De passagem pelo Brasil para três conferências e lançamento de um novo livro, o renomado geógrafo marxista inglês aponta as relações históricas entre o capital e o processo de urbanização, relaciona o processo de acumulação das corporações ao mercado imobiliário e vê os movimentos urbanos, da Comuna de Paris ao Occupy Wall Street, como um vetor poderoso para luta pelo socialismo e a justiça social.
Marcel Gomes
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São Paulo - Sim, a classe trabalhadora ainda pode revolucionar o mundo em direção à justiça social e ao socialismo. Mas, não, ela não está mais no chão das fábricas. Agora, os "trabalhadores de Marx" só podem ser encontrados nas ruas das grandes cidades globais.
É com essa análise, ao mesmo tempo crítica e cheia de esperança, que o renomado geógrafo inglês David Harvey conduz as conferências que profere no Brasil nesta semana, na PUC-SP, na USP e na UFRJ.
"Precisamos redefinir quem é a classe trabalhadora e, para mim, é aquela que produz vida urbana", disse ele, na noite de terça (28), a jovens que lotaram o auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP - e para muitos outros que não puderam entrar e o assistiram por um telão instalado no pátio.
Como argumentos para sua reflexão, ele relaciona a força dos protestos de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio, em 1999, a mobilização em Mar del Plata contra a Alca, em 2005, e o movimento Occupy Wall Street, que estimulou ações semelhantes em outras cidades do mundo.
Longe de ser uma novidade, o próprio geógrafo inglês lembra outros movimentos anti-sistema que também tiveram características urbanas, como Comuna de Paris, em 1871. "É a revolução de caráter urbano mais clássica", afirma ele, sobre o movimento revolucionário que tomou a capital francesa por três meses e lançou um governo popular.
Trajetória teórica
Convidado pela Boitempo Editorial para lançar seu novo livro, "O enigma do capital" (240 páginas, R$ 39), Harvey ainda retoma nas conferências conceitos desenvolvidos ao longo de sua trajetória intelectual.
Entre eles, as dinâmicas financeiras que resultam na criação das regiões metropolitanas (sub-urbanização) e o enriquecimento das corporações com a especulação imobiliária (acumulação por espoliação).
Sua experiência como geógrafo e especialista em estudos urbanos o faz ver como previsível a forte relação entre as crises financeiras do capitalismo e o mercado imobiliário - para ele, o histórico destino prioritário dos excedentes do capital.
É dessa maneira que Harvey enxerga o mercado imobiliário contemporâneo, que, do dia para a noite, ergue novos condomínios, bairros e até cidades inteiras. Foi assim nos Estados Unidos do pós-guerra, e é assim hoje na China e até em algumas regiões do Brasil.
Sub-urbanização
Diante da crise econômica dos anos 30, o governo dos Estados Unidos investiu em obras de infra-estrutura e na construção civil em geral para reaquecer a economia do país.
Foi a partir desse período que surgiram os grandes subúrbios norte-americanos, que resultaram nas grandes regiões metropolitanas de Nova York, Chicago e Los Angeles.
A partir dos anos 70, o modelo entrou em crise junto à economia do país. Os crescentes déficits do balanço de pagamentos geraram a desvalorização do dólar (alguma semelhança com a conjuntura atual?) e levaram a uma reorganização da economia global.
Em 71, o banco central dos Estados Unidos acabou com a ancoragem do dólar em relação ao ouro, dando ponto final ao sistema de câmbio fixo. O adeus aos acordos firmados na conferência de Bretton Woods, em 1944, gerou um novo ciclo recessivo, agravado pelo primeiro choque do petróleo, em 1973.
A solução encontrada pelo governo norte-americano repetiu a escrita da primeira metade do século: incentivar os investimentos na construção civil.
A Lei da Recuperação Econômica, de 1981, incentivou a aplicação de recursos no ramo imobiliário e em 1983 a Fannie Mae foi autorizada a securitizar hipotecas convencionais. A crise do subprime, duas décadas e meia depois, estava em gestação.
Acumulação por espoliação
Nos subúrbios das grandes cidades norte-americanas, os novos proprietários de casas passaram a ser incentivados a usar mecanismos financeiros artificiais. "Casas que eram compradas por US$ 200 mil logo passavam a valer US$ 300 mil. Os proprietários podiam refinanciar a dívida e, de uma hora para outra, colocar US$ 100 mil no bolso", explica o geógrafo.
A estabilidade social nessas área também é garantida por um rígido controle. Segundo Harvey, nos Estados Unidos a ameaça de demissões passou a ser utilizada pelos empregadores como uma arma contra as mobilizações populares. A cultura conservadora prosperou. "Não é à toa que a maioria tornou-se republicana", afirma.
Mas o previsível estouro da bolha em 2008 ajudou a abrir rachaduras no sistema. Houve manifestações em diversas cidades norte-americanas contra a crise econômica, migrantes se levantaram em protesto a leis xenófobas e o movimento Occupy ganhou ruas e praças do país.
Sobre o Brasil, Harvey deixou poucas palavras. Lembrou que o país consegue, assim como a Argentina e outros "emergentes", escapar da crise por uma razão singular: esses países se aproveitam das exportações de matéria-prima para a China.
Ele lembra, porém, que o governo chinês também segue a tradicional receita norte-americana de estimular o crescimento econômico através da construção civil e da urbanização, o que tende a gerar bolhas passíveis de explosão.
Dessa forma, também o Brasil não estaria imune, em um futuro próximo, de uma crise novamente relacionada à acumulação capitalista através do mercado imobiliário.
Produção de Harvey
David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital.
É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001.
Foi também professor de geografia nas universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados desde a Segunda Guerra Mundial.
Seus livros mais recentes, além de O enigma do capital (Boitempo), são: A Companion to Marx’s Capital (Boitempo, no prelo) e O novo imperialismo (São Paulo, Loyola, 2004).
São Paulo - Sim, a classe trabalhadora ainda pode revolucionar o mundo em direção à justiça social e ao socialismo. Mas, não, ela não está mais no chão das fábricas. Agora, os "trabalhadores de Marx" só podem ser encontrados nas ruas das grandes cidades globais.
É com essa análise, ao mesmo tempo crítica e cheia de esperança, que o renomado geógrafo inglês David Harvey conduz as conferências que profere no Brasil nesta semana, na PUC-SP, na USP e na UFRJ.
"Precisamos redefinir quem é a classe trabalhadora e, para mim, é aquela que produz vida urbana", disse ele, na noite de terça (28), a jovens que lotaram o auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP - e para muitos outros que não puderam entrar e o assistiram por um telão instalado no pátio.
Como argumentos para sua reflexão, ele relaciona a força dos protestos de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio, em 1999, a mobilização em Mar del Plata contra a Alca, em 2005, e o movimento Occupy Wall Street, que estimulou ações semelhantes em outras cidades do mundo.
Longe de ser uma novidade, o próprio geógrafo inglês lembra outros movimentos anti-sistema que também tiveram características urbanas, como Comuna de Paris, em 1871. "É a revolução de caráter urbano mais clássica", afirma ele, sobre o movimento revolucionário que tomou a capital francesa por três meses e lançou um governo popular.
Trajetória teórica
Convidado pela Boitempo Editorial para lançar seu novo livro, "O enigma do capital" (240 páginas, R$ 39), Harvey ainda retoma nas conferências conceitos desenvolvidos ao longo de sua trajetória intelectual.
Entre eles, as dinâmicas financeiras que resultam na criação das regiões metropolitanas (sub-urbanização) e o enriquecimento das corporações com a especulação imobiliária (acumulação por espoliação).
Sua experiência como geógrafo e especialista em estudos urbanos o faz ver como previsível a forte relação entre as crises financeiras do capitalismo e o mercado imobiliário - para ele, o histórico destino prioritário dos excedentes do capital.
É dessa maneira que Harvey enxerga o mercado imobiliário contemporâneo, que, do dia para a noite, ergue novos condomínios, bairros e até cidades inteiras. Foi assim nos Estados Unidos do pós-guerra, e é assim hoje na China e até em algumas regiões do Brasil.
Sub-urbanização
Diante da crise econômica dos anos 30, o governo dos Estados Unidos investiu em obras de infra-estrutura e na construção civil em geral para reaquecer a economia do país.
Foi a partir desse período que surgiram os grandes subúrbios norte-americanos, que resultaram nas grandes regiões metropolitanas de Nova York, Chicago e Los Angeles.
A partir dos anos 70, o modelo entrou em crise junto à economia do país. Os crescentes déficits do balanço de pagamentos geraram a desvalorização do dólar (alguma semelhança com a conjuntura atual?) e levaram a uma reorganização da economia global.
Em 71, o banco central dos Estados Unidos acabou com a ancoragem do dólar em relação ao ouro, dando ponto final ao sistema de câmbio fixo. O adeus aos acordos firmados na conferência de Bretton Woods, em 1944, gerou um novo ciclo recessivo, agravado pelo primeiro choque do petróleo, em 1973.
A solução encontrada pelo governo norte-americano repetiu a escrita da primeira metade do século: incentivar os investimentos na construção civil.
A Lei da Recuperação Econômica, de 1981, incentivou a aplicação de recursos no ramo imobiliário e em 1983 a Fannie Mae foi autorizada a securitizar hipotecas convencionais. A crise do subprime, duas décadas e meia depois, estava em gestação.
Acumulação por espoliação
Nos subúrbios das grandes cidades norte-americanas, os novos proprietários de casas passaram a ser incentivados a usar mecanismos financeiros artificiais. "Casas que eram compradas por US$ 200 mil logo passavam a valer US$ 300 mil. Os proprietários podiam refinanciar a dívida e, de uma hora para outra, colocar US$ 100 mil no bolso", explica o geógrafo.
A estabilidade social nessas área também é garantida por um rígido controle. Segundo Harvey, nos Estados Unidos a ameaça de demissões passou a ser utilizada pelos empregadores como uma arma contra as mobilizações populares. A cultura conservadora prosperou. "Não é à toa que a maioria tornou-se republicana", afirma.
Mas o previsível estouro da bolha em 2008 ajudou a abrir rachaduras no sistema. Houve manifestações em diversas cidades norte-americanas contra a crise econômica, migrantes se levantaram em protesto a leis xenófobas e o movimento Occupy ganhou ruas e praças do país.
Sobre o Brasil, Harvey deixou poucas palavras. Lembrou que o país consegue, assim como a Argentina e outros "emergentes", escapar da crise por uma razão singular: esses países se aproveitam das exportações de matéria-prima para a China.
Ele lembra, porém, que o governo chinês também segue a tradicional receita norte-americana de estimular o crescimento econômico através da construção civil e da urbanização, o que tende a gerar bolhas passíveis de explosão.
Dessa forma, também o Brasil não estaria imune, em um futuro próximo, de uma crise novamente relacionada à acumulação capitalista através do mercado imobiliário.
Produção de Harvey
David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital.
É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001.
Foi também professor de geografia nas universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados desde a Segunda Guerra Mundial.
Seus livros mais recentes, além de O enigma do capital (Boitempo), são: A Companion to Marx’s Capital (Boitempo, no prelo) e O novo imperialismo (São Paulo, Loyola, 2004).
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