Por: Rogério Tadeu Romano
O Conselho Nacional de Justiça entende que a competência da Justiça Militar deve estar limitada às infrações cometidas dentro do âmbito estritamente castrense pelo pessoal militar.
Noticia-se que um grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça concluiu que a Justiça Militar deve julgar somente militares, excluindo-se a sua competência para julgar civis em diagnóstico da Justiça Militar Federal e Estadual.
A providência propõe a especialização da Justiça Comum estadual para julgar processos de competência militar.
Convém lembrar as lições de um dos maiores juristas brasileiros, Heleno Cláudio Fragoso[1], discutindo a Lei de Segurança Nacional, quando lembrou que a legislação militar é especial e se destina, basicamente, a militares, para preservar as instituições militares, a ordem, a disciplina e a hierarquia das forças armadas. Disse ele: “é simplesmente um absurdo aplicar essa legislação a civis, a menos que atentem contra os valores que o direito penal militar visa preservar. A lei que define crimes contra a segurança do Estado é um direito penal complementar e a ele se aplicam, subsidiariamente, as disposições do direito penal fundamental, que é o contido no CP comum”.
Disse Heleno Cláudio Fragoso[2] que a competência da Justiça Militar para o julgamento dos crimes contra a segurança interna foi introduzida em nosso direito com o Ato Institucional nº 2, artigo 8º, em 27 de outubro de 1965, como reação ao comportamento dos tribunais civis, notadamente o Supremo Tribunal Federal, no julgamento de pessoas acusadas de crimes políticos. Disse ele: “O fato constituiu fenômeno comum nos momentos políticos, que procuram introduzir severidade na pretensão punitiva revolucionária”.
Discute-se a questão da competência da Justiça Militar à luz da Constituição de 1988.
A Justiça Militar nos Estados, por sua vez, é constituída pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Justiça Militar nos Estados, em que o efetivo seja superior a vinte mil integrantes(artigo 125, § 3º, da Constituição, tendo como competência apreciar os crimes militares praticados por policiais militares e bombeiros militares.
A Justiça Castrense Federal tem competência para julgar os membros das Forças Armadas.
A Justiça Militar Federal é composta pelos Conselhos de Justiça, especial e permanente.
Por sua vez, o Superior Tribunal Militar tem competência para julgar as apelações e os recursos das decisões dos juízes de primeiro grau da Justiça Militar da União, à luz do artigo 123 da Constituição, sendo composto por quinze ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República e depois aprovados pelo Senado Federal. Por sua vez, o diagnóstico propõe reduzir o numero de ministros para onze, nomeados pelo Presidente da República com indicações aprovadas pelo Senado Federal.
Em síntese, a Justiça Militar julga, tão somente, os crimes militares, a teor do artigo 9º do Código Penal Militar, em tempo de paz, e do artigo 10 do mesmo diploma legal com relação aos crimes praticados em tempo de guerra. Não se aplica a Lei 9.099/95 com relação a Justiça Especializada aqui enfocada.
Os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, tentados ou consumados, foram retirados da Justiça Militar, como se lê do artigo 9º, parágrafo único, do Código Penal Militar.
Adverte Renato Brasileiro de Lima[3] que, estaduais ou federais, os militares vão a Júri Popular quando invistam de forma dolosa contra a vida de um civil.
Ainda leciona Renato Brasileiro de Lima [4], na hipótese de aplicação do instituto da aberratio ictus, que se um militar, desejando matar outro militar, erra o alvo e acerta um civil, na fixação da competência o importante é definir a pessoa realmente atingida. Se há um erro na pontaria, o civil sendo atingido, o militar vai à Júri Popular. Nesse sentido, a posição do Superior Tribunal de Justiça.[5]
Por certo, não se pode esquecer, em sede de direito positivo, a redação dada pela Lei 12.432/2011, que fixa a competência para julgar o homicídio doloso contra a vida de civil, por parte da Justiça Militar, quando a ação for realizada contra aeronave que se encontre no contexto descrito no artigo 303 do Código Brasileiro da Aeronáutica, Lei 7.565/1986.
Por outro lado, o delito de abuso de autoridade é crime comum e se praticado por militar não será julgado na justiça especializada. É o que se lê do teor da Súmula 172 do Superior Tribunal de Justiça.
Da mesma forma, o crime de tortura, que não deve ser apreciado pela Justiça Militar.[6]
Lembre-se a Súmula n. 75 do Superior Tribunal de Justiça, onde se lê que compete á Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal. Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 6, que indica que compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura da polícia Militar, salvo se o autor do crime e vítima forem policiais militares em situação de atividade.
Apenas a função de natureza militar tem a força de atrair a incidência do artigo 9º, III, d, do Código Penal Militar, onde se diz que há delito penal inserido no Código Penal Militar quando se fala em crime praticado por militar da reserva, ou reformado, civil, contra militar em função de natureza militar.
Recorde-se a distinção de militares em serviço e a função de natureza militar. Função de natureza militar é a atribuição específica conferida por lei ao militar, como integrante das Forças Armadas, exercitada com características próprias da instituição militar. Haverá outro serviço ao qual é incumbido o militar, que não é próprio de integrante de organização militar, conquanto indispensável ao funcionamento e manutenção. É o caso de serviço de limpeza, de manutenção de repartição militar, a aquisição de gêneros alimentícios, preparo de refeições, recuperação e manutenção de meios de transportes, tarefas que não são propriamente inerentes a vida militar, sendo ainda da vida civil.
É certo que a doutrina, pela voz abalizada de Eugênio Pacelli{C}[7] conclui que a Justiça Militar Federal julga tanto civis como militares. Mas a competência da Justiça Militar somente aprecia delitos militares, impondo-se a separação obrigatória dos processos em caso de concurso de crimes(comuns e militares), diante da absoluta especialização e especialidade dessa jurisdição.
Para Eugênio Pacelli é exatamente a motivação do agente que afastaria a aplicação do tipo penal previsto no CPM. Disse ele: “Para que se possa admitir um crime como de natureza militar, parece-nos indispensável, ou uma ação dirigida contra a instituição, ou uma ação praticada pelo militar, do mesmo modo que se exige, para os chamados crimes políticos a motivação política da conduta(Lei nº 7.170/83, artigo 2º). Ora, tampouco é suficiente a condição de militar, como, aliás, se ressaltou na decisão do Supremo Tribunal Federal”.
Há crimes propriamente militares e crimes impropriamente militares. Os propriamente militares dizem respeito à vida militar, vista globalmente na qualidade funcional do sujeito do delito, na materialidade especial da infração e na natureza peculiar do objeto da ofensa penal, como disciplina, a administração, o serviço ou a economia militar. Os crimes impropriamente militares, que podem ser cometidos por militares e ainda, excepcionalmente, por civis, abrangem os crimes definidos de modo diverso ou com igual definição na legislação penal comum. Sendo assim, crimes impropriamente militares são os que, comuns em sua natureza, podem ser praticados por qualquer cidadão, civil ou militar, mas que, quando praticados por militar em certas condições a lei considera militares, como se tem dos crimes de homicídio e lesão corporal, os crimes contra a honra, os crimes contra o patrimônio, os crimes de tráfico ou posse de entorpecentes, o peculato, a corrupção, os crimes de falsidade, dentre outros. São ainda impropriamente militares, os crimes praticados por civis, que a lei define como militares, como o violência contra sentinela, previsto no artigo 158 do CPM.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o HC 112.932, impetrado contra acórdão do Superior Tribunal Militar, por sua Primeira Turma, decidiu, no dia 13 de maio de 2014, que à Justiça Militar cabe processar e julgar uma civil acusada de desacato contra militares das Forças Armadas que atuavam no processo de pacificação dos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. Era um caso em que uma moradora do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, se recusou a obedecer determinada ordem durante operação no local.
Naquele julgamento apontado, o Ministro Luis Roberto Barroso destacou que a submissão de civil à Justiça Militar, em tempos de paz,é prevista no Código Penal Militar(CPM) em algumas hipóteses, entre as quais o crime praticado contra militar no desempenho de serviço de preservação da ordem pública.
Todavia, como já acentuado, a Segunda Turma tem posição contrária.
De toda sorte, em situação específica em que os militares das Forças Armadas exercem função policial, como a de policial ostensivo, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 112.936, julgamento de 29 de junho de 2012, DJe de 1º de agosto de 2012, concedeu writ para invalidar, deste o inicio, procedimento anteriormente produzido na Justiça Militar, sem prejuízo do suposto crime pela Justiça Federal. O entendimento foi que o desacato de um civil a um militar que exercia essa atividade no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, dentro do programa de ocupação e pacificação dos morros cariocas, constitui crime civil, e não militar, enquadrado no artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal(crimes em detrimento de bens, serviços ou interesses da União).
Fica cristalino da lição do Ministro Celso de Mello, Relator do último acórdão apontado, que não se pode deixar de acentuar o caráter anômalo da submissão de civis, notadamente em tempos de paz, à jurisdição dos Tribunais e órgãos integrantes da Justiça Militar da União, por suposta prática de crime militar, especialmente se se tiver em consideração que tal situação, porque revestida de excepcionalidade, só se legitima se e quando configuradas, quanto aos réus civis, as hipóteses delineadas em sede legal e cujo reconhecimento em recebido pelo Supremo Tribunal Federal uma estrita interpretação.
Correto é que não se tem por configurada a competência da Justiça Militar da União, em tempo de paz, tratando-se de réus civis, se a ação eventualmente delituosa, por eles praticada, não afetar, de modo real ou potencial, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares que constituem, em essência, os bens jurídicos penalmente tutelados.
O entendimento do Ministro Celso de Mello é de que mostra-se grave a instauração, em tempo de paz, de ação penal militar contra civil, com o objetivo de submetê-lo, fora dos casos autorizados em lei, a julgamento perante a Justiça Militar da União. Isso porque deve-se respeitar o princípio do juiz natural, uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e que condicionam o desempenho, por parte do Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório.
Naquele julgamento o Ministro Celso de Mello trouxe a advertência de José Frederico Marques(O Processo Penal na atualidade, in Processo Penal e Constituição Federal, pág. 19, item n.7, 1993), no sentido de que ao rol dos postulados básicos deve acrescer-se aquele do Juiz natural, contido no item nº LIII do artigo 5º da Constituição Federal, que declara que ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade competente. A autoridade competente será aquela que a Constituição tiver previsto, explícita ou implicitamente, pois, se assim não fosse, a lei poderia burlar as garantias derivadas do princípio do Juiz independente e imparcial, criando outros órgãos para o processo e julgamento de determinadas infrações. Sendo assim, impõe-se ao Estado o dever de respeitar essa garantia básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários investidos de competência funcional para a apreciação dos litígios penais. Como tal, o principio da naturalidade do juízo, que encerra uma garantia constitucional, limita, de um lado, os poderes do Estado, na medida em que impossibilita a instituição de juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção, assegura ao acusado, de outro, o direito ao processo perante autoridade competente, abstratamente designada na forma de lei anterior, vedados os chamados juízes ex post facto. Assim somente serão órgãos jurisdicionais aqueles que são reconhecidos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja, como aludem Ada Pellegrini Grinover com apoio no magistério de Jorge Figueiredo Dias(Direito Processual Penal, volume 1/322-323 – 1974, Coimbra).
O diagnóstico do Conselho Nacional de Justiça estabelece que “a competência dos órgãos judiciais militares é restrita, excepcional e funcional”. Ou seja: “deve estar limitada às infrações cometidas dentro do âmbito estritamente castrense pelo pessoal militar”.
A respeito disso, em agosto de 2013, a Procuradoria-Geral da República ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF 289) em que pede que seja reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz e que esses crimes sejam submetidos a julgamento pela Justiça Comum, federal ou estadual.
Aguardemos a palavra final do Supremo Tribunal Federal na matéria.
[1] FRAGOSO, A nova lei de segurança nacional.
[2] FRAGOSO, A nova lei de segurança nacional.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Competência Criminal, Salvador, Bahia, Juspodivm, 2010, pág. 208 e 209.
[4] LIMA, Renato Brasileiro de . Competência Criminal, Salvador, Bahia, Juspodivm, 2010, pág. 213.
[5] STJ, CC 27.368/SP, 3ª Seção, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, DJ de 27 de novembro de 2000, pág. 123.
[6] STJ, ROHC 11.532, Relator Ministro Edson Vidigal, DJU de 24 de setembro de 2001, pág. 321.
[7] OLIVEIRA, Eugênio Pacceli. Curso de Processo Penal, 17 ª edição, pág. 256.
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