruçando sobre este caso. Portanto, não vejo justificativa para não julgar este caso logo.

O senhor acha que o foro privilegiado ajudou o trâmite desse processo?
Esse caso desmente a dita ineficácia do foro privilegiado. Qualquer sujeito minimamente alfabetizado sabe que esse processo complexo só está sendo julgado porque está num foro concentrado. Se estivesse espalhado por aí, teríamos tantos incidentes e Habeas Corpus que muito provavelmente isso não terminaria nem em 2099.

Mas o STF decidiu desmembrar o mensalão tucano. Mesmo sendo mais simples que o mensalão do PT, talvez não seja julgado neste ano. O tribunal errou?
O tribunal tem optado por essa visão minimalista. A posição que presidiu o caso do mensalão do PT parece razoável nesse sentido, porque são fatos que guardam conexão. Já tivemos casos de desmembramento que envolviam crime de quadrilha. Como fazer essa separação? Talvez estejamos aprendendo com esses equívocos. É claro que fascina sempre a ideia de desmembramento porque simplifica enormemente nossa tarefa de lidar com processos tão complexos e provas tão difíceis.

Ao julgar a Lei da Ficha Limpa, citou-se o anseio popular. Como o senhor. vê isso?
Não me preocupa a decisão em si sobre a Ficha Limpa tendo em vista esse alinhamento com a opinião pública. O que me preocupa são fundamentos nesse sentido de que o tribunal deva se curvar à opinião pública. Aí me parece extremamente preocupante, porque isso decreta o falecimento dos argumentos constitucionais. Foi aquilo que numa brincadeira disse: o papel do tribunal não é bater palma para maluco dançar. Nós estamos na rota errada quando um juiz diz que tem que atender a anseios populares.

Qual é o risco?
O risco é o tribunal perder a sua função de órgão de controle de constitucionalidade, de tutela dos direitos fundamentais. Essas maiorias que se formam no Congresso, muitas vezes, são ocasionais.

O senhor considera que isso ocorreu na votação da Ficha Limpa?
Olhando a Lei da Ficha Limpa, veremos que ela não teria esse aplauso que teve no passado se fosse votada hoje. Aquele foi um momento muito específico. Era um período pré-eleitoral, a maioria dos membros do Congresso concorreria às eleições e não queria ficar contra a opinião pública. Foi por isso, inclusive, que se produziu essa lei que é, do ponto de vista jurídico, um camelo. É uma lei mal feita. Quem passou por perto dela tem que ter vergonha. Quem trabalhou na sua elaboração tem que ter vergonha. Porque ela é uma lei extremamente mal feita. Não merece o nome de jurista quem trabalhou nessa lei. E o debate no STF serviu para mostrar isso.

Como o senhor analisa o pagamento vultoso de atrasados a juízes?
Esse acúmulo de vantagens gera até uma insegurança jurídica muito grande nos estados e deve debilitar as finanças estaduais. Não há clareza sobre qual é o numerário necessário para sustentar o Judiciário local. Lembro-me que a presidente de um tribunal do Nordeste dizia que tinha créditos acumulados de férias em torno de R$ 600 mil. Eu não consegui entender. Isso não existe nos tribunais superiores.

O Estado mostrou que a proposta de uma resolução parada no Conselho Nacional de Justiça poderia resolver essa questão.
Essa resolução esteve para ser aprovada creio na minha última sessão do CNJ. Talvez por acúmulo de pauta, ela não foi votada. Acredito que se impõe votá-la. Essa resolução já foi adotada pela Justiça Federal e pela Justiça do Trabalho. É uma resolução que dá segurança a todos. Hoje há uma suspeita que parte desses pagamentos decorre também de uma falta de critério dos índices de correção monetária, aos juros que eventualmente sejam impostos.

O senhor concorda com esse modelo: um juiz tenha 60 dias de férias, pode vender 30 dias e, passados anos, receber até meio milhão de reais em atrasados?
Em algum momento na história se estabeleceu os dois meses de férias. Mas a lei não estabelece a possibilidade de venda das férias. E o argumento da necessidade de 60 dias de férias briga com a possibilidade de venda.

Os magistrados argumentam que procuradores podem vender férias e licenças-prêmio.
No Ministério Público, a lei prevê os dois meses de férias e a possibilidade de venda, o que gera no Judiciário a busca desse paradigma. A jurisprudência do STF entende que, desde a Lei Orgânica da Magistratura, não há que se falar em licença prêmio. A despeito disso alguns tribunais mantêm a licença prêmio e aceitam a venda. Tudo isso gera esse acúmulo. A magistratura não se devia raciocinar tentando incorporar os benefícios do MP, mas defender a supressão dos benefícios do MP, benefícios que não são condizentes com a atual cultura institucional.

O senhor defende mudanças?
Vamos ter, em algum momento, que conversar com a alguma tranquilidade em relação a isso. Na minha gestão eu já tinha defendido a superação desse modelo de dois meses de férias.

Como o senhor analisa o debate em torno da criação da Comissão da Verdade sobre punição aos responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura militar?
Não vou me pronunciar sobre isso. É uma discussão que tem que se travar no âmbito próprio. A mim me parece que o Supremo deu um equacionamento adequado no debate sobre a Lei de Anistia ao dizer que esse modelo de anistia fez parte do processo constituinte, não decorre da Lei de Anistia, fez parte da constituinte. A emenda que convoca o processo constituinte e que dá legitimidade à Constituição de 88 estabeleceu esse modelo de anistia. Parece que isso responde a questão que está colocada.

Decisões do STF desde o início do ano vão ao encontro do manifestado pela opinião pública. O STF está alinhado com a opinião pública? Está havendo essa preocupação?
A missão do tribunal na defesa dos direitos fundamentais muitas vezes pode ser marcadamente contra-majoritária em relação à opinião pública ou às posições dominantes no Congresso. Nós vimos várias decisões que o tribunal tomou nesse sentido: os processos criminais em geral, como a súmula das algemas, a progressão de regime em crimes hediondos, os habeas corpus todos, como o caso Daniel Dantas, união estável homoafetiva, fidelidade partidária. Essa é um pouco a missão do tribunal em relação aos direitos fundamentais. Isso não significa que o STF tenha que estar contra a opinião do Congresso ou tenha que estar sistematicamente contra a opinião pública. Mas é fundamental dizer que, se for necessário, o tribunal tem que adotar essa postura.

Em casos recentes, ministros têm sugerido acréscimos ou mudanças nas leis em julgamento, mesmo não sendo julgadas inconstitucionais. Está havendo algum exagero?
Eu tenho me preocupado um pouco com a questão técnica em geral, tanto que tenho chamado a atenção para aspectos pontuais. A invocação da interpretação conforme (interpretar a lei para adequá-la à Constituição) tem servido para uma série de imprecisões. Muitas vezes não se trata de esclarecer a interpretação de acordo com a Constituição. Muitas vezes serve para fazer acréscimos à legislação. Me parece que aqui houve uma certa confusão geral, um certo facilitário. É preciso ter muito cuidado para que a gente não perca a legitimação técnica.

Por quê?
Se nós começarmos a extravasar, o Congresso também vai se sentir estimulado daqui a pouco a revogar as nossas decisões.

Alguns ministros dizem simplesmente que uma lei não é razoável ou proporcional e sugerem mudanças. Há um certo voluntarismo?
Não diria que isso contamina as decisões. Mas, às vezes, há algumas invocações gratuitas em um ou outro voto. O risco é a mera invocação da proporcionalidade e da razoabilidade para justificação posições pessoais. 

Revista Consultor Jurídico

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