Primeiramente, antes de apresentarmos nossas considerações acerca da aplicação e implicação da Lei de Tortura aos encarregados da aplicação da lei, é necessário definir a palavra TORTURA: do latim, tortura, significa suplício, martírio, tormento, transe aflitivo, podendo ser físico ou psicológico. O significado do verbo torturar também traduz o mesmo sentido, na língua espanhola, no inglês (to torture), no francês (torturer), no italiano (torturare) e no alemão (foltern). Estas semelhanças de tradução e significado são um indicativo de que a prática da tortura sempre foi, e continua sendo, um mecanismo globalizado, perverso e aviltante, na maioria absoluta das nações-Estado. A tortura não surgiu de repente. Há fatores históricos, em sua gênese e uma incursão nesta área é fundamental para a melhor compreensão de seus componentes culturais, sociológicos e políticos. Possibilitará, ainda, se descortinar como e porque este instrumento cruel adquiriu contornos tão naturalizadores e banalizantes, chegando a ponto de tornar-se prática institucional e componente do poder. Ela está incorporada e socialmente aceita. Sob o manto de proteger e assegurar a tranqüilidade pública, o restabelecimento da ordem, a repressão e aplicação de castigo ao criminoso (onde a síndrome da vitimização social potencializa a cumplicidade do silêncio), é aceita, consuetudinariamente, como método e procedimento, por seus perpetradores. Os primeiros registros sobre maus tratos e penas cruéis, infligidos aos prisioneiros de batalhas, remontam à Idade dos Metais. Quando a cidade de Babilônia dominou a Mesopotâmia, já no segundo milênio antes de Cristo, o rei Hamurabi criou o primeiro código de leis, que dispunha de penas severas e degradantes, como a do Talião, do “olho por olho, dente por dente”. Naquela época, não haviam sido iniciadas as incursões imperialistas, podendo-se considerar que foram os Assírios, povo mesopotâmio, que, de maneira corrente, utilizaram a tortura contra os povos conquistados. Já no século VIII a.C., o modo de produção era escravagista, sendo os escravos considerados, unicamente, indivíduos de deveres, não usufruindo de qualquer direito. Os maus tratos e a violência física eram utilizados, indiscriminadamente, sem nenhuma contestação. No século II a.C., Roma se dividiu em dois grupos: democratas e aristocratas. Foi o início do que, posteriormente, denominaria-se Democracia e Ditadura, sendo, na última, onde se desenvolveria a tortura política. No século V, período da Idade Média, discursar, manifestar ou falar contra a ordem religiosa predominante era o suficiente para que o cidadão fosse levado ao suplício, nas fogueiras, em praça pública. As guerras santas, no mundo árabe, em nome de Alá, assim como as Cruzadas, também tinham como características os maus tratos e a brutalidade a que eram submetidos os capturados. Na região da Valáquia, Sul da Romênia, nos idos do século XV, Vlad Tepes, consagrado como Drácula, pelo cinema e literatura de ficção, era, reconhecidamente, tido como símbolo das forças do mal e da tortura. Tinha como método o empalamento, que consistia em introduzir um ferro no ânus ou no umbigo, até que saísse pelo pescoço da vítima. A política colonialista que se desenvolveu a partir do século XV reforçou, ainda mais, a prática escravagista – submetendo, principalmente, a raça negra e os povos vencidos. Durante os séculos XVI e XIX, em momentos e circunstâncias diferentes, a opressão, as penas cruéis e degradantes e os maus tratos eram característicos do regime e de um modo de vida de submissão e subserviência. Das páginas da História, podemos extrair, ainda, como momentos em que a prática da tortura era sistemática, os episódios da independência dos Estados Unidos, quando foram redigidas as Declarações dos Direitos do Homem e da Independência (1776), por Thomas Jefferson. Vale destacar, também, a queda da Bastilha, na Revolução Francesa (1789), símbolo do autoritarismo do governo e, ainda na Europa, as revoluções de 1830 e 1848 (contrapondo-se nacionalismo, liberalismo e socialismo). Já nos Estados Unidos, podemos apontar a Guerra de Secessão (1861-1865); no extremo oriente, os conflitos sino-japoneses e, finalmente, na América Latina, os processos de suas independências. Outros momentos em que vigorou a tortura foram Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sendo os períodos entre guerras marcados pela eclosão de regimes de exceção, em toda Europa. Assim também aconteceu nos países latino-americanos, como o Brasil, no Governo Getúlio Vargas. Na Europa, destaque para o período dos regimes fascistas – como o português de Salazar, o espanhol de Franco, o italiano de Mussolini e o nazismo alemão de Hitler. Mesmo antes da prática da tortura, os Direitos Humanos eram, então, sistematicamente violados, pelas execuções extrajudiciais, a idealização da superioridade racial, econômica, político-ideológica ou bélica. O anti-semitismo adotado pela Alemanha culminou com o holocausto judeu, nos campos de concentração ou nos laboratórios, onde eram feitas experiências com pessoas vivas. Paradoxal e extraordinariamente, se na Primeira Guerra Mundial eram os judeus, antes de tudo, alemães, lutando para defender o país, do pós-primeira guerra, até a deflagração da Segunda Guerra Mundial, eram, antes de serem alemães, considerados judeus-semitas. O período entre guerras foi marcado pelo terror, sendo a prática da tortura justificada pela necessidade de se reconstruir as economias dos países devastados pela Primeira Guerra Mundial. O fascismo acaba, com o término da Segunda Guerra Mundial, mas a prática de tortura persiste, no velho continente. Ela só será, institucionalmente, abolida, na década de setenta, quando Salazar é substituído, na Revolução dos Cravos, em Portugal, e ocorre a morte de Franco, na Espanha. Na Europa, ainda hoje, ocorrem morticínios e torturas, entre grupos rivais religiosos. Irlandeses do norte e do sul se digladiam e as questões históricas que atravessam longos anos, não sensibilizam, nem a imprensa, nem tampouco a população. As divulgações de violações de Direitos Humanos dos países do extremo oriente asiático, por exemplo, são freqüentes, mesmo com todas as dificuldades de se publicá-las. O governo americano chegou a ameaçar a China, devido às graves denúncias de organismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos. No Timor Leste, recentemente, houve graves denúncias e tentativas de malograr a dominação, valendo ao timorense José Ramos Horta o prêmio Nobel da Paz do ano de 1996. O estado de barbárie, selvageria e violência é vivido, também, no continente africano, principalmente na região central, configurando-se no que Thomas Hobbes chamava de “O homem é o lobo do homem” ( homo homini lupus ). Ainda, especificamente, quanto às denúncias de prática da tortura, podemos citar o Iraque (os curdos no norte do país), o Sri Lanka (desaparecimento de jornalistas), o Zimbábue (a impunidade), a Turquia (desaparecimentos e execuções extrajudiciais, no meio rural e urbano), e o Marrocos (desaparecimento de políticos). Numa rápida retrospectiva histórica pelo Brasil, podemos constatar que a tortura e os maus tratos estiveram presentes nos 300 anos de colonialismo. As execuções extrajudiciais atingiam, também, os não-escravos (confederação do Equador - 1824). Vale lembrar a execução de Frei Caneca, a Sabinada, na Bahia (1837-1838), a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul (1835) e a Balaiada, no Maranhão (1838-1841). Somam-se a esses episódios, graves denúncias de torturas, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Com a instauração dos governos militares, da década de 60 até meados de 80, volta à cena a tortura, com todos os requintes de crueldade. Uma estrutura institucional do Estado operacionalizava a caça aos comunistas e subversivos de toda ordem, que discordavam do regime autoritário vigente. Os fins justificavam os meios e o império da força dominava o império da lei. Os Direitos Humanos não passavam de letra morta, tida pelos opressores, como discurso em defesa, não dos oprimidos, mas de criminosos considerados da pior espécie e perigosos para o regime estabelecido pela elite dominante. Observa-se, que a tortura e o seu recrudescimento, com todas as suas características, foi se instalando, sutil e gradativamente, integrando a cultura social e dos agentes estatais. Em elevada incidência, esta prática tem sido variável condicionada aos regimes políticos autoritários, mas em maior ou menor grau atravessou e avançou sobre a fronteira do regime democrático, violando liberdades democráticas e desrespeitando os direitos civis da população. Durante o regime militar, a tortura era orientada por princípios político-ideológicos. Já na era da democratização, ela se orienta, fundamentalmente, por critérios sócio-econômicos, realçando os componentes étnico-racial e das minorias excluídas e marginalizadas. Apesar dos avanços normativos, é importante ressaltar que o próprio Brasil, em seu primeiro relatório sobre a tortura, assume ainda persistir tal prática no país. Ela é usual para se extrair informações, confissões forçadas, obter ganhos com extorsões ou como forma de punição. Tem, nesse sentido, como principais instrumentos, o espancamento, choques elétricos, afogamentos, privações, ameaças, humilhações, intimidações psicológicas, entre outros. A anistia política foi decretada no Brasil, como instituto destinado a relegar os terrores da ditadura ao esquecimento. Oficializava-se, assim, o perdão para aqueles que se opunham a determinado sistema ou modelo político vigente. O que fica dissimulado no instituto da anistia, no entanto, é uma preocupação bem maior dos torturadores do que dos torturados, em se resguardar. Isso porque, com a mudança dos detentores do poder, seria possível a responsabilização pelos crimes e monstruosidades, cometidos em nome do regime da ditadura. Com a anistia, ficou assegurada a garantia da impunidade para essas pessoas. Este sentimento de impunidade, desfrutado, por muito tempo, pelos torturadores, consolidou a tortura como instituição nacional. Um fato para o qual não podemos fechar os olhos é o estreito relacionamento da prática de tortura com o desempenho da atividade policial. Esta não é uma exclusividade brasileira. São inúmeros os casos, nas mais diversificadas formas protagonizadas pelas polícias da maior parte do Mundo. A tortura constituiu-se, historicamente, em verdadeira instituição nacional e o Brasil foi um dos últimos países ocidentais a tipificá-la como crime. A Constituição da República de 1988 estabeleceu no art. 5º, inciso III, que ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante, dispondo no inciso XLIII que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia as práticas da tortura..., por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; e o Brasil ratificou, desde 1989, a Convenção Contra a Tortura e Outras Penas Cruéis (1984) e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985). Para cumprir o texto constitucional e os compromissos internacionais assumidos, foi introduzido, no ordenamento jurídico brasileiro, a lei 9455/97. Isso aconteceu, logo após a enorme repercussão nacional e internacional do episódio da Favela Naval, em Diadema/SP, que tipificou o crime de tortura. Até então, inexistia na legislação repressiva penal anterior, a lei 9455/97, conduta delituosa tipificadora da prática da tortura. Sendo assim, policiais, não raras vezes, eram condenados por crimes definidos legalmente, como abuso de autoridade, lesão corporal ou sob outro nomem juris, mas que configuravam métodos e práticas de tortura. A tortura era prevista somente como circunstância agravante ou qualificadora de certos crimes praticados com violência (homicídio, lesões corporais, estupro, roubo, etc.), quando o delito se revestia de extrema crueldade ou para infligir, deliberadamente, sofrimento à vítima. O sociólogo João José Leal, ao abordar o tema, faz distinção entre dois tipos específicos de tortura, as quais textos de convenções e acordos internacionais procuram atingir: a tortura policialesca ou inquisitorial, praticada por motivo meramente funcional ou instrumental e a institucional, utilizada por motivos político-ideológicos. Em relação à tortura policialesca, assim se refere: “A tortura policialesca, geralmente praticada nos porões dos presídios e cadeias, por funcionários estatais subalternos (agentes, investigadores, comissários, carcereiros, e policiais militares), conta com o apoio disfarçado ou com a conivência declarada de magistrados, membros do Ministério Público e autoridades policiais. É tolerada com base no entendimento de que, em relação a certos suspeitos, o único meio de obter prova material e da autoria do crime é através do castigo físico ou mental. É comum, no discurso policial, a afirmativa de que, ‘com ladrão, só na porrada’. Também é comum a concordância de leigos (principalmente de vítimas de crimes contra o patrimônio) com a prática da tortura, sob a justificativa que é o único meio para se chegar a resultados satisfatórios no campo da investigação policial. Outros, ainda, numa atitude sinistra e de inconcebível cinismo moral, entendem que a tortura ainda constitui o justo castigo pelo crime cometido”. É papel das organizações policiais e sociedade civil demonstrar que essas práticas não são isoladas e que persistem, em boa parte, devido à falta de empenho político para investigar, afastar, processar, julgar e punir quem comete tortura. Sem querer contemporizar, antes de nos empenharmos em culpabilizar os eventuais autores da tortura, é necessário admitir o controle civil efetivo, autônomo e independente das polícias, como fator inibidor e preventivo da tortura e violência policial. Sem contar a necessidade premente de estudos para diagnosticar as causas e para o desvelamento de alternativas construtivas, na erradicação de todas as formas de tratamentos cruéis, desumanos e de tortura. Também se faz fundamental o investimento prioritário em qualificação e treinamento profissional, métodos científicos de investigação, tecnologia e pesquisa científica multidisciplinar. Deve-se contemplar, dessa maneira, os profissionais da base das polícias; aqueles que executam as atividades (“o fazer polícia”). Pois é nesse campo que ocorrem os entrechoques e conflitos multivariados dos direitos e interesses dos cidadãos, sob a ótica do respeito e promoção dos Direitos Humanos, como via de mão dupla. A polícia constitui-se no aparelho repressivo do Estado e tem sua atuação pautada no uso da violência legitima. É difícil admitir, mas existe, na sociedade, uma demanda para a prática da violência policial. É esta violência que serve à sociedade, dentro de diversos aspectos e circunstâncias, mas, especialmente, no tocante à solução dos crimes contra o patrimônio e na repressão das classes perigosas. Decorre dessa complexidade, a enorme dificuldade do Estado, no âmbito da Segurança Pública, no que se refere ao controle da violência legitima, do qual decorreria, consequentemente, a extinção do uso ilegítimo da força, por parte das organizações policiais. Este é um problema grave que deve ser solucionado pelos muitos setores da sociedade organizada. A violência ilegítima, praticada por agentes públicos que detêm o monopólio legitimo do uso da força, coloca em risco e ameaça, substancialmente, as estruturas democráticas necessárias ao Estado de Direito. A democracia é questão de extrema importância, neste contexto, pois a violência policial, inevitavelmente, produz as mais graves violações aos Direitos Humanos e à cidadania, que são elementos do regime democrático. A função de manter a ordem, prevenindo e reprimindo crimes, tem os limites de sua atuação, dentro dos padrões de respeito aos direitos fundamentais do cidadão, como o direito à vida, à liberdade, à segurança e à sua integridade física e mental. A criminalização da ação policial não produzirá, por si só, os efeitos desejados pela sociedade, no tocante à redução da violência policial. Vale ressaltar que a violência é sua ambiência laborativa e sua atuação percorre, na maioria das vezes, a fronteira da ilegalidade. Mesmo nas situações em que a violência empregada seja legítima, uma atitude e comportamento irrefletidos podem ser interpretados como pratica de tortura. Podem mesmo levar o policial à efetiva prática dessa insidiosa violência, até mesmo por desconhecimento dos limites precisos de sua atuação legal. A especialidade da instituição policial é a violência: preveni-la, praticá-la, testemunhá-la, socorrer e reprimir seus efeitos e, ainda, incipientemente, pesquisá-la e estudá-la. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), anterior, portanto, à lei de crimes de tortura, em suas disposições sobre crimes praticados contra a criança e o adolescente, estabeleceu em seu art. 233 in verbis: “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância à tortura: Pena – reclusão de um a cinco anos. § 1º - Se resultar lesão corporal grave: Pena – reclusão de dois a oito anos. § 2º - Se resultar lesão corporal gravíssima: Pena – reclusão de quatro a doze anos. § 3º - Se resultar morte: Pena – reclusão de quinze a trinta anos.” O art. 233 do Estatuto teve sua aplicabilidade sustentada por estreita maioria de votos, em julgado de Habeas Corpus do Excelsio Pretório, que considerou tipificada a tortura no Direito Penal, nos caso em que a vítima fosse menor de 18 anos de idade. Deixou, entretanto, um vácuo, pois pecou em não definir o que era tortura, na acepção legal, no que consistia, quais as ações e omissões que lhe davam corpo. Ficou silente a este respeito, prejudicando, substancialmente, a efetiva responsabilização penal pela prática delituosa. A Lei 9.455, de 07 de Abril de 1997, regulamenta, em suas disposições, e estabelece as espécies de condutas, representadas em três principais verbos (constranger, submeter, e omitir) que exprimem ação e omissão, transcrevemos ipis literis: “Art. 1º - Constitui crime de tortura: I – Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) Com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) Para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) Em razão de discriminação racial ou religiosa; II – Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena – reclusão de dois a oito anos. § 1º - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º - Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.” A delimitação legal daquilo que consiste a tortura no tipo penal inicia-se pelo vocábulo constranger, que significa “forçar”, “coagir”, “violentar”, ao passo que submeter é “dominar”, “vencer”, e “subordinar”. O constrangimento e a submissão têm que ser, necessariamente, exercidos sobre determinada pessoa, empregando-se violência ou grave ameaça e produzindo-lhe sofrimento físico ou mental. O elemento subjetivo ou psicológico, denominado, pelo Direito Penal, de dolo do autor da ação delituosa, é um aspecto comum em todas as modalidades típicas de tortura (seja a de constranger, submeter ou omitir), onde emerge a vontade e a consciência de que se está torturando a vítima. Assim, constitui uma das modalidades do crime de tortura (art. 1º, I), a prática de violência ou ameaça causadora de sofrimento físico ou psíquico a uma pessoa, visando obter uma confissão, informação ou declaração; ou forçar uma pessoa a praticar uma ação criminosa, por ação ou omissão ou, ainda, com objetivo de discriminá-la racial ou religiosamente. Outra modalidade tipificada na Lei (art. 1º, II) se caracteriza pela prática de violência ou ameaça que cause intenso sofrimento físico ou psíquico a uma pessoa que esteja sob a guarda, poder ou autoridade de quem pratica o ato de tortura; que determine castigo a vítima ou medida de caráter preventivo (que seria uma das formas de castigo ou corretivo, infligido à vítima da tortura para que não volte a praticar a infração ou crime, onde figura como acusada de sua prática). É de vital importância, para dissipar as dúvidas, esclarecer como configuram-se a violência e a grave ameaça, capituladas na lei 9455/97. A violência é o emprego de força física, ocasionando a eliminação da resistência do ofendido. A grave ameaça consiste na manifestação do propósito de causar à vítima de tortura, um mal futuro que se consumará, havendo a vontade do autor da ameaça. Outros aspectos de igual relevância são os que dizem respeito a “guarda”, “poder” e “autoridade”, de conceituações de natureza penal. No que se refere à “guarda”, se enquadram todas as hipóteses em que a lei ou ato judicial tenham incumbido alguém de dar proteção e amparo a uma pessoa, compreendendo também qualquer situação de fato em que se tenha atribuído a guarda a alguém, desde que esteja demonstrada tal situação. Existindo a relação jurídica de sujeição do sujeito passivo ao torturador, fundada em vínculo de direito público ou privado, presume-se o exercício ou idéia de poder. O conceito de “autoridade”, em que se enquadra o policial militar, no exercício de suas funções, esta disposto no art. 5º da Lei nº 4898/65 (abuso de autoridade), o que permite a integração da legislação penal sob exame: “Art. 5º Considera-se autoridade para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente ou sem remuneração”. Sendo assim, esta é uma das situações, em que o crime de tortura se caracteriza como próprio; no qual o autor tem que, necessariamente, possuir determinada qualidade, no caso do policial militar, investido de autoridade, enquanto agente estatal público, no exercício de suas atribuições policiais. A Lei 9.455/97 (do crime de tortura), nos parágrafos 1º e 2º do art. 1º dispõe que: “§ 1º - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º - Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las incorre na pena de detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos”. No parágrafo 1º, há um aspecto relacionado com os policiais militares no exercício de suas funções, no que se refere à pessoa presa; expressão que deve ser interpretada, o mais abrangentemente, considerando-se a pessoa que esteja em prisão temporária ou em qualquer outra forma de prisão cautelar, e também quem está preso, por decisão de sentença condenatória. A modalidade de prisão em flagrante é aquela em que o policial militar se depara, no exercício de suas atividades; tida como prisão cautelar, não podendo, igualmente, o preso ser submetido a sofrimento físico ou psíquico. Neste contexto, é previsível que o dispositivo se aplique, também, para os casos de apreensão em flagrante, por prática de ato infracional (conforme estabelecido na Lei 8.069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente). Como já mencionado, a interpretação e aplicação tendem a ser mais abrangentes, em face de situações que culminem com a privação ou restrição da liberdade. A última forma de consumação do delito de tortura é aquela cometida por omissão, cujo conteúdo está transcrito no parágrafo 2º do art. 1º. A omissão, doutrinariamente, não é somente “deixar de fazer”, ou inércia ou inação, omitir é o não fazer aquilo que se tinha o dever de fazer. Estarão sujeitos à punição prevista nesta Lei, tanto aquele que se omite em evitar ou opor-se às condutas de constrangimento e submissão que possibilitam continuidade, pelo torturador, impedindo que o crime se consume, bem como aquele que, tomando conhecimento, deixa de apurar, devidamente, para fins de responsabilização penal. Como podemos perceber, em qualquer das circunstâncias declinadas, o agente tem o dever de garantir e resguardar a integridade física e mental da pessoa humana. A conduta omissiva consiste no hesitar em adotar providências para promover a apuração da prática de tortura de que se teve conhecimento, detendo o agente público omisso o dever legal de proteção e vigilância da pessoa sob sua guarda, poder e autoridade. No parágrafo 4º do art. 1º da Lei em análise, são previstas situações cominadas como agravantes, que podem redundar em aumento de pena, de um sexto a um terço. Entre tais situações agravantes, está a qualidade de agente público sujeito ativo da prática da tortura. A outra recai na condição da pessoa que sofreu a tortura (criança, adolescente, gestante, ou deficiente); e a última, se o crime foi praticado, mediante seqüestro. Observamos, no entanto, ter ficado de fora a figura do idoso que, sob nosso ponto de vista, deveria ter sido incluída, levando-se em conta sua fragilidade e debilidade física e mental. A lei trata o crime de tortura com o rigor necessário, com vistas a coibir, inibir, e prevenir sua prática. No entanto, em se consumando o crime e transitada em julgada a sentença condenatória, estabelece o parágrafo 5º do art. 1º que o agente público atingido perderá seu cargo, emprego, ou função pública. Além disso, prevê sua interdição para o exercício daqueles, pelo dobro do prazo da pena aplicada, equivalendo à proibição de concorrer a cargo, emprego, ou função pública, pelo prazo fixado. Independente do quantum da pena aplicada, são efeitos automáticos da condenação. Como previu a Constituição Federal, em seu inciso XLIII do art. 5º, o crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, o que ficou estabelecido nos parágrafos 6º e 7º da lei em comento. Dispôs, ainda, que o regime inicial para cumprimento da pena é fechado, permitindo a progressão do regime, o que corrigiu distorção no que preceituava a Lei nº 8.072/90, de Crimes Hediondos, que, anteriormente, estabelecia o cumprimento integral em regime fechado. O instituto da inafiançabilidade, previsto no parágrafo 6º da Lei da tortura, principalmente de ordem prática nas atividades policiais, é o relativo às exceções abertas à imposição de prisão em flagrante delito. Ele faz com que, em tratando-se de prática de tortura, as exceções da prisão em flagrante fiquem reduzidas somente ao Presidente da República, aos Governadores de Estado, Chefes de Governos estrangeiros e suas comitivas e Diplomatas acreditados perante o Governo brasileiro. O crime de tortura foi concebido como comum, o que fará surgir questões relativas à competência de julgamento, quando o autor for policial militar no exercício de suas atribuições: se pela justiça comum, ou pelo foro criminal especializado da Justiça Militar. Isso porque inexiste a tipificação do delito de tortura na legislação penal militar. De qualquer forma, antes mesmo da edição da lei que criminalizou a prática da tortura, já existia o conflito sobre a competência, quando, então, se discutia as disposições do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ora revogadas. Concluímos que a Lei atribui acentuado rigor, na repressão à prática da tortura, ao passo que contribui para evitar e promover a desmoralização da autoridade pública, ao assumir condutas arbitrárias e violentas contra aqueles que têm o dever de proteger e preservar a integridade física, psíquica e moral. Notadamente, esta prática vem sendo implementada em todos os Estados-nação. É o que podemos verificar em outras legislações, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, em seu art. 5º. O mesmo ocorre na Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela resolução nº 39/46, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1984. Outro exemplo é a Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura, adotada e aberta à assinatura no XV Período Ordinário de Sessões, da Assembléia Geral da Organização dos Estado Americanos, em Cartagena das Índias (Colômbia), em 9 de Dezembro de 1985. Podemos observar que todos estes instrumentos visam a erradicação e punição da tortura, sendo também um pouco anteriores à Constituição Cidadã de 1988, que também consagrou como princípio fundamental a suspensão, proibição e vedação absoluta à prática da tortura. Só essa constatação bastaria para que ficássemos perplexos e atônitos. O Brasil já era país signatário de tratados e convenções que punem e erradicam a tortura, desde 1989. Também sua Constituição, promulgada em 1988, prevê a proibição desta prática. No entanto, somente 9 (nove) anos depois, foi promulgada, no País, uma lei que tipifica e pune o crime. É importante frisar que a tortura era instrumento corrente para reprimir, castigar, intimidar, humilhar e matar pessoas, no período ditatorial. E, mesmo após o término desse regime, é forçoso diagnosticar que o Estado Democrático de Direito ainda está longe de se completar, jurídica e socialmente, uma vez que até mesmo os direitos inerentes à pessoa humana padecem de legislação específica para sua efetiva aplicação. Alguns estudos sobre práticas de tortura e de violência policial, desenvolvidos pelo cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, da Universidade de São Paulo, demonstram que as práticas policiais de natureza autoritária têm acontecido, independentes do regime político. Elas se devem a uma continuidade de métodos utilizados no regime autoritário, que a transição política não conseguiu extinguir, pelo fato dos governos de transição terem tratado as instituições policiais como organismos neutros, nos quais a democratização política atacaria as raízes autoritárias. Esta continuidade, entretanto, possibilitou a adequação de práticas autoritárias dentro de um governo democrático, gerando, com isso, a existência de um “regime de exceção paralelo”. Para ajustar os órgãos de segurança pública à realidade democrática, é importante, antes de tudo, que a sociedade descubra que tipo de polícia ela quer: uma polícia que respeite os direitos do cidadão, que exista para dar segurança e não praticar violência ilegítima; ou uma polícia corrupta (que livra de flagrantes os filhos das classes abastadas) e arbitrária (que utiliza a tortura e o extermínio, como métodos preferenciais de trabalho e que atinjam, na grande maioria, as classes populares). No plano da organização policial, a proteção da pessoa humana impõe o revigoramento da vida democrática, pela participação direta dos policiais, na esfera decisória. Ainda hoje, contudo, as instituições policiais encobrem, com freqüência, a efetiva perpetuação da oligarquia política institucional, herança de um modelo organizacional centralizador e de estrutura hierárquica excessivamente verticalizada. Tal quadro impossibilita e dificulta mudanças mais dinâmicas e ágeis para sua verdadeira vocação de proteção e defesa do cidadão e, sobretudo, de respeito e promoção dos Direitos Humanos e da Cidadania. Atualmente, impulsionados pelo processo de tomada de consciência de sua própria cidadania, os policiais que operam nas atividades de linha ou operacional estão alinhando e incorporando a diretriz que emana da essência do “ser policial”. Neste sentido, a filosofia é de que esses policiais sejam garantidores dos direitos fundamentais das pessoas, como mediadores e administradores dos conflitos sociais, nas violações e transgressões da lei; mantendo sempre a serenidade de espírito, a firmeza de caráter, no convívio com as grandezas e misérias da condição humana. De resto, é possível afirmar e até prognosticar que o que foi construído, ao longo da existência dos órgãos de segurança pública, principalmente as Polícias Militares, passa por uma fase de transição e reconstrução. A visibilidade das mudanças ainda é prejudicada pela estrutura organizacional, que padece de entropia acumulada pela sua trajetória histórica. Por outro lado, a cidadania incorpora-se, como valor, passando a fazer parte dos princípios éticos e morais, interna e externamente. Essa evolução possibilitou aos profissionais a reflexão e o repensar de seu papel, enquanto sujeitos de Direito, agentes de Direitos Humanos e garantidores das liberdades individuais e coletivas. É inegável que a organização militar, enquanto guardiã e defensora do interesse público, haverá de ser remodelada, estruturalmente, para produzir uma mudança de cultura e comportamento. Assim, facilitará e expressará um clima organizacional compatível com a importância e o reconhecimento da profissão e das atividades de segurança pública e defesa social. Estes são pontos vitais, não só para a redução da violência e criminalidade, mas, principalmente, para a concretização da participação comunitária e do estabelecimento de uma cultura de paz social. BIBLIOGRAFIA Constituição da República Federativa do Brasil (1988) – Art. 5º - p. 17/20. Senado Federal – Subsecretaria de Informações 1. Lei nº 9.455, de 07 de Abril de 1997 (Define os crimes de tortura e dá outras providências) 2. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º da Constituição Federal, e determina outras providências) 3. Lei nº 8.930, de 06 de setembro de 1994 (Dá nova redação ao art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990). Álvares, Pércio Brasil. A criminalização da Tortura e suas implicações na atividade policial-militar. Revista Unidade nº 40 – Outubro/Novembro/Dezembro 1999 Almanaque Abril 1998 – Editora Abril – p. 29/48/161/173. Piovesan, Flávia. Cavallaro, James Louis. Mazelas a luz do dia – Folha de São Paulo, Tendências/Debates, 23/08/2000. Tavares, Celma – torturanuncamais.org.br 1. Construindo uma nova relação 2. Polícia para quem precisa 3. Violência policial: uma ameaça à Democracia. Morini, Cristiano. Toturanuncamais.org.br 1. Direitos Humanos e Tortura
*José Luiz Barbosa, 2º Sargento da Polícia Militar de Minas Gerais, presidente da Associação Cidadania e Dignidade, bacharel em direito, ex-Membro da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos-ASPRA/PMBM, ex-presidente e ex-Diretor de Planejamento - Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares – MG. Artigo apresentado no Seminário realizado em 29 de Junho de 2001. |
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