Imunidade de Estado
Enquanto
a Esplanada dos Ministérios vivia a expectativa da posse do novo
presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ayres Britto, ocorria
também, à revelia do agito de autoridades da República e da correria da
imprensa, o encontro, em um pequeno auditório na sede do Ministério da
Justiça, no início da tarde de quinta-feira (19/4), de um renomado
jurista brasileiro e uma atenta audiência formada por estudantes e
operadores do Direito em geral.
Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça (ICJ, na sigla em inglês), em Haia, Holanda, e referência internacional em direitos humanos no âmbito da proteção legal transnacional, concedeu conferência gratuita, patrocinada pelo Ministério da Justiça e o Comitê Nacional para os Refúgiados (Conare), a uma pequena plateia que compareceu ao Auditório Tancredo Neves horas antes da concorrida posse de Ayres Britto como presidente do STF.
Além de juiz da Corte Internacional de Justiça, Cançado Trindade é também professor emérito de Direito Internacional Público da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco. Trindade integrou ainda a Corte Interamericana de Direitos Humanos entre 1994 e 2008, tendo presidido aquele tribunal de 1999 a 2004.
No encontro desta quinta-feira, Cançado Trindade falou sobre os detalhes envolvendo o controvertido julgamento do processo Alemanha x Itália, ajuizado na ICJ em 2008, em que a Alemanha entrou com uma ação para reclamar imunidade jurisdicional do seu Estado frente ao fato da Justiça italiana acolher uma série de ações cíveis relacionadas a violações de direitos humanos cometidas sob o regime do Reich alemão entre 1943 e 1945.
A Corte Internacional acabou por reconhecer, em fevereiro deste ano, que a República Italiana não observou sua obrigação de respeitar a imunidade gozada pela República Federal da Alemanha no âmbito do Direito Internacional. Cançado Trindade apresentou, na época, voto de divergência, que repercutiu amplamente no meio jurídico no mundo todo , ecoando críticas de que o tribunal em Haia havia tomado uma decisão mais política do que jurídica.
Barbárie transnacional
Vítimas italianas e gregas dos nazistas na Segunda Guerra, depois de verem suas ações malograrem na Justiça alemã foram buscar reparação nas cortes italianas. Frente à decisão dos tribunais italianos em reconhecer os pleitos, a Alemanha resolveu recorrer à Corte Internacional de Justiça questionando um caso emblemático, o de Luigi Ferrini, vítima dos nazistas durante a Segunda Guerra que buscou seu direito de indenizado pelos abusos dos quais foi vítima.
Como fator de complexidade, acordos internacionais e também bilaterais celebrados entre a Alemanha e a Itália previram o pagamento de indenizações às vítimas do nazismo a partir de 1961. Além disso, a Alemanha, desde então, tem tomado uma série de medidas reparatórias em favor das vítimas de ações dos nazistas.
Por outro lado, leis internacionais de imunidade do Estado garantem, em tese, que países signatários não podem ser processados em cortes de outros países por crimes de guerra.
Para complicar ainda mais o caso, frente ao sucesso dos impetrantes na Itália, vítimas do massacre ocorrido na cidade grega de Distomo também foram à Justiça italiana para ajuizar ações reparatórias, por conta de limitações impostas pela Constituição da Grécia, que impossibilitava a plena concretização de ações do tipo em razão de formalidades legais .
Em 2004, a Corte de Cassação italiana reconheceu que o Estado alemão não dispunha de imunidade legal que o protegesse de ser processado por nacionais estrangeiros em sistemas jurídicos de fora do país . O caso do italiano Luigi Ferrini, levado a um campo de concentração em 1944 e que ajuizou uma ação indenizatória contra a Alemanha, também foi acolhido pela Corte de Cassação italiana e acabou repercutindo no processo julgado em Haia.
Frente as decisões na Justiça italiana, a Alemanha recorreu à ICJ, em 2004, argumentado que a Itália desrespeitou a garantia de imunidade celebrada em acordos internacionais e bilaterais dos quais os dois países são signatários. A Corte Internacional de Justiça deu ganho de causa a Alemanha em fevereiro de 2011.
Voto vencido
Na opinião do professor Cançado Trindade, contudo, imunidade de jurisdição estatal não pode prevalecer sobre violações de direitos humanos. O voto vencido do juiz brasileiro acabou levantando um importante debate sobre a jurisprudência relacionada ao tema, em face de decisões análogas, recorrentes em diferentes cortes nacionais e internacionais.
Na conferência de quinta-feira, Cançado Trindade apresentou uma avaliação sobre o que chama de "tensão entre as imunidades jurisdicionais do Estado e os crimes internacionais”, tema de sua fala. O professor explicou que, “talvez por descuido”, a própria Alemanha, ao desenvolver os argumentos contra a sentença no caso Ferrini, acabou por mencionar as decisões dos tribunais gregos, inclusive da Corte Suprema da Grécia, a Areios Pagos, sobre fatos ocorridos na Grécia ocupada pelas forças de Hitler.
“Para serem executadas as sentenças dos tribunais gregos, havia a necessidade de aquiescência do ministro da Justiça da Grécia”, explicou Trindade durante o encontro. “É uma discricionaridade prevista no Direito interno grego, e desta forma, os pobres dos trabalhadores forçados gregos [aprisionados pelo regime nazista] tiveram que juntar-se a seus colegas italianos e buscar reparação diante de um tribunal italiano”, disse.
No caso do processo julgado pela Corte Internacional de Justiça,Trindade lembrou ainda que, além das partes demandante (Alemanha) e demandado (Itália), a Grécia entrou como terceira interveniente, algo inédito no tribunal, conhecido por limitar os casos sobre sua responsabilidade apenas às partes envolvidas no contencioso.
De acordo com o professor, a Alemanha, argumentou, durante as audiências públicas ocorridas em setembro de 2011, que todas as questões envolvendo crimes decorrentes do nazismo tinham sido resolvidas nos acordos de 1961 e, “ex gratia”, pelas demais iniciativas do país em ressarcir as vítimas diretas ou seus descendentes imediatos. Apesar do excelente nível do julgamento, que contou com alguns dos melhores juristas da atualidade, de acordo com Trindade, a conclusão da corte em Haia, a seu ver, foi equivocada ao favorecer a Alemanha.
“A minha posição é que esta visão do assunto, que prevalece em Haia, não se sustenta”, disse Cançado Trindade. “Tenho a grata satisfação de ser uma voz dissidente. É absolutamente necessário, quando há violações maciças e crimes internacionais como este, levar conjuntamente em conta a responsabilidade penal internacional do indivíduo e a responsabilidade internacional do Estado”, ponderou Trindade. “Uma não exclui a outra, pois os indíviduos não cometem crimes desta gravidade sozinhos. Eles os cometem de acordo com políticas estatais criminosas e recursos materiais e humanos do Estado”, acrescentou.
Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça (ICJ, na sigla em inglês), em Haia, Holanda, e referência internacional em direitos humanos no âmbito da proteção legal transnacional, concedeu conferência gratuita, patrocinada pelo Ministério da Justiça e o Comitê Nacional para os Refúgiados (Conare), a uma pequena plateia que compareceu ao Auditório Tancredo Neves horas antes da concorrida posse de Ayres Britto como presidente do STF.
Além de juiz da Corte Internacional de Justiça, Cançado Trindade é também professor emérito de Direito Internacional Público da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco. Trindade integrou ainda a Corte Interamericana de Direitos Humanos entre 1994 e 2008, tendo presidido aquele tribunal de 1999 a 2004.
No encontro desta quinta-feira, Cançado Trindade falou sobre os detalhes envolvendo o controvertido julgamento do processo Alemanha x Itália, ajuizado na ICJ em 2008, em que a Alemanha entrou com uma ação para reclamar imunidade jurisdicional do seu Estado frente ao fato da Justiça italiana acolher uma série de ações cíveis relacionadas a violações de direitos humanos cometidas sob o regime do Reich alemão entre 1943 e 1945.
A Corte Internacional acabou por reconhecer, em fevereiro deste ano, que a República Italiana não observou sua obrigação de respeitar a imunidade gozada pela República Federal da Alemanha no âmbito do Direito Internacional. Cançado Trindade apresentou, na época, voto de divergência, que repercutiu amplamente no meio jurídico no mundo todo , ecoando críticas de que o tribunal em Haia havia tomado uma decisão mais política do que jurídica.
Barbárie transnacional
Vítimas italianas e gregas dos nazistas na Segunda Guerra, depois de verem suas ações malograrem na Justiça alemã foram buscar reparação nas cortes italianas. Frente à decisão dos tribunais italianos em reconhecer os pleitos, a Alemanha resolveu recorrer à Corte Internacional de Justiça questionando um caso emblemático, o de Luigi Ferrini, vítima dos nazistas durante a Segunda Guerra que buscou seu direito de indenizado pelos abusos dos quais foi vítima.
Como fator de complexidade, acordos internacionais e também bilaterais celebrados entre a Alemanha e a Itália previram o pagamento de indenizações às vítimas do nazismo a partir de 1961. Além disso, a Alemanha, desde então, tem tomado uma série de medidas reparatórias em favor das vítimas de ações dos nazistas.
Por outro lado, leis internacionais de imunidade do Estado garantem, em tese, que países signatários não podem ser processados em cortes de outros países por crimes de guerra.
Para complicar ainda mais o caso, frente ao sucesso dos impetrantes na Itália, vítimas do massacre ocorrido na cidade grega de Distomo também foram à Justiça italiana para ajuizar ações reparatórias, por conta de limitações impostas pela Constituição da Grécia, que impossibilitava a plena concretização de ações do tipo em razão de formalidades legais .
Em 2004, a Corte de Cassação italiana reconheceu que o Estado alemão não dispunha de imunidade legal que o protegesse de ser processado por nacionais estrangeiros em sistemas jurídicos de fora do país . O caso do italiano Luigi Ferrini, levado a um campo de concentração em 1944 e que ajuizou uma ação indenizatória contra a Alemanha, também foi acolhido pela Corte de Cassação italiana e acabou repercutindo no processo julgado em Haia.
Frente as decisões na Justiça italiana, a Alemanha recorreu à ICJ, em 2004, argumentado que a Itália desrespeitou a garantia de imunidade celebrada em acordos internacionais e bilaterais dos quais os dois países são signatários. A Corte Internacional de Justiça deu ganho de causa a Alemanha em fevereiro de 2011.
Voto vencido
Na opinião do professor Cançado Trindade, contudo, imunidade de jurisdição estatal não pode prevalecer sobre violações de direitos humanos. O voto vencido do juiz brasileiro acabou levantando um importante debate sobre a jurisprudência relacionada ao tema, em face de decisões análogas, recorrentes em diferentes cortes nacionais e internacionais.
Na conferência de quinta-feira, Cançado Trindade apresentou uma avaliação sobre o que chama de "tensão entre as imunidades jurisdicionais do Estado e os crimes internacionais”, tema de sua fala. O professor explicou que, “talvez por descuido”, a própria Alemanha, ao desenvolver os argumentos contra a sentença no caso Ferrini, acabou por mencionar as decisões dos tribunais gregos, inclusive da Corte Suprema da Grécia, a Areios Pagos, sobre fatos ocorridos na Grécia ocupada pelas forças de Hitler.
“Para serem executadas as sentenças dos tribunais gregos, havia a necessidade de aquiescência do ministro da Justiça da Grécia”, explicou Trindade durante o encontro. “É uma discricionaridade prevista no Direito interno grego, e desta forma, os pobres dos trabalhadores forçados gregos [aprisionados pelo regime nazista] tiveram que juntar-se a seus colegas italianos e buscar reparação diante de um tribunal italiano”, disse.
No caso do processo julgado pela Corte Internacional de Justiça,Trindade lembrou ainda que, além das partes demandante (Alemanha) e demandado (Itália), a Grécia entrou como terceira interveniente, algo inédito no tribunal, conhecido por limitar os casos sobre sua responsabilidade apenas às partes envolvidas no contencioso.
De acordo com o professor, a Alemanha, argumentou, durante as audiências públicas ocorridas em setembro de 2011, que todas as questões envolvendo crimes decorrentes do nazismo tinham sido resolvidas nos acordos de 1961 e, “ex gratia”, pelas demais iniciativas do país em ressarcir as vítimas diretas ou seus descendentes imediatos. Apesar do excelente nível do julgamento, que contou com alguns dos melhores juristas da atualidade, de acordo com Trindade, a conclusão da corte em Haia, a seu ver, foi equivocada ao favorecer a Alemanha.
“A minha posição é que esta visão do assunto, que prevalece em Haia, não se sustenta”, disse Cançado Trindade. “Tenho a grata satisfação de ser uma voz dissidente. É absolutamente necessário, quando há violações maciças e crimes internacionais como este, levar conjuntamente em conta a responsabilidade penal internacional do indivíduo e a responsabilidade internacional do Estado”, ponderou Trindade. “Uma não exclui a outra, pois os indíviduos não cometem crimes desta gravidade sozinhos. Eles os cometem de acordo com políticas estatais criminosas e recursos materiais e humanos do Estado”, acrescentou.
Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico
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