A aceitação da exploração do trabalho e a exposição ao risco decorrem da necessidade de sobrevivência; vista pelo avesso, a obediência, ganhou status de virtude e a recusa em expor-se a ele, a de covardia. São extremos de conduta social, exclusivamente humanos, que somam instinto, sociabilidade, moralidade e moralismo. Portanto, risco e subordinação são conceitos arraigados em práticas que atravessam a história e se universalizaram com o capitalismo. Por Herval Pina Ribeiro.
Herval Pina Ribeiro (*)
A convivência com o risco dentro e fora do trabalho percorre toda a história da humanidade. De natural ele se converteu em social, sobretudo depois da revolução industrial. Risco natural significa inexistência de relações entre sujeitos, resultado da atuação singela do indivíduo contra as forças da natureza. Expor-se voluntariamente ao risco é excepcional, nunca uma necessidade. Só nesta situação se deveria falar em exposição natural ao risco por livre arbítrio. O risco natural é comum a todas as espécies animais e a resposta natural a ele é a fuga. No entanto, nas sociedades de classe, e na capitalista em particular, o risco resulta de relações assimétricas entre sujeitos, em que uma parte, a submetida, por não ter poder decisório, é a que expõe-se ao risco. O que existe é um processo contínuo de sujeição social ao risco.
A aceitação da exploração do trabalho e a exposição ao risco decorrem da necessidade de sobrevivência; vista pelo avesso, a obediência, ganhou status de virtude e a recusa em expor-se a ele, a de covardia. São extremos de conduta social, exclusivamente humanos, que somam instinto, sociabilidade, moralidade e moralismo. Portanto, risco e subordinação são conceitos arraigados em práticas que atravessam a história e se universalizaram com o capitalismo.
A história da humanidade é, também, a história dos valores sociais como esses, vale dizer, do poder das regras sobre o instinto, ainda que seja sobre o instinto de sobrevivência. É preciso, segundo o discurso normativo, que as haja para que literalmente não nos devoremos uns aos outros, importando pouco se este canibalismo, moralmente condenado, seja virtual, através da exploração e adquira feições violentas dentro e fora do trabalho.
O que determina a obediência em situações críticas? O que leva o indivíduo a se sujeitar ao risco e à morte, justo o que ele mais teme? O que o faz abdicar de sua vontade e consciência? O que o torna tão submisso a despeito de ameaça tão onipresente?
Ferir-se, adoecer e morrer do trabalho são possibilidades, abstrações; podem ou não acontecer. Negar-se a este risco socialmente determinado implica de imediato em alguma forma de sanção. Quem se nega a obedecer é punido: na guerra como covarde, no trabalho como insubordinado e fora dele como contraventor. São ápodos morais que resultam em processos de exclusão social e induz ao medo de não ser mais aceito, ser demitido, perder os meios de sobrevivência e a liberdade, medo da morte em vida.
Nesses dois séculos de revolução industrial, os processos de produção e as relações sociais mudaram muito e com eles a natureza e frequência dos riscos e a qualidade dos danos. Sua materialidade é expressa pela exuberância dos números e gravidade dos acidentes e doenças do trabalho que continuam ceifando a saúde e vida de centenas de milhões de trabalhadores em todo o mundo. Mas, ao par destes danos que desintegram fisicamente o trabalhador, há outros riscos imateriais e danos sutis que rompem sua integridade psíquica e afetiva e o fazem adoecer.
Em tais situações, seja o risco físico ou imaterial, o medo está presente sob formas e graus diferentes, resultado da percepção abstrata da sua presença. Diante do perigo pressentido, ainda que não materializado, o trabalhador se pune com a angústia, preâmbulo do adoecimento. Sente-se inseguro por não saber ou por ter medo de errar e ter de arcar com as consequências.
Saber sobre o trabalho e seus presumidos riscos, sejam naturais ou sociais, mesmo que não se os possa eliminar, é uma forma de assumir, em parte, o domínio da situação e coibir a angústia. Mas, ainda que, até certo ponto, saber seja profilático, não é suficiente para coibir o risco e o dano, sobretudo se sua determinação é social e as relações de poder persistem embora, historicamente, mudem de qualidade (Ribeiro, 1999).
Inescapáveis ou não, risco e medo fazem o homem engendrar estratégias para poupar-se, tanto mais eficazes quanto maior seu conhecimento sobre o risco. No final do século XIX, os riscos matérias no trabalho se tornaram excessivamente banais em decorrência da aceleração e intensidade dos processos produtivos, calcadas na apropriação e incorporação de tecnologias novas e novas relações sociais. Ainda que predominantemente físicos, eram de outro tipo, mais frequentes e com consequências mais graves, acabando por se tornarem escândalo social e uma questão pública. Desgraçadamente, à medida que cresciam, em número e gravidade, aumentavam também a complexidade dos processos produtivos, o desconhecimento dos trabalhadores, a impossibilidade de conhecerem o próprio trabalho e a perda de autonomia dentro e fora do emprego.
Com a incorporação das novas tecnologias e maior automação dos processos produtivos, o dano imediato e a morte no trabalho passaram a ser menos frequentes; com o que o medo da perda física de partes do corpo ou da vida diminuiu; porém cresceram outros tipos de risco e danos à saúde, como os relacionados à intensidade e pressão do trabalho, à insegurança no emprego que causam distúrbios orgânicos e psíquicos que podem levar à incapacidade e à exclusão social. Há, pois, diferenças qualitativas de medo.
Nos países mais industrializados, mais da metade da força de trabalho está hoje alocada no setor terciário da economia, a maior parte a realizar tarefas de escrituração e de comércio onde predominam os riscos imateriais e os danos sobre o psiquismo; os riscos físicos e a mortalidade são altas apenas em algumas atividades do setor, como no ramo de transportes e segurança.
Mesmo nas atividades industriais e agropecuárias, a probabilidade atual imediata de adoecer ou morrer devido os riscos físicos do trabalho, está se tornando progressivamente menos expressiva em função da automação dos processos produtivos e da diminuição relativa da força de trabalho. Contudo, apesar da redução numérica de acidentes e doenças tipificadas como do trabalho, não se pode, a rigor, falar da diminuição do risco social do trabalho que pode existir sem que haja conhecimento dele e sem que ele necessariamente desperte medo.
A despeito das mudanças quantitativas da força de trabalho requerida e dos avanços tecnológicos, o trabalho continua sendo um dos pilares fundamentais indispensáveis à produção, industrial ou não, no campo e na cidade, conquanto se utilize cada vez mais a automação e cada vez mais o operário moderno se distancie do artesanato e da manufatura.
São fatos irrecusáveis as mudanças da natureza do trabalho, a automação crescente dos processos produtivos, as alterações do perfil e alocação da força de trabalho e dos acidentes e doenças e de suas relações e correlações. Essa complexidade, atribuída à automação, leva alguns ideológicos a inferir e difundir, ao mesmo tempo, o fim próximo da necessidade do trabalho e de seus efeitos sobre a saúde física, trazendo como consequências imediatas o medo do desemprego e debilitação da resistência dos trabalhadores às novas exigências do trabalho, induzindo-os a acreditar no aperfeiçoamento infinito das máquinas ao ponto da produção vir a prescindir do trabalho.
O homem, que não é máquina, é devagar e erra; mas a máquina que ele constrói, supostamente, erra menos. Por certo um paradoxo, mas que desperta a intenção e ação de exigir a todos comportamentos automatizados. E se há incentivos materiais ou sociais que remunerem este confronto mudo, tanto melhor. Deste modo reativo, o medo se transforma em desafio e o confronto com o instrumento de trabalho, a máquina, aumenta a angústia e, ao mesmo tempo, a produtividade.
Historicamente, o aumento da produtividade pós-revolução industrial repousou na exploração extensiva e intensiva da força de trabalho e na incorporação de novas tecnologias. Nenhum desses componentes desapareceu; a apropriação de inovações tecnológicas tem servido para intensificar o trabalho, manter praticamente a mesma jornada de um século atrás e baratear seu custo sob a ameaça do desemprego. As máquinas modernas não são apenas mais velozes e precisas: induzem os trabalhadores a também sê-lo por necessidade e medo.
Para muitos trabalhadores, este confronto induzido e desigual resulta em problemas de saúde e doenças que são formas não reconhecidas e individuais de expressar o sofrimento com o trabalho e a vida. Porém, o adoecimento tem ganho dimensões coletivas e atingido trabalhadores de várias categoriais, revelando o aguçamento do conflito do trabalhador com o seu trabalho, tendo como pano de fundo as contradições entre o trabalho e o capital. O exemplo emblemático mais recente é o das Lesões por Esforços Repetitivos/LER. O trabalho e o medo se fizeram LER.
Agora são muitos os adoecidos por LER. Só assim, com a expansão da doença,
a informação sobre uma das suas causas imediatas...
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