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sexta-feira, 2 de março de 2012

Os abusos sexuais na Igreja. Evento marcante aponta para uma mudança de atitude. Entrevista especial com João Edênio Valle


O comportamento dos padres pedófilos representa um desafio que exige coragem, discernimento e ação, primeiro dos bispos e do próprio clero, mas também e, sobretudo, dos fiéis, mulheres e homens, e das comunidades, considera o padre e psicólogo
Confira a entrevista.
Foi realizado na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, de 6 a 9 de fevereiro, o Simpósio “Para cura e renovação”. Participaram cerca de 240 participantes, distribuídos entre bispos e superiores religiosos de todo o mundo. O evento teve como tema a crise na Igreja diante dos casos de abusos sexuais por parte do clero. Quem esteve lá, participando inclusive como um dos expositores, foi o padre e psicólogo João Edênio Valle, que aceitou conceder uma entrevista à IHU On-Line, por e-mail, sobre o que foi debatido e sobre quais os rumos da Igreja diante deste cenário. Edênio Valle comenta que no evento “era fácil observar que havia uma insistência em passar da apresentação (ver) e juízo (julgar) dos fatos para uma linha de ação mais decidida da Igreja (agir) em nível nacional e internacional, envolvendo a responsabilidade direta dos bispos. Palavras como prevenção, proteção e defesa das vítimas eram repetidamente trazidas ao plenário”. Em sua avaliação, “ficou claro que a Igreja só gozará de credibilidade na sociedade se demonstrar que os valores que ela proclama levam seus próprios filhos a viverem com integridade todas as dimensões de sua sexualidade e humanidade”. Ele continua: “o objetivo ao qual a Igreja está se propondo é o de ajudar a humanidade a se perguntar pelos verdadeiros valores humanos da sexualidade, confessando, porém, que a própria Igreja precisa tirar a trave de seu olho, antes de apontar para o cisco no olho dos que não pensam como ela”. E conclui: “com base em minha experiência de psicólogo não vejo como se possa exterminar totalmente este mal nem dentro nem fora da Igreja. Peço a Deus que a Igreja tenha a coragem de não ficar em medidas paliativas”.
João Edênio Reis Valle (foto), doutor em Pedagogia pelo Instituto de Psicologia da Pontifícia Università Salesiana de Roma, é padre da Congregação do Verbo Divino, psicólogo, assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e professor de Psicologia da Religião no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line Que avaliação o senhor faz do simpósio “Rumo à cura e à renovação”? Qual a importância para dentro e para fora da Igreja desta iniciativa?
João Edênio Valle Minha avaliação do simpósio é muito positiva. Foi um evento marcante que indica uma nova fase no posicionamento da Igreja Católica com relação ao abuso sexual de menores por parte de presbíteros. O simpósio reuniu especialistas nos mais variados aspectos do problema. A ele compareceram cerca de 210 bispos de mais de 100 países de todo o mundo e 30 superiores gerais, entre os quais algumas gerais de congregações femininas. O que dá ao simpósio uma autoridade mais expressiva ainda foi o fato de contar com total apoio da Santa Sé, em especial da Congregação para a Doutrina da Fé e, na retaguarda, do Santo Padre. Embora a Companhia de Jesus e a Universidade Gregoriana assumissem a condução dos trabalhos, percebia-se claramente a presença física e o interesse da alta cúpula da Igreja.
Os destaques
Alguns fatos merecem destaque. Eram cerca de 74 agências de notícias e jornais credenciados. Todo o material produzido pelo simpósio podia ser acessado posteriormente online. Não se trata de mero pormenor e, sim, a demonstração de que a Igreja pretende ser transparente com relação a esse problema. Outro dado que chamou minha atenção foi a presença de leigas e leigos como explicitadores em três ocasiões. Provocou emoção no plenário a fala de uma senhora irlandesa, hoje líder em seu país de um movimento de defesa do menor, ela própria vítima de um padre abusador quando tinha 14 anos. Do ponto de vista prático, era fácil observar que havia uma insistência em passar da apresentação (ver) e juízo (julgar) dos fatos para uma linha de ação mais decidida da Igreja (agir) em nível nacional e internacional, envolvendo a responsabilidade direta dos bispos. Palavras como prevenção, proteção e defesa das vítimas eram repetidamente trazidas ao plenário pelos que tinham a incumbência de propor algo mais concreto. O cardeal Reinhard Marx, de Munique, e o Pe. Stephen Rossetti, dos Estados Unidos, se destacaram deste ponto de vista, mas também os bispos e especialistas que falaram na perspectiva da Ásia, África e América Latina batiam na mesma tecla.
A responsabilidade dos bispos no campo da pedofilia
O objetivo principal do simpósio talvez tenha sido o de mostrar aos bispos sua responsabilidade neste campo – em si bastante restrito – do abuso sexual de menores (pedofilia). Pessoalmente, estou convencido de que a mensagem principal do simpósio – dando sequência ao que o Papa e a Congregação da Doutrina da Fé estão cobrando de todos nós – foi a de que urge orientar proativamente a ação pastoral da Igreja mundial no sentido do que lhe compete em sua missão evangelizadora. Isso começa pela confissão pública de seus próprios pecados, como rezaram os bispos, na noite do segundo dia, na Igreja de Santo Inácio. O escândalo público suscitado pelo comportamento do clero precisa ser reparado por uma correspondente atitude penitencial e por uma postura pastoral nova “ad intra” e “ad extra”. A Igreja Católica deve mostrar que não tolera tais crimes no seio de seu clero. A ferida exposta da infidelidade à sua missão precisa ser “curada” de modo a trazer uma profunda “conversão” interna. Ao mesmo tempo, ficou claro que a Igreja só gozará de credibilidade na sociedade se demonstrar que os valores que ela proclama levam seus próprios filhos a viverem com integridade todas as dimensões de sua sexualidade e humanidade. Portanto, está em jogo mais do que dar apenas uma satisfação à justa indignação que o abuso sexual de parte de presbíteros católicos provoca dentro e fora da Igreja.
IHU On-Line Como foi a sua participação no simpósio na condição de relator?
João Edênio Valle Eu fui um dos dez expositores. Não fui convidado como representante da CNBB. Minha indicação se deve provavelmente ao fato de há muitos anos eu acompanhar de perto a evolução psicossocial dos problemas que o clero católico brasileiro vem experimentando nos últimos tempos. Contaram seguramente também meu extenso e intenso contato e estudos sobre os padres do Brasil, diocesanos e religiosos. No entanto, os organizadores do simpósio não me pediram que falasse como psicoterapeuta e, sim, que iluminasse o problema na perspectiva mais ampla de uma realidade social e cultural cada vez mais globalizada, secularizada e pluralizada, que exerce forte impacto também sobre todas as religiões e seus ministros preparados até poucos decênios atrás segundo modelos que sofreram o desgaste das rápidas e profundas mudanças em curso ao longo do século XX principalmente. Pediram-me que considerasse de maneira especial a necessidade de um diálogo direto e honesto – que não oculte as diferenças – entre os grupos sociais, as forças culturais e as religiões, como uma espécie de condição prévia para chegarmos a dar respostas mais adequadas às interpelações que sentimos em dois campos vitais para a realização humana: o da religiosidade e o da sexualidade.
IHU On-Line Como o senhor reage diante da posição do Vaticano de usar a religião contra a crise dos abusos sexuais?
João Edênio Valle – Sei que na Igreja Católica – talvez a mais complexa das organizações humanas existentes no mundo – existem posições diferenciadas. Parece-me que, provavelmente em virtude da preocupação em preservar os valores fundantes de nossa fé, há na Igreja posições distintas quanto ao que e ao como responder aos desafios de nossa época. Essa diversidade de pontos de vista existe em todos os níveis, mas se acentua nos setores que carregam as responsabilidades maiores. Além disso, não esqueçamos que a Igreja Católica, também depois do Concílio Vaticano II, manteve uma estrutura calcada na centralização do poder. Não obstante, quem ler com objetividade as posições da Santa Sé quanto ao abuso sexual (por exemplo, o discurso do Papa Bento XVI aos católicos da Irlanda) não poderá afirmar que a Igreja quer usar a religião contra a crise dos abusos sexuais. O objetivo ao qual a Igreja está se propondo é o de ajudar a humanidade a se perguntar pelos verdadeiros valores humanos da sexualidade, confessando, porém, que a própria Igreja precisa tirar a trave de seu próprio olho, antes de apontar para o cisco no olho dos que não pensam como ela. Uma das ênfases dessa postura reside na tentativa de criar um clima de diálogo e mútuo respeito, de aprender a colaborar no muito do que une os que buscam a paz, a tolerância e o bem verdadeiro de todos. Tarefa difícil, mas programaticamente apontada já por Paulo VI em sua primeira encíclica (“Ecclesiam Suam”) e pela “Gaudium et Spes”, onde os principais temas trazidos pela chamada “modernidade” são objeto de uma leitura mais aberta por parte da Igreja. Não se trata de deixar de denunciar os erros, mesmo sabendo que, em termos mundiais, predomina uma atmosfera cultural nada saudável no tocante à sexualidade, mas sim de aprender a descobrir que, mesmo na cultura secularizada em que vivemos, existem muitos elementos compatíveis com os valores do Evangelho. Cultivar solidariamente tais valores é uma tarefa fundamental para se construir uma nova humanidade.
IHU On-Line Diante dos escândalos de abusos sexuais, parece prevalecer a posição dos "reformadores" diante dos "negacionistas". Qual a posição dos reformadores diante deste cenário?
João Edênio Valle Não é segredo que também nas cúpulas da Igreja existam realmente posições mais conservadoras e outras mais abertas. Você usa os termos “reformadores” e “negacionistas”. Talvez esteja se referindo a essas diferenças de posições. No momento, no que se refere especificamente à questão do abuso sexual, a posição dos mais altos escalões da Igreja é de abertura ao problema. Não sei se o adjetivo “reformador” é o mais adequado para designar essa atitude. No simpósio, o que pude observar foi uma atitude de abertura. Não houve nenhum pronunciamento “negacionista”. O que pude perceber, especialmente em conversas com bispos da África, é que eles se mostravam um tanto surpreendidos com o que ouviam. Um deles, de língua francesa, me dizia que a descrição do acontecido nos países de língua inglesa não valia assim sem mais para o que ele via na África, com suas culturas autóctones tão distintas do mundo anglo-saxão que, aparentemente, foi o que experimentou o choque do abuso.
Aceitando a expressão que você propõe (“reformadores”) faço distinção, no simpósio, de, ao menos, dois pontos de vista. E um deles (apresentado pelo cardeal William Levada e pelo Mons. Charles J. Scicluna) corresponde às diretrizes já emanadas diretamente da Santa Sé, desde ao menos, aproximadamente, 15 anos. Elas reconhecem a existência, seriedade e urgência do problema. Os documentos normativos escritos da Congregação da Doutrina da Fé (são vários) caminham nessa direção. Usam um jargão eclesiástico calcado em um gênero literário que pode deixar insatisfeitos leitores secularizados, mas que é claro e chega a dizer com certa minúcia o que se pode e se deve fazer do ponto de vista de medidas canônicas. Neles urgem-se as Conferências Episcopais e a cada bispo que assumam atitudes e comportamentos que não se restrinjam a defesa do bom nome e prestígio da instituição, como em parte se fazia no passado. A prioridade é outra. Ressalta o peso que se dá às vítimas e às normas vigentes nas leis de cada país. Impressionou-me o relevo dado no simpósio à ação dos episcopados norte-americano e alemão. Especialmente nos Estados Unidos a crise assumiu proporções que provocam a admiração de quem leu, por exemplo, o John Jay Report, preparado por pesquisadores externos à Igreja, por encomenda da própria Conferência de Bispos daquele país. Com base naqueles estudos houve um intenso esforço de respostas ao problema em suas raízes, com resultados que fizeram reverter o dramático quadro anterior, entre os anos 2002 e 2012. No caso da Alemanha, segundo o testemunho dos dois arcebispos alemães presentes no simpósio (o de Munique e o de Trier) o esforço se concentrou em um programa de defesa dos direitos à proteção que cabe a todo menor. Um Programa de Formação de Leigos experimentado inicialmente no âmbito da Arquidiocese de Munique foi posteriormente estendido a todas as dioceses. No momento, graças ao apoio do cardeal Marx, de Munique, o programa está sendo testado em países da África e da América Latina e terá na Universidade Gregoriana um e-learning center que o poderá levar a outros países. Pena que, infelizmente, não havia no simpósio nenhum bispo brasileiro que pudesse manifestar formalmente o interesse da Igreja do Brasil em conhecer iniciativas como essas. Pelo que me foi possível ver, após conversas com psiquiatras da universidade alemã de Ulm, que já o aplicaram fora da Igreja na Alemanha, há possibilidades de algo análogo se fazer também em nosso país.
Um desafio que exige coragem
O comportamento dos “padres pedófilos”, embora estatisticamente pequeno, representa um desafio que exige coragem, discernimento e ação, primeiro dos bispos e do próprio clero, mas também e, sobretudo, dos fiéis, mulheres e homens, e das comunidades. Os bispos, sem dúvida, têm uma responsabilidade maior, e ao Santo Padre cabe zelar para que seja arrancado este “espinho na carne” da Igreja da virada do milênio. Os documentos da Santa Sé e as disposições canônicas, cada vez mais claras e precisas, estão tentando dizer como os bispos devem enfrentar o problema. Espera-se que eles sigam essas orientações, levando em conta cada circunstância de tempo e de lugar e as concretas condições culturais e legais de cada país. Para mim, é claro que isso não se fará do dia para a noite. Não será nada fácil encontrar caminhos adequados para tanto, uma vez que o mal em questão encontra-se no cerne mesmo da cultura de nossa época, não obstante exista na Igreja ao menos desde o famoso Concílio de Elvira, do ano 306. Com base em minha experiência de psicólogo não vejo como se possa exterminar totalmente esse mal nem dentro nem fora da Igreja. Peço a Deus que a Igreja tenha a coragem de não ficar em medidas paliativas. Na minha opinião, seria um erro pensar que o problema principal da sexualidade dos padres está na chamada pedofilia. Criaríamos talvez, com isso, uma espécie de bode expiatório, mas não iríamos à raiz do problema. Tampouco bastará aplicar, em termos gerais, as orientações que nos chegam de Roma (Carta da Congregação para a Doutrina da Fé, de maio de 2011) e que também a CNBB tentou traduzir em um documento próprio, aprovado pela sua Assembleia Geral de 2011. Uma análise bem mais profunda e uma verdadeira conversão se fazem necessárias se quisermos ir em direção à “cura e renovação” que o Santo Padre pede a toda a Igreja. Refiro-me à conversão no sentido espiritual cristão, mas – como expus em minha fala – também a uma revisão de pontos que dizem respeito a aspectos estruturais e organizacionais e a costumes venerandos que regem há séculos a vida do clero católico. A forte presença no simpósio de bispos da Ásia, África e América Latina me mostrou que nos próximos decênios é em seus países que os membros do clero irão crescer de modo exponencial. Há que ter presente que suas culturas e tradições religiosas são distintas das gestadas pela Idade Média europeia e, nos últimos três ou quatro séculos, pelo embate da Igreja com a chamada modernidade. E o que dizer desta nova conjuntura global que põe em crise a modernidade, abrindo espaço ao fluido multiculturalismo, que alguns sociólogos contemporâneos chamam de pós-modernidade?
IHU On-Line A crise é, em grande parte, um frenesi midiático e jurídico ou é um verdadeiro câncer?
João Edênio Valle – Como psicólogo não gosto de usar expressões como “frenesi” ou “câncer”. Sei que, em linguagem jornalística, pode-se falar em frenesi midiático ou, usando outra analogia, comparar o surgimento do comportamento abusivo em setores do clero como sendo um câncer. Mas tal linguagem pode nos induzir a uma análise superficial do que está de fato acontecendo, sem distinguir bem todos os seus fatores, causas e processos que caracterizam o fenômeno hoje. Diagnósticos calcados em tais expressões podem nos levar a adotar medidas igualmente “frenéticas”, ditadas pelo apavoramento ante a inesperada virulência de alguns sintomas. Em alguns países o escândalo do abuso sexual por parte do clero exigiu medidas drásticas. A primeira reação tendia a ser a de adotar recursos e técnicas de UTI, supondo que assim se poria fim ao descalabro que parecia aumentar a cada edição de jornais. Aos poucos, assim como no caso do combate ao crack na cidade de São Paulo, percebeu-se que o uso isolado da repressão não ajuda a enfrentar o mal em suas múltiplas raízes.
“Tolerância zero”
Penso, assim, que a chamada “tolerância zero”, isoladamente tomada, não seja um bom caminho. O que se requer é um encaminhamento de soluções ancoradas em diagnósticos pacientes e válidos de cada situação. Estamos ante um mal que é sintoma de problemas mais de fundo que requerem melhor consideração. Com isso não estou dizendo que não se possa fazer nada. Ao contrário. É preciso fazer algo, mas é mais necessário, ainda, saber que a sexualidade, assim como ela existe para centenas de milhões de indivíduos, tornou-se um enigma (título de um livro preciso do Frei Antônio Moser). Há que decifrá-lo e essa tarefa é de toda uma época. Não se trata de curar indivíduos e sim de buscar na milenar experiência da sabedoria cristã os elementos que nos ajudarão a atender os sofrimentos que uma sexualidade sem peias e sem respeito ao outro/as pode trazer para a humanidade e as novas gerações. Nesse contexto, cabe à Igreja, como em todas as outras épocas, desempenhar o ministério da misericórdia e da justiça.
IHU On-Line A Igreja deve cooperar plenamente com as autoridades civis, incluindo a polícia e os procuradores? Ou isso significaria renunciar à autonomia pela qual a Igreja travou batalhas titânicas ao longo dos séculos para defender?
João Edênio Valle – Sim, a resposta é positiva. Entender a autonomia da Igreja e de seu direito e dever de tomar ela própria as devidas providências não implica uma desconsideração da lei civil e penal e do que as instâncias conscientes da sociedade se propõem no sentido de evitar o abuso dos inocentes.
IHU On-Line A Igreja deve abraçar o uso da psicologia na seleção de candidatos ao sacerdócio, ou isso seria assumir uma mentalidade secular em vez dos tradicionais princípios espirituais de formação?
João Edênio Valle Quanto a isso a Igreja, em documento da Congregação para a Educação Católica, já se pronunciou com suficiente clareza. O uso dos recursos às ciências psicológicas não pode, porém, ser entendido como uma renúncia ao que a experiência sapiencial multimilenar da Igreja acumulou em termos de orientação espiritual. Há aqui um trabalho a ser feito, pois seja do lado dos profissionais da psicologia, seja do lado dos ministros da Igreja, há incompreensões e distanciamentos a serem superados. Os preconceitos existem em uma e outra parte. O que é preciso é desenvolver práticas efetivas de mútua colaboração, com plena consciência de que cada uma das duas abordagens tem seu serviço específico em casos que traduzem desenvolvimentos psicológicos e religiosos inadequados ou doentios.
IHU On-Line A Igreja deve apoiar programas agressivos de prevenção e detecção dos abusos, ou isso correria o risco de "sexualizar" as crianças ao longo das linhas de educação sexual secular?
João Edênio Valle – Sou contra qualquer prática educacional definida a partir da “agressividade”. A boa prática psicopedagógica respeita o estágio de desenvolvimento e a dinâmica do funcionamento afetivo e cognitivo de cada criança. Isso vale de maneira especial para os aspectos tanto “religiosos” como “seculares” do acompanhamento de toda a evolução psicossexual, sobretudo da infantil. Nos programas de prevenção ou recuperação de vítimas do abuso por parte de adultos há que se tomar particular cuidado nesse ponto, pois não é rara a existência de traumas e fixações que podem deixar trágicas sequelas. Na literatura especializada e também na prática clínica que conheço, mencionam-se frequentemente casos nos quais o abusador, sobretudo o perverso, foi ele próprio vítima em sua infância. Note-se, no entanto, que há circunstâncias nas quais se faz mister o uso de posições enérgicas e mesmo repressivas. O difícil é lograr um discernimento adequado das medidas a serem tomadas.
IHU On-Line A crise é verdadeiramente um fenômeno global, ou é fruto de um "pânico moral" em grande parte restrito ao Ocidente?
João Edênio Valle Vivemos em uma sociedade exacerbada pela hiperestimulação da sexualidade. Esse fenômeno, graças a uma mídia dotada de poderosos recursos tecnológicos, é global e envolve grandes interesses econômicos. Trata-se de um mercado que penetra agressivamente tanto no Ocidente (sua matriz) como o Oriente (que conheço pouco). Não respeita tampouco as antigas bem preservadas fronteiras de espaços religiosos, como, por exemplo, os seminários e conventos. No entanto, sendo a sexualidade um dado de base da constituição dos seres humanos, não se deve entender a globalização midiática como sendo algo inédito no manejo da sexualidade e da religiosidade humanas. O que acontece é que tecnologias cada vez mais sofisticadas tornam tudo acessível a todos, o que dá origem a um mercado capaz de influenciar negativamente o ser humano em suas necessidades e desejos, a ponto de inibir sua capacidade de responsabilidade de controlar e evitar a compulsividade dessa necessidade.
IHU On-Line O Vaticano deve assinar embaixo de políticas de "tolerância zero", ou isso romperia a relação paterna que supostamente existe entre um bispo e seus padres?
João Edênio Valle – Não é só pela razão que você assinala que a Igreja (não o Vaticano em si) deve aprender a evitar a “tolerância zero”. Duvido mesmo que a tolerância zero possa favorecer o necessário clima de diálogo entre o bispo e seus presbíteros. O que tenho visto em algumas dioceses me leva a pensar assim. No entanto, isso não significa que os bispos, o clero local e as comunidades enquanto tais não devam cobrar de seus ministros o que deles têm o direito de exigir. Uma coisa que eu venho falando há muitos anos por onde passo é que o sujeito do processo que conduz um presbítero à sua maturidade humana (espiritual, social e humano-afetiva) e evita quedas dolorosas em seu comportamento é, sempre e necessariamente, o próprio presbítero e o presbitério enquanto um corpo de serviço ministerial. Algo que, a meu ver, faz falta na Igreja é incentivar o próprio clero a lidar com suas fragilidades. Há ainda uma tendência a deixar que tudo venha de cima. Por que não existe um código de ética formulado pelo próprio clero, a exemplo do que fizeram os médicos e os advogados?
IHU On-Line Qual deveria ser a postura dos bispos diante de casos de abusos sexuais por parte do clero?
João Edênio Valle Para começar, o mais indicado seria que eles estudassem em conjunto o que a Santa Sé vem dizendo e procurassem criar os recursos necessários para que possam ajudar a quem precisa, primeiramente as vítimas (crianças, famílias e comunidades afetadas) e os abusadores em segundo lugar. Há muito mesmo a fazer nesse campo e não só depois do leite derramado.
IHU On-Line Como esse debate repercute na Igreja do Brasil?
João Edênio Valle – Nossa Igreja, através de alguns de seus organismos (do Conselho Nacional de Presbíteros, da Organização dos Seminários e Institutos do Brasil, da CRB e da CNBB), tem tomado sempre iniciativas importantes. Eu mesmo participei de cursos e seminários organizados pela CNBB e a CRB ainda nos anos 1970 e 1980. Também as Igrejas de outros países tiveram programas semelhantes, como sei por minha participação direta em alguns deles. A experiência desses países mostrou que o que haviam feito não fora suficiente e elas, então, partiram para programas mais aprimorados. Essa busca continua e o simpósio de Roma pode ser um estímulo para tanto. No evento, o cardeal alemão disse com todas as letras (e o deixou consignado por escrito também) que o ano mais difícil de sua vida como bispo foi o de 2010, quando ele tomou conhecimento do problema da pedofilia no clero de seu país. Exagero de retórica? O simpósio de Roma quis dizer aos bispos de todo o mundo, e também aos do Brasil, que precisam aplicar essa dura lição em cada uma de suas Igrejas, mesmo que o problema não tenha as proporções que adquiriu em países que foram celeiro de vocações para a Igreja do mundo inteiro.

(Por Graziela Wolfart)

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