Se o laudo da perícia não diz expressamente que a erva esverdeada apreendida pela Polícia contém em sua composição tetraidrocanabinol (THC), substância proscrita, não se pode falar em materialidade delitiva. Isso porque a Portaria 344 da Anvisa, embora reconheça que a Cannabis sativa (nome científico da maconha) possa originar substância entorpecente, não faz alusão, no rol taxativo, de substâncias de uso proibido aos canabinóides.
Com esse entendimento majoritário, o 2º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acolheu Embargos Infringentes para reformar sentença e absolver um usuário de drogas da acusação de tráfico na Comarca de Três Passos.
O recurso de Embargos foi ajuizado pela defesa porque a decisão em sede de Apelação se deu por maioria — dois votos a um —, provocando um novo julgamento no colegiado, que é formado por integrantes da 3ª e da 4ª Câmaras Criminais do TJ-RS.
O desembargador que fez prevalecer o voto divergente, Diógenes Hassan Ribeiro, disse que o laudo não trouxe prova de que o material apreendido pela Polícia se tratava realmente de maconha, contendo o TCH — substância de uso proscrito no Brasil. Apontou, apenas, ‘‘resultado positivo’’ para canabinóides. E, nesse caso, a melhor solução seria absolver o denunciado, por ausência de materialidade — entendimento acolhido pela maioria.
O desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, que ficou vencido, ainda argumentou que era desnecessário mencionar a presença de THC no material, bastando que a perícia concluísse pela existência de substância que cause dependência química e seja de uso proscrito — exatamente como é o caso da Cannabis sativa. O acórdão foi lavrado na sessão do dia 14 de junho.
O caso
Em 21 de outubro de 2011, por volta das 8h, policiais civis e militares apreenderam seis tabletes de maconha na residência de Marcos Schulbach, na Comarca de Três Passos, distante 470km de Porto Alegre. O auto-de-prisão também registrou a apreensão de duas sacolas plásticas ‘‘que apresentavam cheiro de maconha”, uma xícara com três pontas de cigarros feitos com a droga, cinco folhas de Cannabis sativa e R$ 80 pertencentes ao acusado. A diligência de busca e apreensão foi motivada por várias denúncias anônimas à Polícia local, dando conta que Marcos estaria traficando drogas.
Interrogado, Marcos admitiu a posse da droga, alegando, porém, que era para consumo pessoal. Disse que já usou todo tipo de entorpecente, mas que ultimamente estava usando somente maconha. Ressaltou que todas as vezes que roubou foi para sustentar o vício. Afirmou que fuma um ou dois cigarros por dia e que a droga encontrada, pesando 79 gramas, seria consumida em uma semana.
Em vista dos fatos, o Ministério Público estadual o denunciou como incurso nas sanções do artigo 33, caput, da Lei 11.343/2006 — guardar e fornecer drogas em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Para manter a garantia da ordem pública, o juízo local determinou a prisão preventiva do denunciado.
Decorridos quase seis meses após a prisão, o juiz Marcos Luís Agostini, titular da 1ª Vara de Três Passos, proferiu a sentença condenatória. No seu entendimento, a materialidade do fato delitivo foi comprovada pelo auto-de-prisão em flagrante, pelo auto-de-apreensão da droga, pelo laudo de constatação definitivo e ainda pela prova oral que veio aos autos. Ou seja, o denunciado não era apenas consumidor da droga, mas também traficante.
Por ser primário e não integrar organização criminosa, Marcos foi condenado a um ano e nove meses de reclusão, pena a ser cumprida em regime fechado, sem direito à substituição por restritiva de direitos ou suspensão condicional. O juiz determinou, também, o pagamento de 164 dias-multa à razão de 1/30 do salário-mínimo. O réu conseguiu o direito de apelar em liberdade.
Apelação ao TJ-RS
Inconformada com a decisão, a defesa de Marcos encaminhou Apelação à 3ª Câmara Criminal do TJ-RS. O relator, desembargador Jayme Weingartner Neto, manteve a condenação imposta, mas alterou a pena: substituiu o encarceramento por duas penas restritivas de direito, sendo uma de prestação de serviços à comunidade e outra de limitação de fim de semana. O voto foi acompanhado pelo colega João Batista Marques Tovo.
Em oposição ao entendimento majoritário, o desembargador Diógenes Vicente Hassan Ribeiro apresentou voto divergente pedindo a absolvição de Marcos, por entender que não existe prova da materialidade do fato nos autos, como autoriza o artigo 386, inciso II, do Código de Processo Penal.
Segundo Ribeiro, os laudos periciais concluíram que no material analisado foi identificada a presença de canabinóides, característica da espécie vegetal Cannabis sativa. ‘‘Ora, é sabido que a substância Cannabis sativum integra a lista E, referente a plantas que podem originar substâncias entorpecentes ou psicotrópicas. Todavia, na lista F, que estabelece a lista das substâncias de uso proscrito no Brasil, não há nenhuma menção a tal vegetal ou mesmo aos canabinóides identificados pelo laudo realizado’’, observou.
A seu ver, cabia ao laudo constatar a presença de tetraidrocanabinol (THC), substância psicotrópica de uso banido no Brasil, conforme aponta a lista F2, item 28, da Portaria 344/98, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
‘‘Pode parecer que há certo rigor na análise da prova constante do laudo pericial. Contudo, não havendo menção da presença da substância THC no material apreendido, é permitida a conclusão de que se trata de produto diverso de ‘maconha’. A prova penal deve ser, como se sabe, escorreita a admitir a condenação sem margem para dúvidas’’, concluiu o desembargador. Esse voto divergente é que provocou os Embargos Infringentes.
Clique aqui para ler o acórdão do 2º Grupo Criminal.
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Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico
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