Novas tecnologias mudam o modo de coletar e de monitorar informações sigilosas. Especialistas dizem que a prática ajuda governos na tomada de decisões
RENATA TRANCHES - CORREIO BRAZILIENSE
Se ao falarmos de espionagem você imagina um araponga, de capa e chapéu, ou um porão escuro com agentes interceptando códigos Morse, está na hora de rever seu conceito. As revelações sobre o esquema global de monitoramento de dados da Agência de Segurança Nacional (NSA, em inglês) dos Estados Unidos mostraram que ela é mais comum do que se imagina. Pode estar acontecendo agora, enquanto esta reportagem está sendo lida. Na era conectada da espionagem, a internet e as tecnologias permitem ao novo espião acessar qualquer lugar, por meio de redes e de cabos em volta do mundo, sem respeitar fronteiras, dando à prática um alcance inédito na história, como avaliaram especialistas ouvidos pelo Correio. Se por um lado a sociedade civil mostra-se revoltada com a invasão de privacidade, por outro, vários países insinuaram que a praticam. O truque, segundo analistas, está em não ser pego.
Desde sua primeira revelação, em 6 de junho, Edward Snowden, o ex-técnico terceirizado da NSA, não parou mais. Cinco semanas depois, o mundo se depara com um emaranhado de siglas e nomes de programas e softwares que compõe uma extensa teia de vigilância que, assim como a internet, não respeita fronteiras. Nem as aliadas. Os vazamentos evidenciaram uma conduta de coleta de dados dos serviços secretos americanos que tiveram como alvos governos próximos a Washington, como países da União Europeia e da América Latina. Muitos desses países revelaram programas semelhantes.
De acordo com Bernardo Wahl, professor de relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap, São Paulo), isso não é de se estranhar. “Após o (atentado de) 11 de Setembro, essa atividade voltou a ganhar importância como um instrumento dos Estados para subsidiar o processo de tomada de decisão em política externa”, afirmou. Muito praticada durante a Guerra Fria, a espionagem com objetivos militares perdeu força com o fim das hostilidades entre o Ocidente e a União Soviética. Na década de 1990, segundo Wahl, o aparato de inteligência passou a atuar na área econômica, no contexto da globalização. Com as ameaças de ataques terroristas que se seguiram a 2001, ele retornou às origens. “Houve falha de inteligência no 11 de Setembro, já que ela não antecipou os ataques”, disse.
A segurança, aliás, tem sido o argumento dos americanos para justificar a existência do esquema de espionagem de comunicações. Autoridades em Washington garantem que vários atentados foram impedidos graças a essa coleta de informações. Mas os EUA não estão sozinhos. Apesar da forte reação do presidente François Hollande ao saber que as comunicações de seu país foram espionadas, o jornal Le Monde divulgou que a França mantém uma base de dados com milhões de chamadas telefônicas, e-mails e atividades das redes sociais.
No Reino Unido, o jornal britânico The Guardian noticiou que o país faz uso das informações monitoradas pelo Prism, o programa secreto americano que permite à NSA acessar dados de usuários de nove empresas de informática, da Microsoft ao Twitter. O serviço britânico de inteligência afirmou que não comentaria informações dessa natureza. Na quinta-feira, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, declarou, em entrevista à revista Die Zeit, que a proteção de um Estado contra ataques terroristas seria “impossível sem a possibilidade de monitorar as telecomunicações”.
A chanceler, que cresceu sob o regime comunista da ex-República Democrática Alemã, considerou que os atuais serviços de inteligência "não têm comparação" com a polícia política da Alemanha Oriental, a Stasi. Na avaliação de Wahl, o passado da Alemanha dividida fez com que os cidadãos se indignassem ao descobrirem que tiveram as comunicações monitoradas. Edward Lozansky, diretor da American University em Moscou (Rússia), disse ter certeza de que a maioria dos governos pratica a espionagem, em maior ou menor grau, mas os EUA estão à frente de todos, graças à vantagem tecnológica e aos recursos financeiros. “A diferença dos tempos da Guerra Fria para hoje é que temos ameaças vindas de atores não governamentais, motivo pelo qual a espionagem se tornou global”, explicou. As preocupações com segurança e política externa, porém, não anularam a espionagem industrial.
Máquina de escrever
Questionada pelos EUA pela ciberespionagem, a China, de acordo com Wahl, é bastante atuante, no que diz respeito à propriedade intelectual. “É mais barato obter informações por meio de espionagem do que investir em pesquisa e desenvolvimento”, disse. Segundo o professor, estudos apontam que a China tem o maior exército de guerreiros cibernéticos do mundo. O tema foi tratado pelos presidentes americano, Barack Obama, e chinês, Xi Jiping, na recente visita deste à Califórnia.
O problema para os governos, segundos os analistas, é quando são pegos espionando. “Os países têm de se preocupar em fazer isso de maneira sigilosa, que não traga problemas para o relacionamento com outras nações, nem com a opinião pública mundial”, avaliou Wahl. Com medo de ter os dados vazados, o Departamento de Defesa da Rússia resolveu, na última semana, recorrer à máquina de datilografia. “Bem-vindo à nova era, onde mísseis e outras armas pesadas se tornaram menos relevantes que o acesso à informação”, concluiu Lozansky.
Três perguntas para
Bernardo Wahl, professor de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap)
Como o senhor compararia esse escândalo da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA com outros?
O interessante, não só no caso da NSA como de outras agências de inteligência, incluindo a CIA, é que frequentemente se envolvem nesse tipo de situação. Este da NSA é o mais recente. Na década de 1990, houve outro, escala menor, no caso do (programa Echelon). O sistema envolvia o monitoramento das comunicações globais e, na época, foi um grande escândalo. A diferença do que acontece hoje é que os programas atuais são em escala muito maior. O que Edward Snowden revelou mostrou que as atividades da NSA são muito mais amplas do que na década de 1990. A espionagem alcançou um patamar nos dias de hoje como nunca antes na história mundial.
Quem pratica a espionagem hoje em dia?
Originalmente, uma atividade mais militar, hoje ela está presente em diversos setores da sociedade. O grupo Anonymous declarou, recentemente, a criação da sua agência de inteligência chamada Paranoia. Pode até ter um certo humor, ironia aí, mas mostra que vários grupos da sociedade têm usado essa ferramenta para subsidiar suas ações. Ainda assim, o principal ator é o Estado.
Qual é a situação do Brasil?
O caso do Brasil é problemático, porque temos uma situação histórica. Se voltarmos ao regime militar, um dos seus órgãos era o SNI, que é a sigla para Serviço Nacional de Informação. O criador do SNI foi o general Golbery Couto e Silva. Ele próprio disse, certa vez, que tinha criado um "monstro" que saiu do controle. Existe um trauma no Brasil com relação aos serviços de informação, muito associados à repressão política. Apesar de essa ser uma possibilidade, o serviço de inteligência não é só isso. É muito mais amplo. Desde a redemocratização, vem se tentando reorganizar esse serviço no país. (RT)
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