Luciano Porciuncula Garrido*
“O que nos causa problemas não é o que nós não sabemos, mas o que sabemos que não é como está” – W. Rogers
A carreira única nas corporações policiais, mais do que uma questão de justiça, atende às exigências de uma gestão verdadeiramente moderna. Gerentes tarimbados de organizações bem-sucedidas, que pautam suas metas por critérios de eficiência e produtividade, já adotam regularmente os princípios e diretrizes da chamada “gestão por competência”. Levando-se em conta esse dado fundamental, convém assinalar que as reengenharias organizacionais com base em critérios de competência, sempre que pretendam alcançar os efeitos prometidos, não podem ocorrer em conjunto com o engessamento na estrutura das carreiras. A imobilidade dos quadros funcionais elimina os fatores motivacionais e estanca o livre fluxo das competências. Sem possibilidades de ascensão nas carreiras, não há como criar espaços para a tão almejada meritocracia.
Outro dado a ser considerado diz respeito ao modo como as corporações policiais têm recrutado, selecionado e contratado seu pessoal. Não tendo sido criados até momento critérios científicos que embasem os processos seletivos para carreiras policiais, as regras estabelecidas pelas bancas examinadoras de concurso vêm sendo pautadas por parâmetros de caráter arbitrário (ou seja, sem caráter algum…). Para que critérios válidos sejam fixados nas seleções de pessoal, faz-se necessário um amplo estudo acerca das tarefas ocupacionais executadas por todos os cargos da carreira policial (a chamada análise de cargos). Somente a par dessas informações técnicas, será viável o estabelecimento de um perfil profissiográfico fidedigno e objetivo, que deponha de uma vez por todas os palpites amadores sobre a verdadeira natureza do trabalho policial. Em suma, é preciso definir de forma consistente quais são os atributos necessários e esperados para engendrar um bom policial – seja nos cargos de execução, de coordenação ou supervisão. (1)
Vale ressaltar que a metodologia da análise de cargos, mesmo não sendo utilizada pelas corporações policiais, é uma tecnologia de amplo domínio nas áreas de gestão de pessoal e comportamento organizacional, seja quais forem os ramos de atividade considerados (2) . Uma metodologia científica bem aplicada nos processos seletivos é o único meio de delimitar as qualificações necessárias aos cargos, de maneira a que os candidatos eventualmente escolhidos venham a executar suas futuras funções com relativo sucesso. Portanto, qualquer critério seletivo que imponha restrições objetivas em edital – seja o critério de escolaridade ou diplomação específica – terá de ser abalizado pelos cânones rigorosos da ciência, isto é, mediante um amplo estudo nos moldes ora referidos: (i) análise de cargos; (ii) perfil profissiográfico validado a partir da descrição dos cargos; e (iii) instrumento também válido para mensuração do perfil estabelecido. Se tais medidas não forem adotadas com o rigor técnico que merece, graves injustiças serão cometidas nos certames, inevitavelmente, uma vez que as regras e princípios fundamentais que regem as leis de licitação (no caso específico, o concurso público) seriam violados.
A falta de informação técnica a esse respeito, contudo, não denuncia apenas a precariedade dos processos seletivos empreendidos até então. No momento em que se estabelecem critérios profissiográficos arbitrários, ou mesmo despropositados, também a política de recursos humanos e a própria estruturação das carreiras passam a carecer de respaldo técnico-científico e – não diria legalidade – mas legitimidade. Tomemos como exemplo as carreiras da Polícia Federal e Polícia Civil do DF. Quando se cria nessas corporações cargos de nível superior e se evoca para um deles o status de “mais superior” frente aos demais, se faz necessário fundamentar tecnicamente tal discrepância. Esse coeficiente de atributos profissionais que submete hierarquicamente alguns dos cargos de nível superior a outros, se dá por meio de qual critério? Há algum estudo científico que ampare um arranjo desse tipo? Um bacharel em Direito que, numa corporação policial, exerça atividades em cargo de nível superior se diferenciaria em qual aspecto de outro bacharel em Direito investido em cargo hierarquicamente superior? Nesse exemplo citado, tudo se resumiria ao fator concurso público para ingresso no cargo?
A grande dificuldade, porém, reside precisamente nesse fator “concurso público”. É possível que as corporações policiais passem doravante a estabelecer critérios válidos para seus processos seletivos, desde que, como foi demonstrado, adotem uma metodologia científica para o mapeamento das atividades e tarefas atinentes aos cargos. Ainda assim, tanto as bancas examinadoras quanto as próprias corporações policiais se veriam numa grande dificuldade ao ter que forjar mecanismos e instrumentos válidos e eficazes para avaliar e mensurar, nos candidatos, os atributos funcionais a ser contemplados por um dado perfil profissiográfico. Senão, vejamos.
A atividade policial requer uma série de “expertises”, sobretudo nos seus aspectos atitudinais e psicológicos, que são muito complexas e de difícil ponderação. Não é por outra razão que a subjetividade de tais elementos tem causado uma série de controvérsias e litígios durante os processos seletivos. Ademais, para incrementar ainda mais o problema, os cargos de comando e gestão, situados na escala superior da hierarquia, exigem toda uma experiência profissional de gerenciamento que muito dificilmente seria auferida nos moldes em que são realizados os concursos públicos atuais. Uma das maneiras possíveis de compensar dificuldade seria a inclusão do item “provas de título” para carreiras policiais, passando-se a contemplar nos certamos atuais a variável “experiência profissional”. Mesmo assim, como já foi dito em trabalho anterior, essa apreciação será sempre genérica, não qualitativa, uma vez que avalizada por um critério aritmético como o “tempo de efetivo serviço”. Um policial que, por exemplo, tenha vinte anos de péssimos serviços prestados a instituição terá tratamento semelhante a um excelente policial com os mesmos anos de serviço. Até o momento não é factível à banca examinadora, nas etapas de um concurso, avaliar qualitativamente o conteúdo daquilo que se considera “experiência profissional”. Tanto é verdade que esse tipo de apreciação nunca foi levado a efeito. As bancas examinadoras teriam que valer-se das avaliações de desempenho realizadas pela própria organização policial ao longo da carreira do servidor. Mas, eu pergunto: as avaliações de desempenho existem no serviço público? Sabemos que não existem, ou se existem, estão longe de serem tecnicamente rigorosas e objetivas.
Como contraponto a esse estado de coisas, podemos afirmar que a maior parte das organizações modernas, os cargos de mando, isto é, aqueles que exercem funções de supervisão, coordenação e controle, são ocupados pelos próprios integrantes da instituição. Tanto a vivência quanto experiência profissional decantada ao longo da carreira, conjugado com o mérito e o esforço pessoal, é que habilita seus profissionais à liderança. Muito dificilmente haverá organizações que recrutem um candidato externo para ocupar os cargos de mando, salvo na hipótese de que não haja na própria organização pessoas gabaritadas para o exercício de tal função. O acesso aos cargos de chefia, portanto, se dá preferencialmente por todos aqueles que compõem o quadro funcional, até porque esse critério é um dos mais poderosos instrumentos de motivação no trabalho.
Por fim, se as instituições policiais querem de fato adotar política de recursos humanos com base numa gestão por competência, que implantem definitivamente carreira única para o ingresso na carreira. Valorizem, pois, os profissionais de nível superior que já existem em seus quadros, dando-lhes essa justa injeção de ânimo e a motivação necessária para buscar a excelência em suas atividades.
Ao contrário do que comumente se alega em desfavor da ascensão funcional, esse modelo de estruturação da carreira não cerceará quaisquer direitos dos que porventura queiram ingressar na instituição. Se almejarem um dia exercer a atividade policial, que ingressem democraticamente “por baixo”, e com humildade progridam na carreira, pari passu com seus esforços e merecimentos.
(*) Luciano Porciuncula Garrido é Psicólogo, Agente de Polícia Civil e Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos; ex-policial militar; exerceu cargo de psicólogo forense no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e cargo de psicólogo clínico no Hospital Universitário de Brasília; é membro do Instituto Millenium. E-mail: garrido1974@gmail.com
(1) Ver Mal-Estar na Segurança Pública (Luciano Porciuncula Garrido & George Felipe de Lima Dantas)
(2) Comportamento Organizacional, Stephen Robbins, 1998; Gestão de Pessoas Idalberto Chiavenato, 1999; Análise Ocupacional por Tarefas/Job Task Analysis — Jornal/Journal: Boletim Policial do FBI - Volume: 58 Edição:11/FBI Law Enforcement Bulletin - Volume:58 Issue:11 Datado de/Dated:(Novembro de 1989) (November 1989) Páginas/Pages:9-13 Autor(es)/Author(s): T J Jurkanin.
Luciano Garrido é nosso colega da Polícia Civil do DF e sempre colabora com esse BLOG, trazendo assuntos de relevância para a classe POLICIAL CIVIL, promovendo o debate e a reflexão inteligente sobre tais temas.
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