“jovens se submeteram a um esquema de orgias montado pelo tenente-coronel Alberto” // “soldado abusado foi acusado de praticar sexo em local inapropriado”
Há aproximadamente quatro anos Fernando de Alcântara e Laci Araújo fundaram o Instituto Ser, ONG que recebe cerca de duas denúncias por mês, um número que segundo eles não reflete a realidade dentro dos quartéis, devido a escassez de entidades que se interessam em acolher as vítimas. Nos EUA, dizem eles, há cerca de 70 casos de violência sexual registrados por dia (!). Laci e Fernando adquiriram experiência no assunto, afinal, travaram uma guerra com o exército e enfrentaram, segundo contam, o preconceito das forças armadas contra homossexuais. Eles queriam assumir seu relacionamento publicamente, algo até então inédito no Brasil. Lacy processa o exército na cor4te interamericana de direitos humanos e Alcântara diz que até hoje tem seqüelas, sofre com pesadelos em que está sendo perseguido.
Entre as denúncias recebidas pela ONG há casos que lembram cenas de filmes e vão desde representações contra oficiais que recusam dar água aos recrutas a excessos mais graves, nos exercícios físicos, que levam a mortes suspeitas. Segundo a reportagem alguns processos de apuração, que correm na justiça militar, acabam se virando contra os denunciantes e estes, podem terminar como réus. Em 2011, um jovem soldado disse ter sofrido um estupro coletivo no alojamento do quartel de Santa Maria (RS). O exame de corpo de delito confirmou a existência de sêmens diferentes, os militares chamaram de “brincadeira entre colegas” e o soldado foi acusado de praticar sexo consentido em local inapropriado. O caso ainda tramita, mas em segredo de Justiça. “Nada pode macular a imagem da corporação, por isso existe muita troca de favores para não levar os casos adiante”, diz o advogado Francisco Lúcio França, diretor do grupo Tortura Nunca Mais (SP). “Às vezes, nem o Ministério Público peita o Exército.”
Esse é o desespero da ex-sargento Rubenice de Nazaré Dias Martins. Ela era técnica de enfermagem no Hospital Militar de Marabá (PA). Nos recônditos do País, o serviço militar representa uma garantia de salário, estabilidade e até ascensão social. Rubenice afirma que, por esse motivo, jovens se submeteram a um esquema de orgias montado pelo tenente-coronel Alberto Almeida. Levados à praia do Lençol, eles seriam obrigados a fazer sexo com o superior para continuar na carreira. Em 2009, ela denunciou o caso a um tenente, acrescentando que meninas menores de idade também pernoitavam no hospital para ter relações sexuais com recrutas. “Não consegui ficar calada diante de tamanha covardia”, diz. Rubenice respondeu a sindicâncias por “transgressão à hierarquia e disciplina”, foi cinco vezes presa por não negar as acusações e transferida para fazer vigilância durante a madrugada no Batalhão da Selva – sendo que atuava com saúde e não sabia atirar. “Fizeram da minha vida um inferno, me desqualificaram de todas as formas”, diz ela.
“Meses depois, outros soldados apresentaram fotos e vídeos das festas com a presença do coronel. Um inquérito policial militar foi aberto para apurar as denúncias, novamente arquivado por falta de provas. Rubenice pediu ajuda ao Ministério Público, mas o órgão não seguiu com a investigação. A ex-sargento alega que as testemunhas foram coagidas e ela própria foi perseguida a ponto de fugir para São Paulo, onde viveu cinco meses debaixo de viadutos e em albergues para mendigos. “E ainda assim recebi ameaças pelo celular, como ‘sua língua é muito grande, pare ou vai morrer’”, diz ela, que fez boletins de ocorrência e até tentou o suicídio. Aos 36 anos, solteira e sem filhos, hoje Rubenice mora em Belém na casa dos pais. É protetora de animais, está desempregada e sofre com síndrome do pânico. Em nota, o Exército afirma que as denúncias de Rubenice, “cuja suposta perseguição a teria levado a ser licenciada das fileiras do Exército, foram julgadas improcedentes pela Justiça Federal em Marabá, após as apurações pertinentes””.
O desfecho é recorrente não só no Brasil. Jessica Kenyon, ex-militar sexualmente abusada por colegas nos EUA, fundou a ONG Military Sexual Trauma para dar voz a outras vítimas. “Há uma relação de irmandade: se um oficial julga o outro, alguém que considera como um parente, você acha que vai acontecer o quê?”, diz Jessica. Para ela, somente quando militares de alta patente não forem mais blindados pelo sistema e receberem punições rigorosas as pessoas terão coragem de denunciar. Poucos se aventuram a desafiar uma instituição tão sólida – que deveria obedecer à legislação civil em uma democracia consolidada e não ter uma Justiça própria, como ocorre. Entidades de direitos humanos, como a ONG de Alcântara e Araújo, afirmam que a Justiça Militar é corporativista e lutam para discutir sua extinção, a exemplo do que aconteceu na Argentina após pressão de movimentos sociais. Medida que talvez reduzisse também casos de assédio moral, como o da professora de sociologia Luciana Lucena, 35 anos.
Dados de Isto É Independente.
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