Após noite de tiroteio, PMs baleiam mais um morador, no terceiro caso do tipo em dois anos. Suspeitos são detidos, mas novo incidente não acelera a instalação de unidade de segurança
Com duas ocorrências em menos de 12 horas, o clima de tensão relacionado a abordagens da Polícia Militar voltou a invadir os becos do Aglomerado da Serra, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Primeiro, um baile funk na Praça do Cardoso terminou com um tiroteio que matou uma pessoa e feriu outras 15, no fim da noite de domingo, resultado de provável guerra entre gangues rivais do tráfico de drogas. Já na manhã dessa segunda-feira, moradores da Vila Marçola acusaram um cabo e um soldado do 22º Batalhão da PM de atirar em um morador que tomava café da manhã na porta de uma casa. A equipe do Estado de Minas estava na região no momento em que o tiro acertou a perna do adolescente de 16 anos. Populares se desesperaram e passaram a insultar a dupla que foi vista no Beco São Luiz. Houve tumulto e os vizinhos impediram que o jovem baleado fosse levado para receber atendimento na viatura policial, com medo de que algo pior pudesse acontecer. Ele acabou sendo levado por moradores para o Hospital de Pronto-Socorro João XXIII.
A ocorrência dessa segunda-feira reacendeu o clima de enfrentamento deflagrado depois do assassinato de dois inocentes em 2011 por militares do Batalhão Rotam, e da morte de um suspeito de envolvimento com tráfico em novembro do ano passado por um sargento do 22º BPM. Ambos os episódios culminaram em protestos e queimas de ônibus. A Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds) reagiu prometendo a instalação de uma unidade especial de policiamento no aglomerado, mas apenas em 2014. Mesmo diante dos últimos acontecimentos, o cronograma não foi revisto.
O som do tiro que feriu o adolescente na manhã de ontem foi ouvido por volta das 9h. Moradores da Vila Marçola começaram a gritar desesperados e alguns carregaram o adolescente, indignados com a ação, que eles classificaram de “covarde”. Segundo a dona de casa Aline Rodrigues, de 20 anos, vizinha do jovem S., a vítima estava na porta da casa dela com uma criança de 3 anos, irmão de Aline, quando os dois militares chegaram. “Não teve nem conversa. Chegaram e atiraram sem nenhuma razão”, conta Aline. A auxiliar de serviços gerais Eliane Rocha, de 33, também estava bem perto e garantiu que não houve nenhuma ação do jovem que motivasse a reação violenta dos PMs. “Ele tinha acabado de pegar um copo de refrigerante e comia um pedaço de pão. Os policiais disseram que foi uma troca de tiros, mas como uma pessoa pode atirar sem revólver segurando um pedaço de pão? Por pouco uma criança de 3 anos tomaria tiro”, denunciou Eliane.
A equipe do EM avistou um dos militares denunciados pela população, identificado na farda como cabo Alves. Junto com o soldado, ele deixou o local apreensivo, sem prestar socorro, mas voltou logo em seguida, tentando remover o ferido para a viatura em que a dupla estava, demonstrando nervosismo. A reação dos moradores foi de revolta. “Não deixa entrar na viatura de jeito nenhum. Vocês são covardes”, gritava um homem que carregava o jovem para a rua que dá acesso a becos da Vila Marçola. O rapaz foi levado consciente e chorando muito no carro de um conhecido. A dupla acusada do crime deixou o local debaixo de protestos e outras equipes de policiais chegaram para controlar os ânimos.
Marcas do confronto ficaram na rua onde havia baile |
Uma cápsula foi encontrada nas proximidades da casa onde S. foi atingido e o local foi isolado para trabalhos da perícia. Uma equipe da Corregedoria também esteve na Vila Marçola para fazer levantamentos e colher informações. Segundo a PM, um cabo e dois soldados do 22º Batalhão foram presos em flagrante e ficarão à disposição da Justiça detidos em uma unidade da corporação. No momento do disparo, a mãe de S., Ana Lúcia Jesus Silva, de 42, estava no trabalho. Ela disse que o filho não tem envolvimento com o crime, mas que já foi repreendido pela PM por andar de moto sem capacete e pilotar o veículo sem habilitação. “A gente fica muito triste com uma atuação da polícia desse jeito. Nossos filhos não podem sofrer dessa forma, não é justo esse tipo de atuação”, desabafa a mãe, que lamentou o fato de trabalhar o dia todo e não poder acompanhar de perto a vida do filho, que não frequenta a escola.
Já segundo a PM, S. teve envolvimento em uma ocorrência de tráfico em 2011. O tenente-coronel Alfredo Veloso, comandante do 22º BPM, disse que houve uma apreensão de entorpecentes na região onde ele foi atingido, mas afirmou que ainda não havia detalhes sobre onde a droga foi encontrada ou se tinha ligação com o adolescente. De acordo com o Hospital João XXIII, o estado de saúde de S. é estável.
Corregedoria
A terceira ocorrência de populares baleados por militares no aglomerado em pouco mais de dois anos voltou a levantar a questão da atuação da polícia na região. A coronel Cláudia Romualdo, comandante do Policiamento da Capital, afirmou que tudo foi feito no local conforme manda a lei para esclarecer os fatos da maneira mais rápida possível. “A perícia fez seu trabalho e uma patrulha da Corregedoria também foi até a vila para levantar informações. Os envolvidos foram presos e agora estão à disposição da Justiça”, afirmou.
A responsável pelo policiamento em BH afirmou que está se reunindo semanalmente com o delegado Anderson Alcântara, chefe do 1º Departamento da Polícia Civil e com o secretário de Defesa Social, Rômulo Ferraz, para viabilizar o mais rápido possível a instalação de uma Área Integrada de Segurança Pública (Aisp) dentro do conjunto de vilas e favelas. “Já é uma decisão de governo a criação de uma unidade militar e uma delegacia desde o ano passado, para melhorar a atuação das forças de segurança pública. Como envolve recurso do estado, precisamos cumprir alguns trâmites e ainda não é possível precisar uma data”, diz a coronel. A previsão é de que a Aisp seja inaugurada somente no início do ano que vem.
Briga de gangues acendeu estopim
Três suspeitos de participação no tiroteio que matou uma pessoa e feriu 14 na noite de domingo durante um baile funk na Praça do Cardoso já estão identificados, segundo a Polícia Militar. A corporação sustenta que seis homens em quatro motocicletas chegaram ao local atirando no fim do evento. A hipótese mais forte até o momento é que um desentendimento envolvendo mulheres de traficantes rivais tenha motivado o tiroteio que terminou com a morte de Dario Ferreira Leite Neto, de 33, sem passagens pela polícia.
Entre os feridos, um deles pisoteado e outro atingido por uma garrafada, a PM informou haver envolvidos com o tráfico, mas sem precisar o número. A corporação também afirma que só foi avisada do evento no mesmo dia, mas não achou necessário o cancelamento, já que não se tratava de um baile provocativo e a segurança esteve garantida ao longo de todo dia.
O tenente-coronel Aberto Luiz Alves, assessor de comunicação da corporação, afirmou que o alvará da Prefeitura de BH autorizando o evento só chegou às mãos da Polícia Militar (PM) no domingo, dia para o qual estava marcado o evento. “Por meio da patrulha rotineira ostensiva no local, a polícia avaliou e considerou viável a reunião com a segurança disponibilizada naquele momento. Tudo transcorreu muito bem ao longo de todo o dia. A confusão se deu no fim do evento”, afirmou.
Já a Regional Centro-Sul da PBH, por meio de sua assessoria de imprensa, afirmou que o alvará liberando um evento só é emitido depois do aval de órgãos como PM e Corpo de Bombeiros. Segundo as normas municipais, o interessado em licenciar o evento tem até dois dias antes para apresentar a documentação que prova que todas as autoridades foram comunicadas. A assessoria de comunicação do Hospital João XXIII informou que seis feridos permanecem internados, dois deles em estado grave.
Postura de PMs divide moradores
Depois de mais um episódio de violência envolvendo morador do Aglomerado da Serra e policiais militares, a população que vive no conjunto de vilas e favelas e aqueles que moram no Bairro Serra, Região Centro-Sul da capital, divergem com relação à segurança na região. Para alguns a polícia amedronta a população; outros acreditam que ela faz o trabalho correto e que não há sensação de insegurança na região.
Moradora do aglomerado desde criança, Luana Souza Silva, de 27, diz que a ação dos militares é sempre truculenta e os jovens são os que mais sofrem. “Não há distinção, eles chegam de forma ríspida com qualquer um, mesmo com aqueles que são trabalhadores, que são a grande maioria”, diz ela. A opinião é compartilhada pela amiga Cleidilene Rodrigues, de 40. “Eles querem respeito, mas não respeitam ninguém. O povo da Serra está cansado”, diz ela.
Fora das vielas e becos, nas ruas largas do Bairro Serra, a população se divide. “Esse tipo de acontecimento aumenta a tensão na região e nos deixa com mais medo”, diz a fotógrafa Katia Espírito Santo. “O resultado de uma comunidade cada vez mais tensa se reflete diretamente no bairro”, acrescenta ela. O comerciante Eduardo Couto Horta, de 47, discorda. “O policiamento nos passa segurança, não creio que haja uma sensação ruim. Porém, só posso falar do que vejo aqui, não conheço a realidade dentro do aglomerado”, afirma.
Uma mulher que prefere não ser identificada, moradora do bairro, afirma que a população vive com medo. “Acho que a polícia chega a ser pior em muitas situações. É uma forma de abordagem que nos intimida”, diz ela. A pedagoga Márcia Sampaio, de 47, disse já ter escutado tiros da janela de casa, na Rua Corinto. “É fato que, quando me mudei, há cerca de 10 anos, percebia mais policiamento, mas hoje não me sinto insegura. Levo minha vida normalmente, sem alterações.”
COMO FICOU?
Assassinatos no aglomerado
Dois militares presos à espera de júri
Os dois policiais acusados de assassinar o auxiliar de enfermagem Renilson Veriano da Silva, de 39 anos, e o sobrinho dele, Jeferson Coelho da Silva, de 17, durante operação no Aglomerado da Serra, em 19 de fevereiro de 2011, aguardam presos o julgamento no Tribunal do Júri por homicídio doloso e por posse irregular de dois revólveres com numeração raspada, que teriam plantado na cena do crime. Um terceiro policial, o cabo Fábio Oliveira, foi encontrado morto em 25 de fevereiro do ano passado em uma cela do 1º Batalhão. Nove outros policiais que chegaram ao local após o duplo homicídio foram indiciados, por prevaricação, sendo que dois deles responderão também por falsidade ideológica, por terem tentado livrar os colegas, adulterando a cena do crime. Logo depois da execução, manifestantes queimaram dois ônibus, um micro-ônibus e dois carros no aglomerado. Já o sargento Dalson Ferreira Vitor, do 22º Batalhão, preso pelo assassinato do servente de pedreiro Helenílson Eustáquio da Silva Souza, de 24 anos, em 24 de novembro do ano passado, aguarda julgamento em liberdade, mas não foi desligado da PM. Ele, no entanto, não atua mais no aglomerado.
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