ORDEM EXTRATERRITORIAL
O Brasil obrigar outro país a dar salvo-conduto a acusado estrangeiro asilado na embaixada brasileira fere a soberania nacional, ainda mais com base em acordo bilateral não ratificado pelo país onde está o interessado. A opinião é da Advocacia-Geral da União brasileira, juntada aos autos de pedido de Habeas Corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal em favor do senador boliviano Roger Pinto Molina (foto), asilado na Embaixada do Brasil em La Paz desde maio do ano passado.
O senador de oposição ao governo de Evo Morales, presidente da Bolívia, responde a pelo menos 20 processos judiciais por crimes como corrupção, abuso de autoridade, doações irregulares e desacato ao governo, com ordens de prisão já expedidas, após denunciar funcionários do governo de envolvimento com o tráfico de drogas. A presidente Dilma Rousseff atendeu, no dia 6 de junho do ano passado, a pedido de asilo feito pelo senador 11 dias antes. Ela requereu ainda salvo-conduto e garantias de segurança até a saída do senador do solo boliviano, mas o presidente Evo Morales se recusa a permitir. Segundo informações do senador às autoridades brasileiras, sua família já está no Brasil.
Foi o advogado Fernando Tibúrcio Peña quem ajuizou, em maio último, o pedido de Habeas Corpus Extraterritorial no Supremo em favor do senador, o primeiro do tipo. Ele baseou seu pedido em decisão da Suprema Corte americana sobre Lakhdar Boumediene, um argelino colaborador do Crescente Verde (similar da Cruz Vermelha nos países islâmicos) preso na Bósnia e depois mantido sete anos sob custódia dos Estados Unidos em Guantánamo, território cubano.
Peña explica a comparação com o caso do argelino: "O Habeas Corpus extraterritorial — o primeiro caso do gênero submetido a apreciação Justiça brasileira — impetrado em favor do senador Roger Pinto Molina tem como precedente uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em favor de Lakhdar Boumediene, um cidadão de origem bósnio-argelina que esteve preso por mais de sete anos em Guantánamo. Tirando-o do mesmo limbo que se encontra hoje o nosso senador boliviano, a referida decisão reconheceu o direito de alguém que estava detido fora do território dos Estados Unidos, mas indubitavelmente sob a jurisdição deste país, de recorrer à Justiça local".
O avogado demanda que Molina seja transportado em veículo oficial brasileiro — que teria a mesma inviolabilidade e soberania da embaixada — para fora do país. Pede ainda que a ele seja permitido conceder entrevistas e receber cuidados médicos. De acordo com o advogado, há 13 meses o senador está limitado a um espaço de 20 m2 dentro da embaixada, não pode receber visitas e tem que pedir por escrito sempre que precisa de um médico. O advogado reclama, ainda, empenho do Brasil nas negociações com o governo boliviano e sugere que, se elas não forem bem sucedidas, seja oferecida ao senador a opção de deixar a embaixada em carro oficial brasileiro.
No pedido, Peña argumenta que a inércia diplomática do Brasil contraria acordos internacionais — em especial a Convenção sobre Asilo Diplomático, assinada em Caracas, na Venezuela, em 1954, e ratificada pelo Brasil pelo Decreto 42.628, de 1957 — e implica “abuso de poder, por omissão”.
Pedido impossível
O relator do caso é o ministro Marco Aurélio, que pediu, em maio, informações à Presidência da República para poder decidir. A Procuradoria-Geral da República opinou pela rejeição do HC. O ministro ainda não proferiu decisão.
“Ao que consta, trata-se do primeiro Habeas Corpus Extraterritorial de que se tem notícia na história de nossa jurisprudência”, afirma a Consultoria-Geral da União em manifestação destinada ao STF, assinada pelo advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, em 31 de maio. Situações semelhantes, segundo o documento, foram julgadas apenas duas vezes pela Justiça brasileira: em 1903 e em 1907, ambas sob a vigência da Constituição de 1891. “Nos dois casos discutiu-se a possibilidade de membros da Família Real deixarem ou entrarem em território nacional, especialmente no que se refere à extinção da odiosa pena de banimento”, diz a manifestação.
Para a Consultoria-Geral da União, a restrição de locomoção do senador na embaixada brasileira é resultado da proteção que recebe, e não motivo para a impetração de HC. “Não há violência ou coação ilegal por parte da autoridade designada coatora (…) à luz do Código de Processo Penal”, afirma no documento. “O governo brasileiro não ameaça, violenta ou coage o paciente.”
Segundo as informações prestadas pela AGU, o pedido é impossível de ser cumprido, já que “não se identifica a autoridade a quem incumbiria cumprir a ordem, dado que o problema encontra-se na confecção e oferecimento do salvo-conduto, e não na proteção do paciente”, diz. “A autoridade coatora [a presidente da República] e o governo brasileiro, ao contrário do alegado pelo impetrante, protegem o paciente. Se restrições há, estas decorrem da recusa do governo boliviano em conceder o salvo-conduto.”
A Consultoria lembra que, apesar de o pedido de HC acusar o Brasil de descumprir tratados, a Convenção sobre Asilo Diplomático — a Convenção de Caracas — não foi ratificada pela Bolívia, o que a desobriga de cumpri-la. “O princípio da não intervenção conta com matiz constitucional e é determinante para o governo brasileiro. Exigir que a Bolívia providencie salvo-conduto para o paciente seria, por parte das autoridades brasileiras, descumprimento à Constituição Federal”, afirma. Além disso, segundo a AGU, o HC é instrumento que não pode depender da análise de provas, o que não é o caso das alegações feitas pelo representante do senador. O órgão lista 26 HCs julgados pelo STF desde a década de 1950 que sustentam a posição.
O advogado do senador rebate e diz que não exigiu, no HC, que o Brasil obrigasse a Bolívia a expedir salvo-conduto. "Em nenhum momento é requerido que a Bolívia seja obrigada a expedir um salvo-conduto. O que peço é que um veículo diplomático seja colocado à disposição do senador. Portanto, em todos os momentos o senador ficará, exatamente como se encontra hoje na embaixada em La Paz, sob a jurisdição do Brasil, não havendo, em razão disso, quebra da soberania do Estado boliviano", disse à ConJur.
A manifestação aponta ainda que os precedentes internacionais usados pelo advogado de Molina para basear seu pedido não se aplicam ao caso do senador. “O prisioneiro norte-americano em Cuba estaria ainda sob o jugo e responsabilidade das autoridades norte-americanas”, diz o documento. E cita julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos no sentido inverso ao do mencionado pelo advogado. O exemplo da AGU dá conta de que a Justiça dos EUA indeferiu pedido de dois cidadãos americanos detidos no Iraque — Shawqi Omar e Mohammad Munaf — acusados de crime de terrorismo. Eles pediram liminar em Habeas Corpus que lhes permitisse serem julgados nos Estados Unidos, pelos motivos de serem americanos, civis e inocentes. “O Habeas pretendia que se obstaculizasse a transferência dos pacientes para a jurisdição do Iraque. E porque o pedido interferia na soberania iraquiana, que detém competência para julgar crimes cometidos em seu território, não poderia prosperar a tese dos pacientes, no entender da Suprema Corte”, opina a AGU.
Limitações legais
Informações prestadas pelo secretário-geral das Relações Exteriores do Brasil, Eduardo dos Santos, também rebatem declarações feitas no pedido de HC. Segundo ele, as autoridades bolivianas afirmaram não estarem juridicamente obrigadas a conceder o salvo-conduto, justamente porque a Bolívia não ratificou a Convenção de Caracas. Elas se opõem aos argumentos diplomáticos devido ao fato de haver ordens de prisão expedidas pela Justiça do país.
Santos reconhece que a embaixada brasileira restringiu as visitas recebidas pelo senador a familiares, advogados e médicos, mas justifica que encontros anteriores passaram a ser vistos como atividade política pelas autoridades bolivianas, “tanto pela natureza das pessoas que o visitavam, como pelo teor das declarações públicas que concediam após as visitas”, diz o documento entregue à AGU. Segundo o secretário, esse fato poderia configurar violação, pelo Brasil, do artigo XVIII da Convenção de Caracas, que prevê que “a autoridade asilante não permitirá aos asilados (…) intervir na política interna do Estado territorial”. Além disso, o documento informa que o senador tem a sua disposição telefone, computador e tablet com acesso à internet, além de uma cama, “televisão, um pequeno escritório e uma esteira ergométrica”.
Caso análogo
Documento aprovado no último dia 12 pelos presidentes dos países que integram o bloco do Mercosul — Argentina, Uruguai e Venezuela — compromete esses Estados a “não impedir a implementação do direito ao asilo”. Diz o documento: “[Os presidentes] reafirmaram a plena vigência do direito de asilo, consagrado no artigo 14 da Declaração Universal de Direitos Humanos e , portanto, reiteraram a faculdade que assiste a todo Estado soberano de outorgar asilo a qualquer cidadão do mundo em conformidade com as normas de direito internacional que regem esta matéria”.
A Bolívia, cuja processo de adesão no Mercosul está em andamento, apoiou a regra. Segundo a Agência EFE, o documento se referiu indiretamente ao caso do ex-consultor norte-americano Edward Snowden, que denunciou espionagem feita por agências dos Estados Unidos a cidadãos no país e no exterior, e que teve o pedido de asilo oferecido pelos governos da Venezuela, da Nicarágua e da Bolívia. Snowden, cujo passaporte foi anulado pelos EUA, está provisoriamente em uma área de trânsito do aeroporto de Moscou, na Rússia.
O advogado Fernando Tibúrcio Peña e autoridades brasileiras que estudam o caso de Molina avaliam que o entendimento do caso Snowden pode se aplicar também ao do senador. “Há uma clara contradição no fato de os presidentes do Brasil e da Bolívia terem tomado na recentíssima reunião de cúpula do Mercosul em Montevidéu a importante decisão [sobre o reconhecimento universal do direito de asilo político] e, na prática, esta decisão só servir para Edward Snowden”, disse o advogado àAgência Brasil.
Em 2011, um avião da Força Aérea Brasileira foi revistado pela Polícia boliviana quando retornava ao Brasil com o ministro da Defesa, Celso Amorim. “Essa informação deixa claro que, naquele ano, o governo boliviano já temia que Roger Pinto recorresse ao instituto do asilo, após várias denúncias do senador, relacionando parlamentares do alto escalão do governo Morales com as atividades do narcotráfico internacional”, disse Tibúrcio ao Jornal do Brasil, segundo reportagem publicada nesta quarta-feira (17/7).
“Se o senador atravessasse a fronteira caminhando, o governo boliviano estava preparado para enquadrá-lo como um criminoso covarde, mas na condição de asilado, o pais concedente entende a natureza política das acusações feitas ao solicitante. O governo de Morales não queria esse desfecho”, explicou o advogado.
Clique aqui para ler o pedido de HC.
Clique aqui para ler a manifestação da Consultoria-Geral da União.
Clique aqui para ler o parecer da PGR.
HC 117.905
[Notícia alterada em 20 de julho de 2013, às 10h29, para correção e acréscimo de informações.]
Alessandro Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico
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