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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O antropólogo contra o Estado. "Foi preciso a esquerda para realizar o projeto da direita"


Marcio Ferreira da Silva, um sujeito grandalhão e bem-humorado, professor de antropologia na Universidade de São Paulo, tentava encontrar um volume nas estantes de seu apartamento. Depois de perscrutar as prateleiras da sala, sumiu por um instante no corredor que levava aos quartos. “Achei”, exclamou. Trouxe lá de dentro uma edição especial da revista L’Homme, publicada no ano 2000, em que o antropólogo Claude Lévi-Strauss, aos 91 anos, comentava os avanços recentes de sua disciplina.
A reportagem é de Rafael Cariello, publicada na Revista Piaui, dezembro de 2013.
“Olha o que o bruxo escreveu!”, disse o antropólogo da USP. Passou então a ler em voz alta os parágrafos finais de um artigo em que o etnólogo francês exalta o trabalho dos “colegas brasileiros”, atribuindo a eles a descoberta de uma metafísica própria aos índios sul-americanos. “A filosofia ocupa novamente o proscênio da antropologia”, escreveu Lévi-Strauss. “Não mais a nossa filosofia”, acrescentou, mas a filosofia dos “povos exóticos”. O texto queMarcio Silva tinha nas mãos indicava que algo havia mudado na relação da academia brasileira com a metrópole – uma relação que poderia ser descrita como uma via de mão única, ou quase isso, ao longo da maior parte do século XX.
Num artigo que causou certa discussão, escrito em 1968 para a aut aut, prestigiosa revista italiana de filosofia, o filósofo Bento Prado Jr. registrou que resenhar, naquela publicação, as obras de seus pares produzidas no Brasil “não implicaria nenhuma informação para o leitor europeu”. E argumentava: “Aqui também se faz marxismo, fenomenologia, existencialismo, positivismo.” Mas não havia novidade ou contribuição maior: “Quase sempre, o que se faz é divulgação.” Três décadas depois, Lévi-Strauss identificava um conjunto de ideias na fronteira da antropologia e da filosofia que, a seu ver, o leitor europeu precisava conhecer.
Marcio Silva havia retirado outro volume da estante. Leu o título: Transformations of Kinship [Transformações do Parentesco]. “É a última grande compilação de estudos da área. O último grande livro do século XX. Tem um artigo doEduardo”, disse, referindo-se ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, seu orientador no doutorado, nos anos 80. Abriu o livro nas páginas finais e procurou referências bibliográficas. Encontrou os nomes de ex-alunos de Viveiros de Castro. “Olha aqui o Carlos Fausto. Citado em português! A Aparecida Vilaça também.” O próprio Silva também constava da lista. “Foi por causa do Eduardo que os ‘colegas brasileiros’ passaram a existir”, disse. “É muito fácil aferir isso. Basta folhear as principais revistas da disciplina. Isso mudou. E mudou por causa dele.”
Eduardo Viveiros de Castro mora com a mulher, Déborah Danowski, e a única filha deles, Irene, de 18 anos, num prédio antigo, estilo art déco, na praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. No apartamento de pé-direito alto, estantes de livros cobrem as paredes já no pequeno corredor que serve como hall de entrada. Na prateleira de uma delas, na sala, vê-se uma foto antiga do antropólogo, na casa dos 20 anos, com o cabelo comprido. Ao lado, um retrato de Bob Dylan.
Numa noite de outubro do ano passado, Viveiros de Castro criticava o avanço do governo de Dilma Rousseff sobre a Amazônia, seus projetos de estradas e usinas hidrelétricas, benefícios ao agronegócio – e descaso com os direitos dos povos indígenas. Sentado no sofá, o antropólogo comparou as ambições desenvolvimentistas da atual presidente à megalomania da ditadura, com seu ideário de “Brasil Grande”.
Hegel deve estar dando pulinhos de alegria no túmulo, vendo como a dialética funciona”, ele disse. “Foi preciso a esquerda, uma ex-guerrilheira, para realizar o projeto da direita. Na verdade, eles sempre quiseram a mesma coisa, que é mandar no povo. Direita e esquerda achavam que sabiam o que era melhor para o povo e, o que é pior, o que eles pensavam que fosse o melhor é muito parecido. Os militares talvez fossem mais violentos...

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