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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
Um verdadeiro amigo desabafa-se livremente, aconselha com justiça, ajuda prontamente, aventura-se com ousadia, aceita tudo com paciência, defende com coragem e continua amigo para sempre. William Penn.

domingo, 28 de novembro de 2010

A quem interessa a inelegibilidade do analfabeto?

O mandato de qualquer analfabeto porventura eleito hoje no Brasil, seja pela vontade do povo nas urnas, seja pela vontade do Constituinte de 1988, e, sobretudo, por uma questão de Justiça substancial, é cabalmente legítimo e juridicamente válido.
A devastadora vitória do artista Tiririca para a Câmara dos Deputados, seguida por um impasse no Judiciário sobre eventual indevido preenchimento de uma condição de elegibilidade invoca um oportuno debate em torno da eficácia da norma que determina a inelegibilidade do analfabeto, prevista no §4º, art. 14, da Constituição Federal.

José Afonso da Silva ensina que as inelegibilidades devem ter um fundamento ético evidente. São legítimas quando têm por objeto: a proteção da probidade administrativa e da moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato; e a normalidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na Administração (fl. 228, “Comentário Contextual”). O fato de o indivíduo ser iletrado não se enquadra em nenhuma dessas hipóteses. A simples existência de um adulto analfabeto, conseqüência da omissão do Estado em cumprir deveres impostos pela Constituição, é por si só uma imoralidade. O ilustre constitucionalista continua a lição, advertindo que as inelegibilidades se tornam ilegítimas quando estabelecidas com fundamento político, para assegurar o domínio do poder por um grupo que o venha detendo (fl. 228, idem). O caso do analfabeto enquadra-se admiravelmente nesta hipótese.

Há um antigo sentimento arraigado no imaginário da sociedade brasileira que se convencionou a chamar de “cultura do bacharelado”, que se mantêm muito vivo no debate político. Preconiza que apenas os bacharéis ou os eruditos teriam a capacidade de estar no poder e decidir o que é o melhor – o bem – para todos os demais. Essa soberba da erudição, exaustivamente retratada e satirizada na literatura de épocas e procedências tão distintas, de Cervantes a Lima Barreto, de Moliere a Aluízio Azevedo, somente em raríssimas vezes se revelou altruística em relação aos mais necessitados, geralmente analfabetos.

A política é uma esfera da vida social que exige primordialmente o diálogo, o que não se leciona em salas de aula e não se aprende na biblioteca. Demanda o contato com a realidade, a capacidade de ouvir o próximo, muito mais do que o mero conhecimento técnico estéril e do que uma visão romântico-filosófica do mundo. Exige a pluralidade – a busca do entendimento entre diferentes interesses dos representantes de todas as esferas da sociedade. Foi nessa sintonia que Pablo Neruda encerrou uma poesia que ousou chamar “Asi es mi vida” com os versos: “soy el hombre del pan y del pescado y no me encontrarán entre los libros, sino con las mujeres y los hombres: ellos me han enseñado el infinito”.

Max Weber, que mergulhou com maestria na questão, ensina que a “vocação política”, distinta da “vocação científica”, é composta por uma série de ingredientes, como: a paixão, o senso de proporções, a ousadia e a perseverança (fl. 124, “Política como Vocação”); sem, em nenhum momento, apontar para a erudição entre as qualidades indispensáveis ao homem político.

Além do mais, é notória a existência de técnicos multidisciplinares e analistas jurídicos no Legislativo e no Executivo à disposição dos políticos eleitos para instrumentalizar tecnicamente suas decisões.

Numa análise sistemática da Constituição, a inelegibilidade do analfabeto entra em rota de colisão com uma série de normas e tampouco se sustenta. O Estado Democrático de Direito e o pluralismo político – forma e fundamento da República (art. 1º) já se abalam pelo simples absurdo de ainda existirem analfabetos no Brasil após mais de vinte anos da edição de uma Constituição que se pretende “cidadã”. Uma parcela considerável da sociedade é vítima de descaso e negligência do Estado que torna letra morta direitos e garantias fundamentais como a igualdade ( art. 5º), o direito social à educação (art. 6º) e a garantia de educação básica e obrigatória gratuita, assegurada inclusive sua oferta para todos os que não tiveram acesso na idade própria (art. 208). Essa realidade faz sangrarem objetivos fundamentais da República, como a erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e qualquer outra forma de discriminação (art 3º ), bem como princípios da República nas relações internacionais, como a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos (art. 4º). Porque o iletrado é excluído de muitas oportunidades de trabalho, geralmente aquelas com melhor remuneração, além de ter acesso restrito a preciosidades da cultura e da ciência. Todos os entes federativos foram omissos: os municípios porque não cumpriram seus deveres de concretizar programas adequados de educação infantil e de ensino fundamental e os Estados e a União porque não prestaram àqueles a cooperação técnica e financeira devida, conforme dispõe o art. 30, VI.

Não bastasse todo o prejuízo social acarretado aos analfabetos pela referida omissão, a aplicação prática do §4º, art. 14, que os torna inelegíveis, significa castigá-los multiplamente ao inviabilizar sua plena participação no Estado Democrático, privando-os da oportunidade de votarem em seus iguais, de se candidatarem e de demandarem diretamente nas discussões políticas por decisões em benefício de sua existência e de seus pares. Desenha-se um indecoroso lapso de soberania popular (art. 14).

E, a se concretizar uma intervenção judicial excluindo o candidato eleito Tiririca da Câmara dos Deputados – obsessão de um determinado membro do Ministério Público, mesmo após a recente aprovação do artista em exame específico perante o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo –, o que estará sob grave atentado será também a cláusula de separação dos poderes (art. 2º), na medida em que o poder deve emanar do povo (art. 1º) através representantes eleitos com a igualdade de valor de todos os votos (art. 14), enquanto um Tribunal do Poder Judiciário – com membros concursados – determinaria que centenas de milhares de votos em um representante de outro Poder não teriam mais nenhum valor.

A solução técnica e prática mais adequada ao caso, sem excluir do sistema o §4º, do art. 14, e capaz de harmonizar proporcionalmente a colisão de tantas regras, princípios e valores, é a de interpretar tal dispositivo como sendo de eficácia limitada e aplicabilidade mediata, a depender do efetivo esforço do Estado no sentido de cumprir seu dever de proporcionar a alfabetização a todos os brasileiros. Apenas num cenário desejado de oportunidades reais de educação a todos é que poderia ser aplicada a norma, rejeitando-se a candidatura apenas daquele que fosse analfabeto por sua própria desídia. Porque a alfabetização é um dos mais básicos requisitos para a inclusão social, uma vida com dignidade e o exercício da cidadania. E um Estado que se pretende democrático deve envidar todos os esforços para garantir a universalidade desse direito como prioridade absoluta, vedado o retrocesso social.

Portanto, o mandato de qualquer analfabeto porventura eleito hoje no Brasil, seja pela vontade do povo nas urnas, seja pela vontade do Constituinte de 1988, e, sobretudo, por uma questão de Justiça substancial, é cabalmente legítimo e juridicamente válido.

(*) Advogado, formado em Direito e Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, MACKENZIE, São Paulo.

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