** Sob o título mortes anunciadas o prof. Zaffaroni (Temis: Bogotá, 1993), em livro clássico, diz: “são mortes causadas, de forma massiva e normalizada, pela operatividade do sistema penal”. Que significa normalizada: são mortes aceitas, não contestadas, assimiladas pela mídia e pela população.
Dentre as mortes anunciadas ele distingue: (a) mortes institucionais (mortes geradas no exercício das funções pelos agentes armados das agências de repressão do sistema penal); (b) mortes extra-institucionais (mortes geradas fora do exercício das funções por esses agentes armados); (c) mortes para-institucionais (mortes geradas pelos grupos de extermínio); (d) mortes contra-institucionais (mortes contra os agentes do sistema penal); (e) mortes meta-institucionais (mortes que passam pelas agências do sistema penal (preso que mata outro preso, por exemplo).
Uma quantidade exorbitante de mortes para-institucionais foi objeto de uma matéria do jornal Folha de São Paulo (25.03.11): trata-se de um relatório produzido pela Polícia Civil do Estado de São Paulo que atribui a policiais militares 150 assassinatos, em dois grupos de extermínio (zona leste e zona norte), durante os anos de 2006 a 2010.
A mãe de uma das vítimas disse: “Não passava por minha cabeça existir bandido usando farda”.
Esses grupos agem à margem da lei, executando seus “desafetos” e quem mais estiver junto, para que não restem testemunhas.
A existência destes grupos é, em si, um fato inquietante, pois sua ação é uma das principais fontes de violação do direito à vida e ameaça o Estado de Direito. Porém, mais preocupante ainda é saber que há policiais militares entre os membros destes grupos.
De acordo com as investigações conduzidas pelo DHPP, cerca de 50 policiais militares estariam envolvidos nas mortes de 150 pessoas, que foram executadas pelas ações destes grupos. Se as suspeitas se confirmarem, numa contagem simples, cada policial seria responsável por três homicídios.
Outro dado surpreendente é o motivo dos crimes. Segundo o relatório, as principais motivações seriam: “20% por vingança; 13% por abuso de autoridade; 13% "limpeza" (assassinato de viciados em drogas, por exemplo); 10% por cobranças ligadas ao tráfico e 5% por cobranças de jogo ilegal; 39% sem razão aparente”.[1]
O relatório traz ainda informações sobre a vida pregressa dessas vítimas de homicídio, revelando que a ampla maioria não tinha antecedentes criminais.
Analisemos outros números. No período de 2006 a 2010, foram registrados na capital paulista 7.725 homicídios. Destes, de acordo com o relatório de DHPP, 150 seriam resultantes da ação de grupos de extermínio. Estas mortes correspondem a cerca de 2% do total de homicídios na capital.
O número parece pequeno, mas se olharmos o que ele representa vamos chegar à seguinte conclusão: dois únicos grupos são responsáveis por 2% dos homicídios ocorridos no município de São Paulo.
É certo que não é possível generalizar e dizer que toda a Polícia Militar pertence a grupos de extermínio ou está envolvida com atos ilícitos. Mas é possível afirmar que, se não houver uma rápida resposta por parte das autoridades responsáveis, esse quadro de violações tende a piorar e a polícia será uma agência completamente desacreditada pela população e, como consequência, é possível que assistamos ao aumento da violência e do crime.
Como muito bem ressaltou o jurista Juan Méndez, relator especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU, é imprescindível compreender que a violência perpetrada por agentes de Estado traz sérias conseqüências para a qualidade ou para a própria existência da democracia[2].
As mortes anunciadas fazem parte da nossa guerra civil permanente, cujos fundamentos (típicos do populismo penal) foram reforçados a partir da década de 80 por atores populares, políticos e midiáticos, que passaram a defender aberta e criminosamente as ações mortíferas da polícia para conter o tráfico de drogas e a criminalidade patrimonial.
Desde então o Estado e a sociedade perderam o controle dessa mortandade epidêmica, que tampouco gera qualquer tipo de desconforto sério na mídia ou na comunidade. É a indiferença que faz a diferença da nossa sociedade no século XXI!
** Contribuiu para a elaboração do artigo Adriana Loche, que é socióloga, soutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo e pPesquisadora do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes.
[1] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2503201101.htm
[2] Méndez, J.E.; O’Donnell. G. & Pinheiro, P.S. 2000. Democracia, violência e injustiça: o não-Estado de Direito na América Latina. São Paulo, Paz & Terra.
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