DIREITO COMPARADO
Apresentada a questão da responsabilidade civil nas redes sociais na última coluna, ficou evidenciado que a jurisprudência estabeleceu duas premissas: a) independentemente da gratuidade dos serviços prestados, o CDC tem incidência; b) a responsabilidade civil não é objetiva.
Qual a posição da doutrina sobre esses dois problemas de qualificação? Tem prevalecido, até por influência das construções pretorianas do Superior Tribunal de Justiça, a tese da relação de consumo como subjacente a esses conflitos. A questão da gratuidade é afastada, mesmo porque se entende que essas empresas, direta ou indiretamente auferem vantagens com a oferta desses serviços.[1] Embora se admita a combinação entre as regras dos artigos 14 e 17 (consumidor por equiparação) do CDC com o parágrafo único do artigo 927 do CCB/2002, no que se refere à responsabilidade por atividade de risco.[2] Alguns autores apresentam posição tautológica, ao se definirem pela incidência do CDC, “caso se configure relação de consumo”[3], ou, de modo mais elaborado, com o entendimento de que haveria a submissão ao Código de Defesa do Consumidor e ao Código Civil, conforme as circunstâncias do caso, embora tenha prevalência a regra do artigo 14 do CDC.[4]
Essa posição, que é majoritária, encontra algumas reservas em parte da dogmática que se ocupa sobre o tema. Essa resistência passa pela necessidade de se rediscutir a qualificação jurídica e especialmente pelo afastamento da responsabilidade objetiva, com a criação de circunstâncias limitadoras da responsabilidade, tais como: “1) a) [o provedor] não possui conhecimento de que o material ou a atividade viola direitos; b) na ausência de tal conhecimento, não conhece fatos ou circunstâncias pelos quais a atividade que viola direitos se tornaria evidente; c) tão logo obtenha conhecimento ou ciência, aja imediatamente para remover ou desabilitar o acesso a este material; 2) os provedores não receberem qualquer benefício financeiro diretamente atribuível à atividade que viola direitos, caso os provedores tenham o direito e a habilidade de controlar tal atividade; 3) se notificados de uma suposta atividade que viole direitos conforme descrita pela subseção; 4) os provedores responderem imediatamente para remover ou desabilitar o acesso ao material que se alega como violando direitos.”[5]
Em um dos mais completos estudos sobre o tema Mário Luiz Delgado[6] apresenta algumas “propostas para um novo enquadramento da responsabilidade civil no âmbito do espaço virtual”. Como fundamentos teóricos, ele inventaria as seguintes construções intelectuais:
a) Responsabilidade de contato: desenvolvida originalmente por Gabriele Tusa, ela consiste “na ampliação das hipóteses de responsabilidade indireta, afastando a teoria da causalidade adequada”, sendo certo que o fundamento da responsabilidade “não seria mais a culpa ou o risco, nem mesmo o fato do produto ou do serviço, mas tão somente o ‘contato’ mantido pelo indigitado agente do dano e que o ordenamento considere como suficientemente relevante a provocar a responsabilização”.[7]Para Mário Luiz Delgado, esse constructo é útil para a maior parte dos conflitos surgidos no ambiente virtual, mas não se prestaria à responsabilizar o “provedor de acesso”, equiparados a simples intermediários, à semelhança das companhias telefônicas que permitem o tráfego de voz (ou de dados), mas não possuem qualquer controle sobre o que é transmitido. Quanto aos provedores de serviços, que hospedam páginas ou dão suporte às redes sociais, como é o caso do Facebook, a responsabilidade seria possível sob o fundamento do “contato”, não se admitindo a ideia de uma censura prévia, impeditiva de um controle ex ante dos danos causados pelos usuários (no que não corresponde ao entendimento hoje prevalecente no STJ, como visto na última coluna).[8]
b) Responsabilidade pressuposta: outro fundamento apresentado por Mário Luiz Delgado é a responsabilidade civil pressuposta (mise em danger), introduzida no Brasil por Giselda Fernandes Novaes Hironaka, com influência franco-belga.[9] Sua utilização no espaço virtual, “permitiria a responsabilização solidária de todos os envolvidos na cadeia de prestação do serviço, inclusive dos provedores de acesso, sendo-lhes facultado, apenas, o direito de regresso contra os agentes diretos, verdadeiros responsáveis”.[10]
Outra importante contribuição técnico-jurídica sobre o tema é de João Costa Ribeiro Neto.[11] Embora ele tenha açambarcado temas que não serão objeto deste conjunto de colunas, especialmente os problemas sobre a colisão de direitos fundamentais e o problema da censura privada, os quais, por si sós, dariam uma coluna inteira, seu estudo tem o mérito de ampliar a perspectiva sobre o problema específico da responsabilidade civil em dois aspectos notáveis.
O primeiro está em que os provedores, como Google e Facebook, e os usuários podem ter suas relações também qualificadas sob a óptica dos direitos fundamentais, com todos os efeitos daí advindos. Com absoluta razão, o autor sugere que essa vinculação aos direitos fundamentais haveria de ocorrer de maneira mediata ou indireta, pois “[s]e a corrente defensora da vinculação direta ou imediata dos particulares aos direitos fundamentais predominasse, estar-se-ia impondo um estatuto de regime público a atores privados, o que seria não apenas juridicamente implausível, como economicamente inviável”.[12]
O segundo aspecto, que se conecta a um debate mais amplo na teoria constitucional sobre a divulgação consentida de comportamentos (ou fatos) protegidos pela reserva da intimidade e sua qualificação como ato de renúncia ou de modo de exercício diferenciado. Com isso chega-se ao direito à autodeterminação informativa e ao reconhecimento de que “essas empresas só podem ter em seu poder dados voluntariamente cedidos, os quais, por sua vez, não podem ser usados para fins diversos dos especificados ou daqueles presumidamente aplicáveis ao caso”.[13]
Esse diálogo entre doutrina e jurisprudência, que nunca deve ser desvalorizado, é importante por explicitar a necessidade de uma maior elaboração quanto aos fundamentos da responsabilidade civil de empresas como o Google ou Facebook, as mais notórias administradoras das redes sociais. A mera subsunção ao CDC e a qualificação da responsabilidade civil por cadeia são duas faces que se podem revelar contraditórias, na medida em que as soluções adotadas em alguns julgados contrariam as premissas do sistema de proteção ao consumidor. Isso fica bem evidenciado quando se percebe que parte majoritária da doutrina concede a aplicabilidade do CDC e admite ora a responsabilidade objetiva, ora a responsabilidade por atividade de risco, enquanto os tribunais (também majoritariamente) tendem a afastar a última qualificação, posto que aceitem a influência das regras de consumo.
Concluída a primeira etapa da proposta de investigação, que se iniciou na última coluna, passa-se agora para uma tentativa de se classificar os conflitos indutores de responsabilização civil nas redes sociais:
Grupo 1) Danos causados por titular de perfil autêntico e próprio (rectius, verdadeiros e criados pelo titular, uma pessoa natural ou jurídica identificável e imputável): 1.1.) danos por postagem de textos ofensivos a terceiros; 1.2) danos por inserção de imagens ofensivas a terceiros; 1.3.) danos por violação de direitos autorais: 1.3.1.) plágio; 1.3.2.) reprodução direta ou indireta, total ou parcial, de músicas, fotografias, textos ou filmes sem autorização dos titulares de direitos autorais; 1.3.3.) adulteração de criações artísticas alheias ; 1.4.) danos por ofensas causadas em perfis alheios, como comentários injuriosos, caluniosos ou difamatórios.
Grupo 2) Danos causados por titular de perfil autêntico e alheio (hipótese de captura de senha de terceiro e utilização como se fora o próprio titular). Todas as hipóteses de fato referidas no grupo 1.
Grupo 3) Danos causados por titular de perfil falso: a) Subgrupo 3.1: Criação de um perfil totalmente falso, com imagens ou características de pessoas diversas ou mesmo com características totalmente inventadas; b) Subgrupo 3.2: Criação de um perfil totalmente falso, com imagens e características de uma pessoa existente e identificável. Todas as hipóteses de fato referidas no grupo 1.
Sobre esses conflitos e seus desdobramentos, será dedicada a próxima coluna, que também abordará a experiência do Direito Comparado.
[1] BARBOSA, Fernanda Nunes. Internet e consumo: o paradigma da solidariedade e seus reflexos na responsabilidade civil do provedor de pesquisa. Revista dos Tribunais, v. 924, p. 535, out. 2012.
[2] MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade por danos na sociedade de informação e proteção do consumidor : desafios atuais da regulação jurídica da internet. Revista de direito do consumidor,v. 18, n. 70, p. 41-92, abr./jun. 2009.
[3] PARENTONI, Leonardo Netto. Breves notas sobre a responsabilidade civil dos provedores de serviços na Internet. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 99, n. 896, p. 75-95, jun. 2010.
[4] MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti Longhi. A tutela do consumidor nas redes sociais virtuais : responsabilidade civil por acidentes de consumo na sociedade da informação.Revista de direito do consumidor, v. 20, n. 78, p. 191-221, abr./jun. 2011.
[5] LEMOS, Ronaldo; SOUZA, Carlos Affonso de; BRANCO, Sergio. Responsabilidade civil na internet: uma breve reflexão sobre a experiência brasileira e norte-americana. Revista de Direito das Comunicações. v. 1, p. 80, jan. 2010.
[6] DELGADO, Mário Luiz. Responsabilidade civil na sociedade da informação. In. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011. p. 372-390.
[7] DELGADO, Mário Luiz. Op. cit. p. 381.
[8] DELGADO, Mário Luiz. Op. cit. p. 382.
[9] Na mesma obra na qual está publicado o capítulo de Mário Luiz Delgado, aqui citado, encontra-se uma versão sintética dos postulados da responsabilidade pressuposta: HIRONAKA, Giselda. Responsabilidade civil pressuposta : evolução de fundamentos e de paradigmas da respondabilidade civil na contemporaneidade. In. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011. p. 40-59. A tese de livre-docência da referida autora, hoje professora titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi publicada em 2005: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte : Del Rey, 2005.
[10] DELGADO, Mário Luiz. Op. cit. p.383-384.
[11] RIBEIRO NETO, João Costa. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: o caso Google. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, Belo Horizonte, ano 6, n. 22, p. 457-487, abr./jun. 2012.
[12] RIBEIRO NETO, João Costa. Op. cit. p. 475.
[13] RIBEIRO NETO, João Costa. Op. cit. p. 479.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Revista Consultor Jurídic
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