“As Jornadas de Junho também trouxeram para o debate político uma geração inteira. Gente que estava vendo a banda passar e que agora quer tomar o Brasil nas mãos. Uma garotada que está fazendo rap, participando de coletivos de cultura, que trabalha em co-workings, que toca projetos sociais ou que labuta de sol a sol e estuda à noite sonhando com uma vida melhor. Esse jovem não é fascista, não é coxinha e também não é babaca”. O comentário é de Renato Rovai em artigo no seu blog, 08-01-2014.
Eis o artigo.
As Jornadas de Junho ainda têm sido tratadas de forma maniqueísta por muitos dos que tentam interpretá-la e disputar seu legado. De um lado, há os que buscam transformá-la num movimento de coxinhas e fascistas. Do outro, gente que sonha com novos levantes de rebeldia que sejam controláveis e possam levar o governo federal a ter prejuízos eleitorais. E há ainda um terceiro grupo que quer oportunizar uma ação que é horizontal a partir de um discurso dirigente com contornos de esquerda.
Os primeiros, erram no fundamental. As milhões de pessoas que foram as ruas em centenas de cidades do país querem, na essência, um Brasil melhor. E deixaram claro que cansaram da política de gabinete baseada no toma lá da cá de uma governabilidade que precisa de um novo arranjo. Ao mesmo tempo exigem um serviço público melhor do que o atual e querem um Estado forte.
Essas demandas nunca foram fascistas e sempre foram de esquerda. E não podem deixar de ser apenas porque hoje quem está no governo é um partido mais identificado com bandeiras populares.
Transformar todos aqueles que defendem essas teses em coxinhas e fascistas e exigir adesão total a um governo que muitas vezes fala grosso com o movimento social e fino com o capital, não é exatamente uma postura progressista. Ao contrário, é algo que se aproxima muito da prática fascista que esses setores criticam. O fascismo, entre outras coisas, oprime o contraditório porque sabe que ele é parte fundamental do processo democrático.
Já quando os colunistas da direita desejam como presente de ano novo mais gente na rua para mudar o Brasil, o que de fato querem é o povo tomando o Planalto Central, mas não para que esse mesmo povo assuma as rédeas do país.
Querem que esse povo patrocine o caos para que a solução seja um novo governo forte. Ou seja, pretendem um golpe civil por saberem que quarteladas caíram em desuso e tem alto custo do ponto de vista político internacional.
Já certos setores que se consideram de esquerda radical sonham com o que sempre sonharam. Acham que a correlação de forças pode se alterar como num passe de mágica num levante popular. E que o povo pode assumir o poder e tudo virar lindo e maravilhoso da noite para o dia.
As Jornadas de Junho, porém, não tem nada a ver com o desejo de uns e a análise de outros. Foram um momento muito mais impactante na vida nacional. Um grito democrático com diferentes táticas e estratégias de luta. Um grito de um país que provou ter uma democracia mais madura. Que suporta milhões nas ruas e em movimento. Mas que não aceita colocar todas as suas conquistas em risco para produzir qualquer resultado.
Havia muito mais responsabilidade nas ruas do que nas análises de gabinete. E por isso o movimento produziu tantos resultados e obteve vitórias.
Além da diminuição objetiva no preço das passagens de ônibus e metro, entre as suas inúmeras conquistas de junho, por exemplo, pode-se destacar a virada na agenda do transporte público nas grandes cidades. Em São Paulo, por exemplo, o prefeito Haddad disse em entrevista recente que fez em um ano o que pretendia fazer em quatro no setor.
O Mais Médicos também foi antecipado naquele contexto. Era um programa que vinha sendo maturado, mas que poderia ter sido realizado com muito menos força e mais pra frente. As Jornadas de Junho também trouxeram para o debate político uma geração inteira. Gente que estava vendo a banda passar e que agora quer tomar o Brasil nas mãos. Uma garotada que está fazendo rap, participando de coletivos de cultura, que trabalha em co-workings, que toca projetos sociais ou que labuta de sol a sol e estuda à noite sonhando com uma vida melhor.
Esse jovem não é fascista, não é coxinha e também não é babaca.
Ele não é marionete da Globo e não está disposto a ser papagaio de tucano. E quer fazer valer uma nova agenda. Onde o meio ambiente seja mais respeitado, onde os indígenas sejam protegidos dos grileiros, onde haja mais recursos para moradia, saúde e educação.
Querem também menos corrupção e mais transparência no uso dos recursos públicos. Querem direitos humanos para os pobres, principalmente jovens e negros. E uma polícia que não seja um instrumento de tortura dos setores populares na mão do Estado.
Essa agenda pode levar muitos deles a participarem de um movimento como o “Não vai ter Copa”. Até porque até o momento a Copa que está sendo vendida é a dos outros. Da elite daqui e dos ricos de fora. Não é um Copa produzida para ser a afirmação de um povo e de uma história de lutas de um país que tem oferecido ao mundo avanços democráticos e projetos como o Bolsa Família.
É uma Copa da Fifa. E da exclusão.
Por isso, cabe perguntar: quem está errado, os jovens que entendem que esse pode ser um momento de afirmação de suas ideias ou quem não está disposto a conversar com eles? Quem está errado, os oportunistas que querem aproveitar essa energia para desgastar o governo ou certos governistas que estão achincalhando esse povo que quer discutir seu país?
É preciso ir além desse maniqueísmo de lado bom e lado ruim. A Copa pode ser um excelente momento para discutir o Brasil e ao mesmo tempo assistir futebol e se congregar com as milhares de pessoas de todas as partes do mundo que aqui estarão.
A Copa pode ser um tempo de uma nova agenda na democracia brasileira. Uma Copa com povo e política. Com manifestações de rua fortalecendo as lutas populares e comemorações de rua de torcidas de cada uma das seleções.
Poucos países do mundo podem oferecer um espetáculo desses. E o Brasil é um deles. Um país multicultural onde há grande respeito à multiplicidade. Um país que deu um enorme salto social nos últimos anos, incluindo milhões de pessoas. Um país que tem desafios imensos ainda pela frente, mas que, a despeito das disputas políticas, tem uma institucionalidade forte. Um país com um movimento social que tem atores coletivos respeitados em todo o planeta, como, por exemplo, o MST e as organizações sindicais.
Poucas nações podem fazer de fato uma Copa das Copas, onde os projetos do outro mundo possível estejam presentes na agenda de um torneio de seleções. A sociedade civil brasileira tem o dever de assumir esse processo como seu. O slogan “não vai ter Copa” é muito bom e forte para ter apenas uma leitura. E uma das leituras possíveis é que a Copa não vai ser mais a mesma depois de sua passagem pelo Brasil.
De agora em diante, onde a Copa for, o movimento social irá. E colocará suas demandas, fazendo seus fóruns ao lado do evento. E internacionalizando causas de todo o povo do país sede e de outras partes do mundo.
Se isso vier a acontecer o jogo será apenas um detalhe desse imenso espetáculo. E as nossas causas disputarão espaço entre os resultados das partidas. Que ao final terão apenas um campeão. Diferentemente da Copa das Copas, que é a de todos que lutam por um mundo melhor. E onde muitos podem ganhar juntos.
Quem tem que ter medo das ruas é a elite. E não os que se dizem de esquerda. Ou algo está muito, mas muito errado.
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