A coragem que a impulsiona parece alimentada pela percepção de que ela está deixando para trás um mundo carcomido. Ela não reconhece aquilo como seu.
Marco Aurélio Weissheimer
“A voz da mulher não deve ser ouvida pelos homens lá fora. A voz da mulher é a nudez dela”. A ríspida e enérgica advertência feita por uma professora saudita a duas alunas que falavam e riam alto no pátio da escola é um exemplo do tipo de dificuldade que Wadjda, uma menina de 10 anos de idade, vai encontrar para realizar seu sonho: ter uma bicicleta. É um sonho proibido para as meninas sauditas. Uma entre tantas outras proibições que fazem parte da vida das mulheres na Arábia Saudita. Elas não devem ser ouvidas e muito menos vistas.
“Se a gente vê os homens, eles veem a gente. Meninas de respeito não são vistas”, ouve Wadjda na escola. Mas Wadjda, assim como sua criadora, a cineasta saudita Haifaa al-Mansour, ignora todas essas proibições e persegue seu sonho com obstinada coragem até o fim.
O Sonho de Wadjda é o primeiro longa-metragem rodado inteiramente dentro da Arábia Saudita, um país onde os cinemas ainda são proibidos. O simples fato de o cinema ganhar uma realizadora saudita talentosa e corajosa como Haifaa al-Mansour é um indicador que parecem existir muitas Wadjdas querendo comprar as suas bicicletas naquele reino. A Wadjda do filme, vivida pela ótima Waad Mohammed, é uma colecionadora de sonhos e objetos proibidos: fitas cassetes com gravações de músicas românticas e rock’n roll (“músicas malignas), pulseiras de times de futebol, um par de tênis com cadarços de cor lilás. Querer andar de bicicleta também entra nesta coleção maldita. “Você não vai poder ter filhos se andar de bicicleta”, escuta ela da própria mãe, sob permanente ameaça de perder o marido para outra esposa.
As restrições que pesam sobre a vida das mulheres na Arábia Saudita são variadas. A história contada por Haifaa al-Mansour, porém, não mostra mulheres submissas e resignadas. A cineasta recusa a linha do “coitadismo”. Em entrevista à revista TPM, Haifaa diz que o foco de seu trabalho não são os preconceitos e obstáculos enfrentados em seu país: “para as mulheres sauditas é muito fácil dizer que tudo é difícil, que a Arábia Saudita é um país muito conservador e não fazer nada para mudar esse quadro. Precisamos seguir em frente, lutar e torcer para que consigamos transformar a sociedade saudita em um povo mais tolerante. O reino está se abrindo, há oportunidades para as mulheres agora, as coisas estão mudando. Sempre haverá pessoas que irão pressionar as mulheres para que elas fiquem em casa, quietas, mas nós temos que lutar”.
O Sonho de Wadjda é um filme de combate. O objetivo perseguido pela pequena lutadora protagonista da história é, conforme nos diz a diretora, uma metáfora para uma luta maior: “A bicicleta é uma metáfora para liberdade de movimento, que não existe para mulheres e garotas na Arábia Saudita. Se eu quero ir a qualquer lugar, preciso de permissão de algum homem da família. Eu não posso dirigir um carro nem mesmo andar na rua ou tomar um trem sem permissão. Eu queria que a aceleração, o movimento da bicicleta desse vida ao debate intelectual e fizesse as pessoas entenderem que isso é apenas movimento”. De fato, durante todo o filme, Wadjda está se movimentando por espaços proibidos. Ela afronta limites e convenções com a naturalidade e a suavidade que uma criança de 11 anos pode apresentar.
A busca obstinada pela bicicleta é acompanhada por um olhar atento à situação da mãe ameaçada pela sombra de uma nova esposa articulada pela sogra. O pai ausente aparece esporadicamente no filme até se consumar o medo maior da mãe, uma situação que vai gerar um laço de solidariedade muito forte entre as duas mulheres. “Agora só restamos nós duas”, diz a mãe de Wadjda, sob os fogos de artifício do novo casamento do pai da menina. Essa nova realidade provocará uma mudança de comportamento da mãe em relação ao sonho da filha. Aliás, considerando o caráter determinado da personagem talvez “sonho” não seja a palavra mais adequada. Wadjda estabeleceu a compra da bicicleta como uma meta com um propósito bem definido: quer disputar uma corrida com seu melhor amigo Abdallah, e chegar na frente dele.
Para atingir sua meta, ela fará o que for necessário, inclusive disputar um concurso de leitura do Alcorão na escola, surpreendendo suas professoras que já a davam como um caso perdido para a categoria das “meninas de respeito”. De fato era, mas elas só ficarão sabendo disso tarde demais. Wadjda parece o tempo todo à frente das mulheres adultas que tentam enquadrá-la como uma “menina de respeito”. Ela está de fato. O olhar que ela dirige para o mundo de proibições que lhe é apresentado é o olhar de quem não reconhece aquele mundo como seu. Por isso ela precisa poder correr para chegar mais perto de outro mundo que vislumbra no horizonte. Um mundo onde as mulheres não precisam esperar o marido e seus amigos comerem para depois ficarem com os restos. Um mundo onde a filha possa colocar seu nome feminino na árvore genealógica do pai que só traz nomes masculinos. Um mundo onde o amor substitua o casamento de encomenda.
O olhar de Wadjda na cena final do filme persegue essas possibilidades de outros mundos possíveis. A coragem que a impulsiona parece alimentada pela percepção de que ela está deixando para trás um mundo carcomido e decadente. Ela não reconhece aquilo como seu. Mas, para além do retrato que oferece sobre a dura realidade das mulheres na Arábia Saudita, O Sonho de Wadjda é ótimo cinema. Com um ponto de partida simples, Haifaa Al Mansour conta uma história repleta de coragem, generosidade e esperança. Nestes tempos deslumbrados com as novidades tecnológicas que não param de aparecer, um bom roteiro, uma direção segura, comprometida com um tema, e a sintonia do elenco com o roteiro ainda são elementos indispensáveis para um ótimo filme. No meio de tanta porcaria e irrelevância que inunda as telas hoje, conhecer o trabalho de Haifaa é quase uma obrigação.
Créditos da foto: Divulgação
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