OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL
Em 9 de março 2013 foi divulgado neste espaço artigo de minha autoria intitulado O Congresso das perguntas e o STF das respostas em que defendi uma visão mais aberta e benevolente dos juristas (personificado na figura do STF) com a dinâmica própria das discussões políticas em espaço tipicamente não-jurisdicional. No dia seguinte, foi divulgado, também na ConJur o artigo “A quem interessa um Supremo Tribunal Federal omisso?” de autoria de Bruno Vinícius da Rós Bodart. A opinião do colega acadêmico é oposta e defende que a jurisdição constitucional precisa continuar a controlar o Legislativo, a não ser que se aponte um “equívoco substancial do Supremo Tribunal Federal”, de que o modelo adotado é o “mais apto à promoção dos direitos fundamentais”. Faz inclusive a simbólica pergunta: “a quem interessa que o Supremo deixe que o jogo político corra desenfreado, quando a Constituição lhe assegura textualmente o papel de seu guardião?”.
Entendo que seria possível retorquir o artigo de 10 de março de 2013 com seus próprios argumentos, com sua própria linguagem e dentro de sua própria “lógica jurisdicional”. Aliás, trata-se do estilo de debates que tem merecido quase o monopólio de atenção de nossa atual teoria constitucional. Discutimos sobre nosso mundo jurídico, nossos instrumentos, nossos métodos, filigranas conceituais, principiológicos, demonstramos erudição e estofo teórico, sempre sob a perspectiva da centralidade do direito e sob o enfoque de que ao Supremo Tribunal Federal foi dada pela Constituição posição de ascendência em relação a qualquer outra instituição.
Entretanto, acredito que há mérito em trazer o debate para uma perspectiva mais ampla, que põe em evidência duas facetas bastante marcadas dos movimentos de filosofia e de filosofia do direito do século XX. Parto do pressuposto de que nossa própria visão dos estudos constitucionais não é despegada ou ingênua. Em realidade, essa forma de enxergar as questões constitucionais (tal como está na perplexidade da pergunta acerca do “jogo político correr desenfreado”, muito embora não se questione a preocupação com o “jogo jurídico-jurisdicional correr desenfreado”) traz em si o simbolismo de uma mentalidade específica. É essa mentalidade que merece ser avaliada antes mesmo de transformar a oposição de visões expostas nos artigos em “torcidas” a favor ou contra a jurisdição constitucional.
Nossa divergência vai muito além de se apurar quem é a favor do STF (e seus 11 identificados ministros) ou a favor do Congresso (com seus 594 identificados parlamentares). O que se tem é uma oposição entre aqueles que entendem que a razão (no caso, jurídica) pode nos levar a algum tipo de “revelação” ou a uma “resposta correta” das questões constitucionais (se for desenvolvido pelo método correto) e aqueles que, decepcionados com o projeto racional-iluminista, não conferem a essa razão jurídica posição de destaque, mas papel funcional no jogo político-democrático.
Para a finalidade específica de tratar dessa oposição, entendo que Bruno Bodart se aproxima mais do movimento neoconstitucional do que eu, uma vez que essa corrente de pensamento constitucional traz essa lógica diluída em seu discurso (com as medidas para mais ou para menos de cada autor). Chegaria a afirmar que essa posição, de fato, é representativa da mentalidade que compõe os estudos constitucionais no Brasil: toma por base o preciosismo do racional jurídico, imagina o processo de interpretação como algo técnico que pode ser enquadrado em um método “correto” (daí, inclusive, não se aceitar bem a dinâmica própria da política que, por óbvio, não tem método), crê em um ambiente jurisdicional infenso a defeitos de interpretação ou até asséptico de posições políticas, acredita que o regime democrático precisa de uma figura onipresente, de um guardião que vele pelo futuro de todos e corrija os erros de seus súditos (ou jurisdicionados), supõe que discutir juridicamente uma questão é um salto evolutivo e civilizatório em si, entende que há algo intrinsecamente suspeito nos mecanismos políticos de tomada de decisão e algo intrinsecamente belo e coerente no processo jurisdicional de tomada de decisão, confia transcendentalmente que a jurisdição constitucional é elemento essencial no esquema democrático e que o constitucionalismo não existiria sem essa figura.
Para quem parte desses pressupostos, parece até óbvio que a crítica ao STF somente possa ser feita se for possível apontar um “erro” de julgamento. De fato, seria até possível apontar “erros” de julgamento. O próprio STF avalia esse ângulo quando cassa decisões monocráticas em plenário ou revê sua própria jurisprudência. Entretanto, não é disso que se trata esse debate, uma vez que diagnosticar uma decisão do STF como “erro” depende da posição política e ideológica de quem avalia e se essa posição restou vencedora ou vencida no Tribunal. Para quem enxerga o trabalho do STF sob um viés funcional torna-se difícil imaginar que questões como aborto, cotas, células-tronco, casamento homoafetivo, questões religiosas, marcha da maconha, relações entre poderes, trazem em si o germe de uma “resposta correta” que seria alcançada com o método adequado.
Esse quadro de pressupostos ou “crenças” daqueles que pensam em termos de onipresença judicial está balizado em um princípio primordial: a ideia fundante de que a razão jurídica nos libertará do mal, da insegurança, dos corruptos, dos problemas e das angústias. Para essa corrente, as incertezas e dissensos intrínsecos à vida — e que são bem representados e catalisados nos ambientes de discussão política — se resolvem com sofisticação técnica de pensamento, com aprofundamento dos métodos e princípios de interpretação e com objetivação de condições que deveriam balizar e, assim, limitar essa insegurança (a necessidade de um “compromisso inexorável com a razão”).
O Direito, o Judiciário e o STF funcionam como personificações dessa razão jurídica sublime que nos salvará. Por consequência, o que não se enquadra nessa formatação especial da “lógica jurisdicional”, todas as formas de interlocução ou raciocínio que não se baseiem na segurança e na ordem (dogmática) são, por conceito, ameaças a esse encaixe das coisas. A dinâmica dos debates políticos do Congresso passa a ter importância secundária e o STF acaba por acumular uma posição perigosa de oráculo, de “superego da sociedade”. A própria jurisdição constitucional deixa de ser uma construção histórica e passa a se basear em algum tipo de princípio transcendente e atemporal de justiça ou de democracia que, na mão dos interessados no fortalecimento dos Tribunais, indica quadros de verdadeira inversão institucional. Bruno Bodart sugere, por exemplo, no seu artigo, que a democracia talvez seja melhor representada pelo STF que “raramente decide em desacordo com a opinião pública” e não pelo Congresso que “atua, em inúmeras situações, em desarmonia com o entendimento da maioria do povo” e que bem poderia ser substituído por uma “democracia direta digital”.
Quando chegamos a esse ponto, nossas reflexões se distanciam perigosamente dos problemas que tais instituições deveriam resolver ou equacionar. Imaginamos fórmulas teóricas absolutas, justificamos posições drásticas, reduzimos a complexidade das questões uma vez que o texto constitucional “é de clareza meridiana”, reafirmamos a lógica da superioridade da jurisdição constitucional e defendemos que ela bem pode dialogar com o direito comparado, aplicar a doutrina estrangeira, mas não pode se sujar no diálogo com o Congresso ou ver os trabalhos desenvolvidos naquela Casa com respeito e boa vontade. Por isso mesmo, causa surpresa conceder a uma resposta informal do professor Alec Stone Sweet, de Yale, como faz o artigo, uma áurea de princípio interpretativo da relação entre poderes no Brasil, valor esse que acho difícil que o próprio professor concordasse em dar. Nesse ponto não se fala mais de espaços legítimos de atuação jurisdicional e da relação entre Congresso e STF. Passamos ao campo do fundamentalismo quando se tem que diminuir o Congresso e discutir a sua própria existência para valorizar o trabalho do STF.
Volto a dizer que a teoria constitucional dos próximos anos precisará assumir novo papel nessas questões, necessitará desenvolver fórmulas criativas de diagnosticar problemas e propor alternativas de encaminhamento. Para tanto, o Direito — visto da forma tradicional — oferecerá exíguos limites e certamente será necessário ampliar os horizontes, dar voz a visões multifacetadas de um determinado problema. A jurisdição constitucional, por esse enfoque, deixa de ser um fim em si e passa a ser um meio para se atingir valores mais altos.
Essa linha de reflexões certamente não leva a um desprestígio da jurisdição constitucional, a não ser que se assuma que a única forma de valorizá-la seja imaginar um STF total e superior, com o pátrio poder sobre outras instituições de equivalência política. Seu trabalho é certamente o de julgar, de dar decisões, de definir questões. Porém, nada impede que esse trabalho diário seja dirigido por um senso de mediação, de interlocução, de abertura, de equacionamento adequado de posições, de se dar primazia à solução de impasses e problemas práticos. Para aqueles que não são deslumbrados com o projeto racional, o STF não precisa ser “herói”, “salvador”, “professor” ou “censor” para reafirmar seu papel fundamental no esquema institucional de separação e harmonia entre os Poderes.
Rodrigo de Oliveira Kaufmann é professor de Direito Constitucional e de Filosofia do Direito em cursos de graduação e pós-graduação em Brasília. Foi assessor e chefe de gabinete de três ministros do Supremo Tribunal Federal. Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Direito e Estado (UnB). É membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
Revista Consultor Jurídico
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