Por Mayra Cotta
"Cada diminuição do poder é um convite à violência", já advertia Hannah Arendt, em seu livro Sobre a Violência, "pelo menos porque aqueles que detêm o poder e o sentem escapar de suas mãos, sejam eles os governantes, sejam os governados, têm sempre achado difícil resistir á tentação de substituí-lo pela violência", continua a filósofa. E certamente essa reação dos traficantes acuados pelas Unidades de Polícia Pacificadora - as chamadas UPPs - foi prevista pelos articuladores desse modelo, que sempre puderam antecipar que a pacificação não seria tão pacífica assim. Afinal, si vis pacem, para bellum - se queres a paz, prepara a guerra.
Mas se o brocardo latino serviu ao projeto de poder de Cìcero, há mais de dois mil anos, é preciso ter bastante cautela, hoje, na escolha da violência como tática. Isso porque, apesar do entusiasmo de Rodrigo Pimentel - o consultor de segurança pública da Rede Globo e a figura inspiradora do personagem Capitão Nascimento, que disse estar confiante na capacidade da polícia em enfrentar os traficantes -, a violência traz com ela uma fonte de arbitrariedade em suas conseqüências, estando os resultados das ações humanas, quase sempre, para além do controle de seus protagonistas. Por mais que os diversos "especialistas" em segurança pública insistam em fazer previsões sobre o desfecho dessa guerra, ninguém é capaz de ponderar o imponderável.
Não se trata de uma mera análise nos termos aparato de guerra do estado versus aparato de guerra do tráfico, pois o palco das batalhas, as estratégicas de cada lado, a proximidade com a sociedade, as possibilidades de barganha, a capacidade de resistência, tudo isso pode influir de forma determinante nos resultados do confronto, de uma maneira impossível de se prever. Uma coisa, porém, é certa e, novamente, Hannah Arendt é esclarecedora: "o perigo da violência, mesmo se ela se move conscientemente dentro de uma estrutura não extremista de objetivos de curto prazo, sempre será o de que os meios se sobrepõem ao fim. Se os objetivos não são alcançados rapidamente, o resultado será não apenas a derrota, mas a introdução da prática da violência na totalidade do corpo político. A ação é irreversível (...) a prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento".
Dessa forma, o controle policial permanente e a repressão ao tráfico constante não parecem ser uma resposta definitiva à questão da segurança pública, muito menos representam, em si, um modelo de política que pretende promover a cidadania e a diminuição do número de crimes. E parecia que o Governo do Rio de Janeiro estava consciente disso.
Quando o modelo das UPPs começou a ser implantado, um aspecto chamou a atenção dos menos entusiastas desta política de segurança pública - e não é o fato de as pacificações terem acontecido apenas nos lugares mais turísticos, preparando a cidade para os grandes eventos esportivos de 2014 e 2016. Na verdade, sempre pareceu estranho que todas as comunidades ocupadas eram controladas pelo ADA (Amigos dos Amigos), permanecendo o CV (Comando Vermelho) intocado no seu domínio territorial. Por que foi feita essa opção (só posso pensar que foi uma opção consciente da Secretaria de Segurança Pública, por não se tratar de um mero detalhe que pudesse passar despercebido entr os técnicos)?
Otimista que sou, pensava que se tratava de uma estratégia bastante inteligente por parte do governo Cabral: o Estado estaria enfraquecendo uma das facções para que os traficantes se unissem sob uma única força para-estatal, no caso, o Comando Vermelho. Neste quadro, as negociações entre Estado e tráfico seriam facilitadas, além de cessarem os confrontos entre as facções - bem frequentes, diga-se de passagem. Vários problemas poderiam ser resolvidos com essa manobra. Basta ver, em São Paulo, o sucesso que foi a estratégia do Estado de sentar para negociar com o PCC (Primeiro Comando da Capital): o índice de homicídios despencou e não se repetiram os episódios de terror de 2007.
E tudo parecia caminhar nesse sentido. Em nenhuma das comunidades ocupadas, houve confronto violento entre policiais e traficantes, que saíam dos morros antes de iniciada a ocupação. O tráfico dava mostras de estar se organizando - especialmente na Rocinha (controlada pelo ADA) e no Complexo do Alemão (controlada pelo CV) - no sentido de reunir forças suficientes para sentar à mesa e negociar com o governo. Afinal, os traficantes também sabem que não é interessante para eles manter seus negócios de varejo de drogas sob a constante mira da polícia.
Até mesmo o início dos ataques a ônibus e carros poderia ser visto como um "convite" ao governo, por parte do tráfico, para que as vias de negociação fossem abertas. Mas agora nós nunca vamos saber se esse era, de fato, o plano. E também não importa mais. Os acontecimentos dessa semana, o ânimo da população e, em especial, o controle de perto da ação policial por parte da mídia não permitirão que qualquer negociação seja feita. Todos pedem que a polícia parta para cima, que enfrente, de forma definitiva, os traficantes, e expurgue deste mal o Rio de Janeiro.
Mas há alguma possibilidade de o tráfico de drogas acabar? Como todo empreendimento capitalista, o varejo de entorpecentes é sustentado pela outra ponta da oferta, que é justamente a demanda. Assim sendo, enquanto houver demanda por drogas, enquanto houver consumidores de entorpecentes, a venda destes permanecerá. E outra grande vantagem do capitalismo, que permite o enfrentamento de graves crises, é justamente a sua capacidade de renovação e adaptação, bem como a sua independência em relação às pessoas nele envolvidas. Ainda que a polícia conseguisse, nessa noite, exterminar todos os traficantes cariocas, poderia até demorar alguns dias, mas muito em breve as vendas seriam retomadas e reorganizadas. Havendo demanda, permanece a oferta; havendo a possibilidade de lucro, permanece o empreendimento do capital. Ninguém acha que a Coca-Cola ou o McDonald´s ruirão se seus CEO´s e demais funcionários forem assassinados.
A guerra ao tráfico já há muito tempo existe, sendo que nas últimas décadas contou até mesmo com o fortíssimo aparato militar dos EUA em aprtes da América do Sul. No Rio de Janeiro, ela faz milhares de vítimas ao ano. E é possível dizer que a sua influência na diminuição do tráfico foi mínima, uma vez que o consumo permanece e se intensifica, inclusive com a diversisifcação do mercado, que hoje conta com as drogas sintéticas.
Por outro lado, a violência da guerra pode ter seus efeitos sentidos na perda de poder por parte do Estado, que insiste na tática da repressão violenta. Já que não cabe ao Rio de Janeiro promover a legalizaçã0 - que já está passando da hora de ser discutida entre os países - a negociação do governo com o tráfico parece ser um caminho interessante. O que não é possível é continuar acreditando que a repressão policial acabará com o tráfico ou que o assassinato de traficantes pacificará a cidade. E, mais uma vez recorrendo a Arendt: "é insuficiente dizer que poder e violência não são o mesmo. Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. (...) A violência pode destruir o poder; ela é absolutamente incapaz de criá-lo".
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