ENTREVISTA - 'A sociedade não gosta da polícia', diz Beltrame
Secretário de Segurança do Rio admite problemas nas UPPs, nega que vá ser candidato pelo PMDB em 2014 e afirma que os serviços públicos não têm mais a desculpa da falta de segurança para deixar de atender as favelas
Leslie Leitão
José Mariano Beltrame na comemoração de um ano da UPP do Turano (Marco Antônio Cavalvanti/Ag.OGlobo-30-09-2011)
Colocaram na novela o Exército ocupando o Alemão. Mais engraçado é que, casualmente, vi a cena da invasão, acho que no primeiro capítulo. Aquele ator capitão passa pelo tenente e fala: "Tenente, prepara que nós vamos ocupar o Alemão". Assim, como se fosse fácil... Aí eu disse: "Rita, eu vou tomar ali, pegar aquele litrinho de João Caminhador (Johnny Walker) e vou dormir".
Como pai do projeto de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), José Mariano Beltrame tem razões de sobra para alardear as conquistas do projeto, carro-chefe da política de segurança do Rio. Mas o secretário de Segurança do Rio prefere não comemorar, e reconhece que há problemas na empreitada que, como repete, visa a acabar com a violência causada pelo tráfico de drogas, não com a venda de entorpecentes propriamente dita. Camisa social, à vontade, Beltrame recebeu o site de VEJA para uma longa entrevista às vésperas de comandar a operação policial para a criação da 31ª e da 32ª dessas unidades, no Complexo do Caju e na Barreira do Vasco, na Zona Norte da capital. "As pessoas têm uma expectativa superpositiva em cima de segurança pública. Mas de repente acontece alguma coisa... E aí?! Jamais vão me ver mostrar os dentes cantando vitória em segurança pública, porque eu posso não conhecer muita coisa no Rio de Janeiro, mas o crime eu conheço", diz.
Tomando o primeiro de seus 15 cafés diários, Beltrame analisou os ganhos e os problemas do programa que, hoje, envolve 230 favelas ocupadas por 8.000 homens, com 600 viaturas – “estrutura essa maior do que de vários estados brasileiros”, lembra ele. O desafio do momento, afirma, é a consolidação do projeto, que tem como principal mérito o que chama de uma mudança no paradigma de ação da polícia em áreas carentes. “A polícia entrava para dar tiro, para matar, para morrer, para tudo, menos para prestar serviço. E qual foi o resultado? A sociedade não gosta da polícia. E a polícia não gosta da sociedade, por razões que essa guerra produziu”, afirma.
Qual balanço o senhor faz desses quatro anos de UPP?
São infinitamente maiores os efeitos positivos do que os negativos. Digo isso com base nos índices de criminalidade. É uma estrutura imensa. Problemas nós temos e vamos ter. A PM chegou ao Rio de Janeiro para proteger dom João, não a sociedade. Eles foram jogados a fazer guerra, porque essa era a tônica. Você vai lá, dá tiro, morre e mata, pega o espólio e volta. Isto está no DNA das polícias. Não posso dizer que na maioria, mas a lógica está incorporada. E acho que isso se quebrou.
Como controlar os desvios, com o crescimento do projeto?
Enquanto tínhamos Dona Marta, Batan e Cidade de Deus, controlávamos com as mãos. Mas o projeto cresce. A visão que eu tenho sobre isso é a da inteligência. O projeto está grande e vai ficar imenso, temos que estar preparados para isso. Já assinei a criação de uma delegacia de polícia judiciária para as UPPs. Mais: estou com 130 policiais treinados na inteligência aqui para jogá-los nas UPPs, que serão o Serviço Reservado das UPPs. Isso já funciona. Quero mentes novas. As mentes antigas estão aí produzindo resultados há 150 anos que tu conheces melhor do que eu. A UPP não tem manual. É uma proposta, não é um produto comprado em Nova York ou na Colômbia. É um produto das instituições do Rio de Janeiro. Então, essa acomodação das coisas vai ter que ser feita numa tentativa de erro e acerto.
Na fase atual das UPPs, qual é a sua preocupação?
Consolidação. Ela depende da postura do policial, da atitude do policial, da conduta do policial. Isso é uma obrigação nossa, algo que pode ser cobrado do secretário. Já mudamos a formação, demos gratificações. Um praça, se quiser, tira 4.000 reais por mês. Isso pode ser cobrado de mim. Mas a consolidação tem uma série de outros agentes que não estão comigo, que vem da valorização da própria sociedade.
Parte disso não está nas mãos da polícia. Mas em algumas favelas, a polícia entrou e resto do poder público não acompanhou.
Não sei se estou antecipando a resposta. Me lembro que tempos atrás acharam armas no teto de uma escola na Tijuca. A professora desceu desesperada. Existia um discurso cínico do estado de que a professora não podia dar aula porque o tráfico não deixava, que o dentista não podia ir porque o tráfico não deixava. Esse cinismo acabou. O que estamos fazendo é nos colocando lá para que o resto dos atores façam seus papéis que nunca fizeram. Só que antes tinham a desculpa de que o tráfico não deixava subir. Isso eu sei que estremece um pouco a minha relação com alguns secretários, mas acho que nosso papel aqui é muito transparente. Essa é a inversão. Se um jovem lá não tem perspectiva, não é mais por causa da segurança.
O senhor cobra isso dos outros secretários nas reuniões?
É lógico que eu cobro. A cada ocupação, você entrega para a cidade um pedaço que não existia. Acho que todas essas instituições têm de chegar para os moradores com uma proposta. Vou fazer isso, isso e isso em cinco anos. Dizer: "Eu sou da Saúde, eu vou fazer três postos de saúde, uma clínica da família e tô fora". Aí vem o Transporte para regularizar o mototáxi, enfim.
Mas o tráfico continua nessas favelas...
Você pode ter o tráfico lá dentro. O que não pode ter é o cara armado dizendo que tu não podes entrar. E aí vem a questão de retomada territorial. Essa, para mim, é a vitória. UPP é isso aí. O tráfico de drogas é uma coisa, outra é a violência ligada ao tráfico. Acho que a imprensa ainda tem muito o que bater na segurança. Mas agora não é mais como chutar gato morto. Não posso me queixar da imprensa do Rio, com uns detalhes mais ácidos aqui e ali. Então, vivo dizendo para a PM que nós temos de inverter isso.
Houve uma invasão recente de bandidos ao morro Chapéu Mangueira, que também tem uma UPP.
Isso não está sacramentado. São oito pessoas que estão lá. Três do Jacaré e quatro do Pavão, mais um que era de lá (o líder da invasão, Jony Paulo). Já sabemos quem são, já pedimos a prisão de todos eles, para você ter uma ideia de que a gente se mexe.
Os tiroteios têm ocorrido com mais frequência. Como o senhor acompanha isso?
Isso ainda vai acontecer. São ações de algum tipo de resistência de quem não está disposto a perder os negócios ilícitos que dominava naquelas áreas. É ruim? Claro que é ruim. Mas mesmo assim é muito melhor do que antes. O ótimo é inimigo do bom. Antes, as pessoas morriam lá dentro e você nem ficava sabendo. Hoje, pode ocorrer de, numa troca de tiros, termos um óbito em um desses locais. Mas a DH (Divisão de Homicídios) vai entrar naquele território. A família vai poder reclamar e enterrar esse corpo. Isso antes não era assim. Mudou. E a partir daí, temos que fazer esses consertos. Problemas nós temos nas ruas também. Por isso, sou sempre muito cético com tudo, porque não é uma caminhada fácil, não.
Como o senhor viu a retomada do Alemão retratada no horário nobre, na novela Salve Jorge, da Globo?
Colocaram na novela o Exército ocupando o Alemão. Mais engraçado é que, casualmente, vi a cena da invasão, acho que no primeiro capítulo. Aquele ator capitão passa pelo tenente e fala: "Tenente, prepara que nós vamos ocupar o Alemão". Assim, como se fosse fácil... Aí eu disse: "Rita, eu vou tomar ali, pegar aquele litrinho de João Caminhador (Johnny Walker) e vou dormir". Pô, aquilo foi um esforço gigante da Polícia Civil, da Polícia Militar, sem condição nenhuma de fazer. E os policiais, ainda assim, deram uma resposta. Olha o que saiu lá de dentro (mais de 500 armas). Não foi assim, ‘prepara lá a cavalaria’. No Alemão, pela história, pelo passado, pelo que significou para o crime e pelo tamanho, esse desafio ainda é muito longo. Você tinha ali dentro vários comandos distribuídos de uma mesma facção. Uma verdadeira “agência reguladora do crime” do Rio de Janeiro. Colocava o preço na droga, no fuzil, era o pulmão financeiro dos negócios. Tudo era ali.
Parte da população das favelas odeia a polícia.
E com razão. Aqui no São Carlos (morro na região central do Rio) um menor de idade se pelou, baixou as calças e mostrou as coisas para uma policial feminina. Ela veio aqui pedir para ir embora. Eu falei: "Não faça isso!" Você tem que reconquistar corações e mentes dentro de um quadro histórico de 40 anos. Como fazer isso? Mostrando que tu estás ali com outro propósito. Invertemos o paradigma, evitando mortes de inocentes e de policiais, com uma ocupação territorial. Consequentemente, houve uma queda vertiginosa de homicídios, autos de resistência, assalto, bala perdida. A conquista é essa. Agora, você precisa arrumar e apresentar uma polícia para essa nova situação que se gerou.
De que maneira?
A polícia entrava para dar tiro, para matar, para morrer, para tudo, menos para prestar serviço. Com tudo isso, o que aconteceu? A sociedade não gosta da polícia. E a polícia não gosta da sociedade, pelas razões que a guerra promoveu. As UPPs estão dentro de áreas não apenas pobres, periféricas, isoladas socialmente. Estão dentro de ilhas de violência, de arma longa, automática. No imaginário das pessoas, ainda está inserida a guerra. Essas áreas tinham, pelo tráfico, seu poder legislativo, executivo e judiciário. O Tim Lopes é um exemplo pedagógico disso.
Alguns contêineres que servem de pontos avançados das UPPs estão em péssimas condições. Na Vila Cruzeiro não há água sequer para dar descarga na privada.
Isso me deixa louco. Por que não colocam isso no papel, comunicando aos seus superiores? E isso é muito ruim, porque o homem se acostuma com a coisa errada. Vamos fazer uma base estática da UPP ali na Vila Cruzeiro. O contêiner é uma temporariedade. Na minha concepção tem que ter uma obra física que dê um aspecto de perenidade do projeto. Tudo isso está muito claro com os pedidos de compra que fazemos. É com dinheiro do Eike Batista que fazemos as bases todas. Tudo aquilo ali é feito por ele, porque senão, no serviço público você não faz.
Como funciona a parceria com o Eike?
É uma maluquice. A gente vai ocupar, então me dão a especificação do que precisa e eu solicito para a OGX e ela compra lá de quem ela quiser. Mas é uma empresa grande. O Eike não pega a caneta lá e resolve na hora. Ele põe isso numa reunião de conselho. Então, tem uma velocidade, mas também não é uma maravilha.
Existem 30 UPPs hoje. Com mais duas do Caju chega-se a 32. O projeto inicial eram 40. Esse número será ampliado?
O projeto era para fazer 40. Não vou dizer se serão mais cinco, mais seis, mais duas, porque não quero criar expectativas, fazer coisas espetaculares, para dizer: "Ai, que beleza, UPP resolveu tudo!" Mentira! Mas já ampliamos o projeto. No papel já está desenhado e ampliado.
O senhor será o candidato a vice-governador na chapa de Luiz Fernando Pezão em 2014 pelo PMDB?
Não tenho essa pretensão. Isso não está na minha cabeça. Sou secretário de Segurança e tenho um mundo de coisas a fazer aí. E outra coisa: acho que tudo na vida é uma corrida de revezamento. Ali na frente, você passa o bastão. Eu tenho um tempo, e são oito anos. Eu tenho a minha vida, tenho um filho que eu não vejo, tenho um monte de coisas aí...
Fonte: REVISTA VEJA
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