As tarefas do bloco histórico da esquerda democrática
Cândido Grzybowski (*)
Uma pergunta assim tem por trás uma premissa filosófica sobre a nossa própria condição de seres humanos. Concordo com Gramsci quando afirma que somos um “bloco histórico” [1]. Cada um, em sua individualidade, faz uma síntese de condições objetivas, que lhe são dadas, com a vontade aplicada (sonhos, desejos, visões e opções sobre o que quer ser e o que de fato faz). Somos um processo numa coletividade, num território, num momento histórico dado. Somos o processo de nossos atos nesta coletividade, no momento único de nossa vida. Viver é nos fazer a nós mesmos na interação com todos os outros e a natureza, em condições que herdamos e que, ao mesmo tempo, nossos atos modificam. Somos, por isto mesmo, essencialmente políticos e é no espaço comum da política – um bem comum que criamos – que definimos o sentido de viver como humanos e realizamos a nossa humanidade. A humanidade, em si mesmo, é um fazer-se contínuo, sempre renovado e diferente.
A gente pode ter muitas identidades, todas elas facetas do que e como nos fazemos humanos ao longo da vida, em determinadas circunstâncias. Identificar e incluir-se em um determinado bloco de forças políticas, ser de esquerda, enfim, não é algo dado, já definido, bastando aderir. É um fazer-se num processo de desafios e contradições, dialogando com o passado da humanidade, suas conquistas e derrotas, com as exigências, adversidades e possibilidades existentes no presente e com o que se quer moldar a partir do aqui e do agora, enfrentando e disputando com os que pensam e agem de outro modo. Lembro aqui o grande homem de esquerda nosso contemporâneo, que acaba de nos deixar, o Nelson Mandela, uma personalidade símbolo, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, uma expressão de força política coletiva portadora de um ideal, um bloco histórico transformador da sociedade sul-africana do apartheid.
Ser de esquerda é uma construção de identidade política não tão velha assim, pois remonta à Revolução Francesa e está intimamente associada a assumir uma posição de luta por igualdade. Assim como ontem, ser de esquerda hoje é reconhecer uma herança de lutas por igualdade entre os seres humanos e ser desafiado a renová-las nas condições atuais, nos limites de suas possibilidades, na maior radicalidade que nossa vontade consegue imprimir. É, por isto mesmo, analisar e combater as desigualdades e as exclusões sociais a que uma grande parcela da humanidade ainda está condenada a viver hoje, nas formas de hoje, com as possibilidades de hoje. Que a gente possa ser uma sociedade mais igual e não é, isto faz uma enorme diferença nas opções políticas que podemos fazer. Sou de esquerda porque penso que podemos fazer muito mais do que estamos fazendo pelo direito à igualdade entre todas e todos, sem discriminações. Por isto luto contra toda forma de exploração e, seu correlato, a dominação de uns sobre outros. E isto me faz parte do bloco de forças de esquerda com quem comparto o ideal de igualdade humana, sem servilismos e sem exploração, e me põe em oposição ao e em disputa política com o bloco de forças que nega a igualdade como possibilidade e pratica a exploração. Penso que se pode equalizar pela política as desigualdades geradas pelas estruturas sociais, pensamento forte instituinte do ser esquerda na política.
Ser de esquerda é, ao mesmo tempo, reconhecer que tanto ontem como hoje não existe igualdade sem emancipação social, sem a condição de ser livre e igual aos outros e às outras, para com eles e elas compartir o que temos em comum e juntos construir o nosso futuro comum. A liberdade é condição da igualdade, assim como liberdade sem igualdade não é liberdade. Ser de esquerda hoje é ainda trilhar o difícil caminho para a liberdade, como nos lembrou Mandela, pois sem ela não somos realmente iguais. Mas aqui estamos diante da disputa dos próprios sentidos da liberdade. A esquerda libertária em busca de igualdade, hoje, enfrenta politicamente a direita dominante que, em nome da liberdade de negócios privados, impõe a lei da selva da competição e da dominação dos mais fortes ao nível de mercado, em escala global. Ser de esquerda hoje é ser anti o neoliberalismo e anticapitalismo globalizado.
Mas não dá para ser de esquerda sem reconhecer o direito à diversidade, em suas múltiplas identidades, seja de gênero, de opção sexual, de cor de pele, de necessidades especiais, de religião e filosofia de vida. Optar por ser de esquerda é respeitar, defender e promover o direito à diversidade, como condição de igualdade e de liberdade. Como nos lembra Boaventura Souza Santos, diversidade até o ponto que não negue igualdade e igualdade até onde não atinga o direito à diversidade. Igualdade e diversidade com liberdade são princípios éticos básicos de uma esquerda em sintonia com os desafios e possibilidades de nosso tempo histórico. Não dá para ser de esquerda negando algum destes princípios que organizam as lutas políticas de hoje em oposição à direita e aos fundamentalismos violentos de todo tipo, do racismo ao machismo, passando pela imposição de comportamentos em nome da religião.
Ser de esquerda hoje é reconhecer que não existem direitos humanos sem responsabilidades também humanas. Direitos são direitos quando definidores da nossa comum e igual condição humana, sem discriminações. Neste sentido, direitos são uma relação social, uma qualidade social da própria coletividade em que vivemos. Todos temos o direito a ter direitos e isto define o ter cidadania. Por isto, nossa própria situação de detentores de direitos nos faz cidadãos corresponsáveis pelos direitos de todos os demais. Direitos que não são de todos, podem até estar definidos e reconhecidos legalmente em determinadas realidades – como temos em profusão aqui no Brasil patrimonialista...
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